Militar suíço, especialista da ONU, analisa a guerra na Ucrânia com detalhe

A revista "Zeitgeschehen im Fokus" entrevista Jacques Baud, um coronel do exército suíço, especialista em inteligência militar e adido da OTAN por cinco anos. Ele detalha os aspectos mais desconhecidos de como os EUA preparou a agressão contra a Rússia até chegar a um ponto em que não tinha outra alternativa senão lançar sua operação contra a Ucrânia, sabendo que de qualquer jeito, seria sempre interpretado e divulgado como uma violenta guerra de agressão.

Coronel Jacques Baud

Sr. Baud, o senhor conhece a região onde agora há guerra, que conclusões o senhor tirou do que está acontecendo na Ucrânia?

Jacques Baud: Conheço muito bem a região. Estive com o FDFA [Ministério das Relações Exteriores da Suíça] e em seu nome fui destacado para a OTAN por cinco anos. Meu trabalho era combater a proliferação de armas letais, nessa qualidade contribuí para o programa na Ucrânia após 2014. Além disso, conheço muito bem a Rússia, a OTAN e a Ucrânia devido ao meu trabalho anterior em inteligência estratégica. Eu falo russo e tenho acesso a documentos que poucas pessoas no Ocidente leem.

Você é um especialista na situação na Ucrânia. Sua atividade profissional o trouxe para a atual região de crise. Como você percebe o que está acontecendo?

JB: É uma loucura, podemos até dizer que existe uma verdadeira histeria. O que me surpreende, e me incomoda muito, é que ninguém pergunta por que os russos lançaram esta operação. Ninguém quer defender a guerra, e eu certamente também não quero. Mas como ex-chefe de “Política e Doutrina” no Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU em Nova York por dois anos, sempre me pergunto: Como chegamos ao ponto de iniciar uma guerra?

Qual foi sua tarefa na ONU?

JB: A ONU precisava entender como as guerras acontecem, que fatores levam à paz e o que pode ser feito para evitar mortes ou como evitar a guerra. Se você não entende como a guerra acontece, então não consegue encontrar uma solução. Estamos exatamente nesta situação. Cada país está impondo suas próprias sanções contra a Rússia, e sabemos muito bem que isto não está indo a lugar algum. O que me impressionou particularmente foi a declaração do Ministro das Finanças francês de que eles querem destruir a economia russa para fazer o povo russo sofrer. Tal afirmação é escandalosa.

Como você avalia a ofensiva russa?

JB: Atacar outro Estado é contra os princípios do direito internacional. Mas é preciso considerar também os antecedentes de tal decisão. Antes de mais nada, deve ficar claro que Putin não é louco nem está fora de contato com a realidade. Ele é uma pessoa metódica e sistemática, ou seja, muito russa. Acredito que ele estava ciente das conseqüências de sua operação na Ucrânia. Ele avaliou, obviamente com razão, que se ele tivesse uma operação “pequena” para proteger a população do Donbass ou uma operação “maciça” em favor da população de Donbass e dos interesses nacionais da Rússia, as conseqüências seriam as mesmas. Por isso, ele optou pela solução máxima.

Qual é o objetivo da Rússia?

JB: Certamente não é dirigido contra a população ucraniana. Putin tem dito isso repetidas vezes. Isso também pode ser visto nos fatos. A Rússia continua a fornecer gás para a Ucrânia. Os russos não impediram que isso acontecesse. Eles não fecharam a Internet. Eles não destruíram as usinas elétricas e o abastecimento de água. Embora, tais serviços possam ter parado em áreas de combate. Mas a abordagem russa da guerra é muito diferente da dos estadunidenses – existem os exemplos na antiga Iugoslávia, Iraque e Líbia. Quando os países ocidentais atacaram estas nações, primeiro destruíram o abastecimento de água e eletricidade e toda a infraestrutura.

Por que o Ocidente age desta maneira?

JB: A abordagem ocidental, é necessário olhar para ela do ponto de vista de sua doutrina operacional, é baseada na ideia de que se você destruir a infraestrutura, a população se revoltará contra “o ditador” e você pode se livrar dele. Esta também foi a estratégia durante a Segunda Guerra Mundial, quando cidades alemãs como Colônia, Berlim, Hamburgo, Dresden, etc. foram bombardeadas até a destruição. Eles visavam diretamente a população civil, para que houvesse uma revolta. O governo perde seu poder por causa de uma revolta e você ganha a guerra sem colocar em perigo suas próprias tropas. Essa é a teoria.

