Por Mino Carta.
Por que o afastamento do jornalista do seu vitorioso Domingo Espetacular só é possível no país da casa-grande e da senzala
Paulo Henrique Amorim, amigo fraterno e excelente jornalista no sentido exato do termo, acaba de ser afastado do leme do programa de maior audiência da TV Record, o Domingo Espetacular. Fosse um filme, diríamos que ele é diretor e intérprete, com a competência de quem, entre outras coisas, sabe tudo de televisão, exibe o brilho e a simpatia que todos lhe reconhecem e age com total lealdade aos interesses da emissora. Ainda assim não é preciso espremer as meninges para entender os motivos do afastamento.
Fora da Record, Paulo Henrique mantém pela internet a sua impagável e desassombrada “Conversa Afiada”, destinada à prática do espírito crítico para incomodar o poder onde quer que se manifeste. Para quem, além da verdade factual, frequenta com garbo e ironia, atravessamos um momento ideal. Recentemente, Paulo Henrique constatou que o presidente Bolsonaro é torcedor plúrimo de futebol, Flamengo, Palmeiras e Fluminense são seus times preferidos, sem deixar de anotar que o hino flamenguista exalta torcedores definitivos que somente a morte pode remover do estádio. O deputado Eduardo Bolsonaro, chanceler in pectore de papai, vociferou em plenário que o meu amigo pretendia a morte do presidente da República. Um atentado bem-sucedido serviria magnificamente ao propósito. Choveram na Record invocações graúdas à punição do jornalista atrevido e o bispo finalmente as atendeu.
Paulo Henrique é veterano neste gênero de enredo, desde quando, priscas eras, foi exonerado da Globo, não sem antes ter assistido à manipulação do célebre debate pré-eleitoral entre Fernando Collor e Lula, esmerada obra pessoal do nosso colega Roberto Marinho. Repetiu-se a história na Bandeirantes, onde o âncora do jornal diário assumia a tarefa aprazível de irritar o presidente Fernando Henrique Cardoso. Do UOL, etapa seguinte do périplo de Paulo Henrique, as razões não foram tão imponentes e nem por isso menos decisivas: meu desabusado amigo costumava baixar o guatambu no banqueiro orelhudo do Opportunity, Daniel Dantas, que mandava no portal. Não consigo evitar a menção ao diretor Caio Túlio Costa, profissional oriundo da Folha de S.Paulo, onde talvez tenha aprendido a eliminar companheiros de trabalho.
É admissível entender que um pica-pau às vezes bate asas nas entranhas do meu amigo para animá-lo no cumprimento pontual do seu mister a despeito de patrões e pretensos colegas. De todo modo, o afastamento de Paulo Henrique do Domingo Espetacular, programa que elevou a qualidade e o Ibope da Record, não corresponde a uma forma bolsonarista de censura. De fato, o ex-capitão conforma-se aos hábitos nefandos do país da casa-grande e da senzala, o que nos relega à medievalidade mais sombria e nos torna únicos na desgraça entre os países do G20, em relação à Argentina inclusive. Apesar de Macri, a nação portenha não é medieval.
Da próxima reunião do G20 Bolsonaro prepara-se a participar. Não sei quem irá integrar a comitiva dos nativos, não me surpreenderei se contar com Sergio Moro, e com o devido destaque. Não faltará um cacho de ocasiões para gargalhar e sentir vergonha, a se oferecer generosamente aos cidadãos conscientes do desastre, da unicidade da tragédia brasileira, entre eles quem acompanha Paulo Henrique. O qual, aliás, é dono da gargalhada mais sonora e contagiante entre todas as que caíram nos meus ouvidos. A nossa amizade dura in crescendo há 52 anos.
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N. da R.: O jornalista Paulo Henrique Amorim morreu hoje, 10 de julho, aos 77 anos.