Qual é a abordagem russa?

JB: É completamente diferente. Eles anunciaram claramente seu objetivo. Eles querem a “desmilitarização” e a “desnazificação” da Ucrânia. Se você seguir a situação honestamente, é exatamente isso que eles estão fazendo. É claro que uma guerra é uma guerra e, infelizmente, há sempre mortes no processo, mas é interessante ver o que dizem os números. Na sexta-feira 4 de março, a ONU relatou a morte de 265 civis ucranianos. À noite, o Ministério da Defesa da Rússia colocou em 498 o número de soldados mortos, o que significa que há mais baixas entre os militares russos do que entre os civis do lado ucraniano. Se você agora comparar isto com o Iraque ou a Líbia, então é exatamente o contrário com as guerras que o Ocidente desencadeia.

A mídia ocidental não está mostrando a verdade?

JB: Sim, nossa mídia afirma que os russos querem destruir tudo, mas isso obviamente não é verdade. Também estou preocupado com a maneira como nossa mídia retrata Putin, eles falam como se de repente o “tirano” decidisse atacar e conquistar a Ucrânia. Os EUA advertiram durante vários meses que haveria um ataque surpresa, mas nada aconteceu.

A propósito, os serviços de inteligência ucranianos e os líderes ucranianos negaram repetidamente estas advertências dos EUA. Se olharmos de perto os relatórios militares e os preparativos no terreno, podemos ver muito claramente: Putin não tinha intenção de atacar a Ucrânia até meados de fevereiro.

Por que isso mudou? O que aconteceu?

JB: Você tem que saber algumas coisas primeiro, senão você não entende. Em 24 de março de 2021, o presidente ucraniano Zelensky emitiu um decreto presidencial para retomar a Crimeia. Depois ele começou a mover o exército ucraniano para o sul e sudeste, em direção a Donbas. Há um ano, há uma grande concentração de tropas ucranianas na fronteira sul da Ucrânia. Zelensky sempre sustentou que os russos não atacariam a Ucrânia. O Ministro da Defesa da Ucrânia também confirmou isto repetidamente. Da mesma forma, o chefe do Conselho de Segurança da Ucrânia declarou em dezembro e janeiro que não havia sinais de um ataque russo à Ucrânia.

Isto foi um truque?

JB: Não, e tenho certeza de que Putin não queria atacar a Ucrânia, ele disse isto repetidamente. Obviamente, houve pressão por parte dos EUA para iniciar a guerra.

Os Estados Unidos têm pouco interesse na própria Ucrânia. O que eles queriam era aumentar a pressão sobre a Alemanha para fechar o Nord Stream II. Eles queriam que a Ucrânia provocasse a Rússia e, se a Rússia reagisse, o Nord Stream II seria congelado.

Tal cenário foi aludido quando Olaf Scholz visitou Washington, e Scholz claramente não queria aceitá-lo. Essa não é apenas a minha opinião, há muitos diplomatas estadunidenses que entenderam dessa maneira: o objetivo era Nord Stream II, e não se deve esquecer que esse oleoduto foi construído a pedido dos alemães. Trata-se principalmente de um projeto alemão. Porque a Alemanha precisa de mais gás para atingir seus objetivos energéticos e climáticos.

Por que os EUA estão interessados no conflito?

JB: Desde a Segunda Guerra Mundial, a política dos EUA sempre foi a de impedir que a Alemanha e a Rússia (ou a URSS) trabalhassem mais estreitamente juntas. Isto apesar do fato de que os alemães têm um medo histórico dos russos. Mas estes dois países são as duas maiores potências da Europa. Historicamente, sempre existiram relações econômicas entre a Alemanha e a Rússia. Os Estados Unidos sempre tentaram evitar isso.

Não devemos esquecer que, em uma guerra nuclear, a Europa seria o campo de batalha. Isso significa que, em tal caso, os interesses da Europa e dos Estados Unidos não seriam necessariamente os mesmos. Isto explica porque nos anos 80 a União Soviética apoiou os movimentos de paz na Alemanha. Uma relação mais estreita entre a Alemanha e a Rússia tornaria inútil a estratégia nuclear estdunidense.

Por que os EUA criticam a dependência energética da Alemanha?

JB: É irônico que os EUA critiquem a dependência energética da Alemanha ou da Europa em relação à Rússia. A Rússia é o segundo maior fornecedor de petróleo do mundo. Os EUA compram seu petróleo principalmente do Canadá, depois da Rússia, México e Arábia Saudita. Isto significa que os EUA dependem da Rússia. Isto também é verdade para seus motores de foguete, por exemplo. Isso não incomoda os Estados Unidos. Mas incomoda os Estados Unidos que os europeus sejam dependentes da Rússia.

Durante a Guerra Fria, a Rússia, ou melhor, a União Soviética, sempre honrou todos os contratos de gás. A maneira russa de pensar a este respeito é muito semelhante à dos suíços. A Rússia tem uma mentalidade cumpridora da lei; ela se sente vinculada pelas regras, assim como a Suíça. Isso não significa que eles não sejam emocionais, mas quando as regras são estabelecidas, eles as seguem. Durante a Guerra Fria, a União Soviética nunca fez uma conexão entre comércio e política. Neste sentido, a disputa relacionada à Ucrânia é principalmente política.

De acordo com Brzezinski. A Ucrânia seria a chave para dominar a Eurásia. Que papel desempenha esta teoria nesta guerra?

JB: Brzezinski foi sem dúvida um grande pensador e ainda influencia o pensamento estratégico dos EUA. Mas eu não acho que este aspecto seja fundamental nesta crise em particular. A Ucrânia é certamente importante. Mas a questão de quem domina ou controla a Ucrânia não é o ponto principal aqui. Os russos não procuram controlar a Ucrânia. O problema da Ucrânia para a Rússia, como para outros países, é estratégico.

O que isso significa?

JB: Em toda a discussão que acontece em todos os lugares, questões cruciais estão sendo ignoradas. As pessoas estão falando de armas nucleares, mas é como se estivessem assistindo a um filme. A realidade é um pouco diferente. Os russos querem estabelecer uma distância entre as forças militares da OTAN e a Rússia. O poder da OTAN não é outro senão o poder nuclear estadunidense. Essa é a essência da OTAN. Quando eu trabalhava na OTAN, Jens Stoltenberg – então meu chefe – costumava dizer: “A OTAN é uma potência nuclear”. Atualmente, os EUA implantaram seus sistemas de mísseis na Polônia e Romênia, incluindo os sistemas de entrega MK-41.

Estas armas são defensivas?

JB: Os EUA, é claro, dizem que são puramente defensivos. Na verdade, é possível disparar mísseis antibalísticos a partir desses lançadores. Mas você também pode lançar mísseis nucleares a partir do mesmo sistema.

Estas rampas estão a apenas alguns minutos de Moscou. Se, numa situação de tensão crescente na Europa, os russos detectarem, com imagens de satélite ou inteligência, atividades nessas plataformas que indicam os preparativos para um lançamento, eles vão esperar até que os mísseis nucleares sejam lançados em direção a Moscou?

Muito provavelmente não … Claro que não. Eles lançariam imediatamente um ataque preventivo. Toda esta situação foi agravada depois que os EUA se retiraram da ABM [Tratado Anti-Mísseis Antibalísticos]. De acordo com este tratado, nenhum sistema desse tipo poderia ser implantado na Europa. A idéia era precisamente manter um certo tempo de reação no caso de um confronto. Isso porque podem acontecer erros não intencionais.

Tivemos algo assim durante a Guerra Fria. Quanto maior a distância entre os mísseis nucleares, mais tempo você tem para reagir. Se os mísseis forem instalados muito perto do território russo, a Rússia não terá tempo para reagir em caso de ataque e corre o risco de entrar em uma guerra nuclear muito mais rapidamente. Isto afeta todos os países vizinhos. Os soviéticos, em seu tempo, perceberam isso, e por isso criaram o Pacto de Varsóvia.

A OTAN foi fundada em 1949 e o Pacto de Varsóvia apenas seis anos mais tarde. A razão foi o rearmamento da RFG e sua adesão à OTAN em 1955. Se você olhar para o mapa de 1949, você pode ver um abismo muito grande entre a energia nuclear da OTAN e a da URSS. Com o avanço da OTAN em direção à fronteira russa, incluindo a Alemanha, a Rússia reagiu criando o Pacto de Varsóvia. Nessa época, os países do Leste Europeu eram todos comunistas e estavam sob o controle de seus próprios partidos comunistas. A URSS queria ter um cinto de segurança ao seu redor, por isso criou o Pacto de Varsóvia. Ele queria manter um “glacis” (defesa fortificada) para poder travar uma guerra convencional pelo maior tempo possível. Essa era a idéia: travar a guerra convencional pelo máximo de tempo possível e evitar o nuclear.

Ainda é esse o caso hoje?

JB: Após a Guerra Fria, a estratégia nuclear foi de certa forma esquecida. A segurança não era mais uma questão de armas nucleares. A guerra do Iraque, a guerra do Afeganistão eram guerras com armas convencionais, e a dimensão nuclear estava fora de vista. Mas os russos não se esqueceram. Eles pensam estrategicamente. Naquela época, visitei a equipe geral da Academia Voroshilov em Moscou. Lá você poderia ver como as pessoas pensam. Eles pensam estrategicamente, como se deve pensar em tempos de guerra.

É esse o caso hoje?

JB: Hoje você pode vê-lo muito claramente. O povo de Putin pensa estrategicamente. Os russos têm pensamento estratégico, pensamento operacional e pensamento tático. Os países ocidentais, como já vimos no Afeganistão ou no Iraque, não têm estratégia.

Este é exatamente o problema que os franceses têm no Mali. Mali exigiu agora que deixassem o país, porque os franceses estão matando pessoas sem uma estratégia e sem um objetivo estratégico. Com os russos é completamente diferente, eles pensam estrategicamente. Eles têm um objetivo. É o mesmo com Putin.

Em nossa mídia nos dizem que Putin colocou armas nucleares em jogo. Você já ouviu isso também?

JB: Sim, Vladimir Putin colocou suas forças nucleares no nível 1 de alerta em 27 de fevereiro. Mas, isto é apenas a metade da história. Nos dias 11 e 12 de fevereiro, foi realizada a conferência de segurança em Munique. Zelensky estava lá. Ele indicou que queria adquirir armas nucleares. Isto foi interpretado como uma ameaça potencial e a luz vermelha se acendeu no Kremlin. Para entender isto, temos que nos lembrar do Acordo de Budapeste de 1994. Tratava-se de destruir mísseis nucleares no território das antigas repúblicas soviéticas, deixando a Rússia sozinha como uma potência nuclear. A Ucrânia também entregou armas nucleares à Rússia em troca da inviolabilidade de suas fronteiras. Quando a Crimeia retornou à Rússia em 2014, a Ucrânia disse que não cumpriria o acordo de 1994.

Vamos voltar às armas nucleares. O que Putin realmente disse?

JB: Se Zelensky quisesse retomar as armas nucleares, isso certamente seria inaceitável para Putin. Se ele tem armas nucleares bem na fronteira, há muito pouco tempo de aviso. Durante a conferência de imprensa após a visita de Macron, Putin deixou claro que se a distância entre a OTAN e a Rússia fosse pequena, isto poderia levar a complicações sem que nos dêmos conta.

Mas o elemento decisivo foi no início da operação contra a Ucrânia, quando o ministro francês das Relações Exteriores ameaçou Putin ao declarar que a OTAN era uma potência nuclear. Putin reagiu elevando o nível de alerta de suas forças nucleares. Nossa mídia, é claro, não mencionou isto. Putin é um realista; ele está por terra e tem um propósito.

O que motivou Putin a intervir militarmente agora?

JB: Em 24 de março de 2021, Zelensky emitiu um decreto presidencial para reconquistar a Crimeia pela força. Ele começou os preparativos para fazê-lo. Se essa era sua verdadeira intenção ou simplesmente uma manobra política, não sabemos. O que vimos, no entanto, é que ele reforçou maciçamente o exército ucraniano na região de Donbass e no sul em direção à Crimeia.

É claro que os russos notaram esta concentração de tropas. Ao mesmo tempo, a OTAN conduziu grandes exercícios entre o Báltico e o Mar Negro. Isto, compreensivelmente, levou os russos a reagir. Eles conduziram exercícios no distrito militar do sul. As coisas se acalmaram depois disso, e em setembro a Rússia conduziu os exercícios há muito planejados “Zapad 21”. Estes exercícios são realizados a cada quatro anos. No final dos exercícios, algumas tropas permaneceram perto de Belarus. Estas eram unidades do Distrito Militar Oriental. A maior parte do equipamento que ficou lá foi poupado para uma manobra importante planejada com Belarus para o início deste ano.

Como o Ocidente reagiu a isso?

JB: A Europa e especialmente os EUA interpretaram isto como um reforço das capacidades ofensivas contra a Ucrânia. Especialistas militares independentes, mas também o chefe do Conselho de Segurança ucraniano, disseram que nenhum preparo para a guerra estava sendo feito na época. O equipamento deixado pela Rússia em outubro não foi destinado a uma operação ofensiva.

Entretanto, os chamados especialistas militares ocidentais, especialmente na França, interpretaram isto como preparação para a guerra e começaram a chamar Putin de louco. Foi assim que a situação evoluiu do final de outubro de 2021 até o início deste ano. A forma como os EUA e a Ucrânia se comunicaram sobre esta questão foi muito contraditória. Os EUA alertaram sobre uma ofensiva planejada, enquanto a Ucrânia a negou. Era um constante para frente e para trás.

A OSCE relatou o bombardeio de Donbass em fevereiro deste ano. O que aconteceu em fevereiro?

JB: No final de janeiro, a situação parecia evoluir. Os EUA falaram com Zelensky e foram observadas ligeiras mudanças. Desde o início de fevereiro, os EUA falam de um ataque russo iminente e começam a divulgar cenários de ataque. Antonio Blinken, no Conselho de Segurança da ONU, explica como um ataque russo se desdobraria de acordo com a inteligência norte-americana.

Isto nos lembra a situação em 2002/2003, antes do ataque ao Iraque. Também ali, as explicações dadas pelos EUA foram supostamente baseadas em análises de inteligência. Como sabemos que isto não era verdade, o Iraque não possuía armas de destruição em massa. Na verdade, a CIA não confirmou essa hipótese. Como resultado, Donald Rumsfeld não dependia da CIA, mas de um pequeno grupo confidencial dentro do Departamento de Defesa, que havia sido criado especialmente para contornar a análise da CIA.

De onde vieram estas informações?

JB: No contexto da Ucrânia, Blinken fez exatamente a mesma coisa. Em toda a discussão que levou à ofensiva russa, houve uma ausência total de análise por parte da CIA e das agências de inteligência ocidentais. Tudo o que Blinken nos disse veio de uma equipe que ele montou, a “Equipe Tigre”. Os cenários que nos foram apresentados não vieram da análise da inteligência, mas de especialistas auto-intitulados que inventaram um cenário com uma agenda política.

Assim nasceu o boato de que os russos estavam prestes a atacar. Então, em 16 de fevereiro, Joe Biden disse que sabia que os russos estavam prestes a atacar. Mas quando perguntado como ele sabia disso, ele respondeu que os EUA tinham muito boa capacidade de inteligência, sem mencionar a CIA ou o Escritório de Inteligência Nacional.

Então, aconteceu alguma coisa em 16 de fevereiro?

JB: Naquele dia, houve um aumento exagerado das violações do cessar-fogo por parte dos militares ucranianos ao longo da linha de cessar-fogo, a chamada “linha de contato”. Sempre houve violações nos últimos oito anos, mas desde 12 de fevereiro, o aumento tem sido enorme, incluindo explosões, especialmente nas regiões de Donetsk e Luhansk. Sabemos disso porque foi relatado pela missão da OSCE em Donbass. Estes relatórios podem ser lidos nos “Relatórios Diários” da OSCE.

Qual era o objetivo do exército ucraniano?

JB: Esta foi certamente a fase inicial de uma ofensiva contra o Donbass. Quando o fogo de artilharia se intensificou, as autoridades de ambas as repúblicas começaram a evacuar os civis para a Rússia. Em uma entrevista, Sergei Lavrov mencionou mais de 100.000 refugiados. Na Rússia, isto foi visto como o início de uma operação de grande escala.

Quais foram as conseqüências?

JB: Esta ação do exército ucraniano desencadeou tudo. A partir daquele momento, ficou claro para Putin que a Ucrânia iria realizar uma ofensiva contra as duas repúblicas. Em 15 de fevereiro, o parlamento russo, a Duma, havia adotado uma resolução propondo o reconhecimento da independência dessas repúblicas. Putin não reagiu no início, mas à medida que os ataques se intensificaram, decidiu em 21 de fevereiro responder positivamente ao pedido parlamentar.

Por que Putin deu este passo?

JB: Nessa situação, ele não teve outra escolha senão fazê-lo, porque o povo russo não teria compreendido se ele não tivesse feito nada para proteger a população de língua russa de Donbass. Para Putin, era claro que se ele interviesse apenas para ajudar as repúblicas ou para invadir a Ucrânia, o Ocidente reagiria com sanções maciças. Em um primeiro passo, ele reconheceu a independência das duas repúblicas, depois, no mesmo dia, concluiu tratados de amizade e cooperação com cada uma delas. A partir de então, poderia invocar o artigo 51 da Carta da ONU, que lhe permitia intervir para ajudar as duas repúblicas no âmbito da defesa coletiva e da autodefesa. Criou assim a base legal para sua intervenção militar.

Mas ele não só ajudou as repúblicas, como também atacou toda a Ucrânia?

JB: Putin tinha duas opções: primeiro, simplesmente ajudar o Donbass de língua russa contra a ofensiva militar ucraniana; segundo, realizar um ataque mais profundo a toda a Ucrânia para neutralizar suas capacidades militares. Ele também levava em conta que o que quer que ele fizesse, ele seria banhado com sanções. É por isso que ele optou claramente pela variante máxima; no entanto, deve-se notar que Putin nunca disse que quer assumir a Ucrânia. Seus objetivos são claros: desmilitarização e desnazificação.

Qual é o pano de fundo para estes objetivos?

JB: A desmilitarização é compreensível, uma vez que a Ucrânia havia reunido todo o seu exército no sul, entre Donbass e Crimea. Uma operação rápida permitiria o cerco dessas tropas. Foi o que aconteceu, e grande parte do exército ucraniano está agora cercado em um grande bolso na região de Donbass entre Slavyansk, Kramatorsk e Severodonetsk. Os russos o cercaram e estão em processo de neutralização.

Agora, quanto à chamada desnazificação. Quando os russos dizem isso, não se trata de uma frase vazia. Para compensar a falta de confiabilidade do exército ucraniano, a Ucrânia desenvolveu poderosas forças paramilitares desde 2014, incluindo, por exemplo, o famoso regimento Azov. Mas há muitos mais. Há um grande número desses grupos que estão sob o comando ucraniano, mas eles não são compostos exclusivamente por ucranianos. O regimento Azov, por exemplo, compreende 19 nacionalidades, incluindo francesa, suíça e assim por diante. É uma verdadeira legião estrangeira. No total, esses grupos de extrema-direita têm cerca de 100.000 combatentes, de acordo com a Reuters.

Por que existem tantas organizações paramilitares na Ucrânia?

JB: Em 2015/2016 eu estive na Ucrânia com a OTAN. A Ucrânia tinha um grande problema, eles estavam ficando sem soldados, porque o exército ucraniano tinha muitas baixas devido a ações não-combatentes. Tiveram vítimas devido a suicídios e problemas com álcool. Eles tiveram dificuldades em encontrar recrutas. Fui solicitado a ajudar por causa de minha experiência com a ONU. Por isso, fui várias vezes à Ucrânia. O ponto principal era que o exército não tinha credibilidade entre a população e também dentro das forças armadas. É por isso que a Ucrânia tem encorajado e desenvolvido cada vez mais as forças paramilitares. Eles são fanáticos movidos pelo extremismo de direita.

De onde vem este extremismo de direita?

JB: Suas origens remontam à década de 1930. Após os anos de fome extrema, que ficaram na história como Holodomor, surgiu uma resistência ao poder soviético. Para financiar a modernização da URSS, Stalin havia confiscado colheitas, causando a fome. A NKVD, precursora do KGB (que foi ao mesmo tempo o Ministério de Assuntos Internos e Segurança), implementou esta política. A NKVD foi organizada em base territorial e na Ucrânia havia muitos judeus em posições de comando superior.

Como resultado, tudo foi confinado em uma ideologia: ódio aos comunistas, ódio aos russos e ódio aos judeus. Os primeiros grupos de extrema-direita datam desta época e ainda existem. Durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães precisavam desses grupos, como a OUN (Organização Nacionalista Ucraniana) de Stephan Bandera e o Exército Insurgente Ucraniano. Os nazistas usaram essas organizações para lutar na retaguarda soviética.

Na época, as forças do Terceiro Reich eram vistas como libertadoras, como a 2ª divisão blindada das SS, “Das Reich”, que havia libertado Kharkov dos soviéticos em 1943, e que ainda hoje é celebrada na Ucrânia. O epicentro geográfico desta resistência de extrema direita estava em Lvov, hoje Lviv, na antiga Galícia. Esta região tinha até mesmo sua “própria” 14ª Divisão Granadeiro Panzer da SS “Galícia”, uma divisão da SS composta inteiramente de ucranianos.

A OUN foi formada durante a Segunda Guerra Mundial e sobreviveu ao período soviético?

JB: Após a Segunda Guerra Mundial, o inimigo era a União Soviética. A URSS não havia conseguido eliminar completamente estes movimentos anti-soviéticos durante a guerra. Os EUA, a França e a Grã-Bretanha perceberam que a OUN poderia ser útil e apoiá-la na luta contra a URSS com sabotagem e armas. Até o início dos anos 60, os insurgentes ucranianos eram apoiados pelo Ocidente através de operações clandestinas como Aerodinâmica, Valiosa, Minos, Capacho e outras.

Desde então, a Ucrânia tem mantido uma estreita relação com o Ocidente e a OTAN. Hoje, é a fraqueza do exército ucraniano que levou ao uso de tropas fanáticas de extrema-direita. Acho que o termo neonazismo não é totalmente exato, embora eles tenham idéias muito semelhantes, carreguem seus símbolos, sejam violentos e anti-semitas.

Após 2014, dois acordos foram assinados para pacificar a situação na Ucrânia. Qual é o significado dos acordos no contexto da disputa atual?

JB: Sim, é importante entender isto, porque a violação destes dois acordos levou basicamente à guerra de hoje. Desde 2014, supostamente havia uma solução para o conflito, esta solução estava nos acordos de Minsk. Em setembro de 2014, o exército ucraniano não podia mais administrar o conflito, apesar de ter sido aconselhado pela OTAN. Estava falhando regularmente. Por isso, teve que se comprometer com os acordos de Minsk I em setembro de 2014. Este foi um acordo entre o governo ucraniano e representantes das duas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, com garantes europeus e russos.

Como surgiu o nascimento dessas duas repúblicas?

JB: Para entender, temos que voltar um pouco atrás nesta história. No outono de 2013, a UE quis concluir um acordo comercial e econômico com a Ucrânia. A UE estava oferecendo à Ucrânia uma garantia de desenvolvimento com subsídios, com exportações e importações, e assim por diante. As autoridades ucranianas queriam fechar o negócio. Mas isto tinha um problema sério, a indústria e a agricultura ucranianas estavam orientadas para a Rússia. Por exemplo, os ucranianos estavam desenvolvendo motores para aeronaves russas, não para aeronaves europeias ou estadunidenses. Portanto, a orientação geral da indústria era para o Leste, não para o Oeste. Em termos de qualidade, a Ucrânia dificilmente poderia competir com o mercado europeu. Portanto, as autoridades quiseram cooperar com a UE, mantendo relações econômicas com a Rússia.

Isso teria sido possível?

JB: Por sua vez, a Rússia não teve nenhum problema com os planos da Ucrânia. Mas ela também queria manter suas relações econômicas com a Ucrânia. Por isso, propôs a criação de um grupo de trabalho tripartite para elaborar dois acordos: um entre a Ucrânia e a UE e um entre a Ucrânia e a Rússia. O objetivo era cobrir os interesses de todas as partes. Mas foi a UE, através de Barroso, que pediu à Ucrânia que escolhesse entre a Rússia e a UE. A Ucrânia pediu tempo para pensar em uma solução. Depois disso, a UE e os EUA não jogaram limpo.

Por que isso acontece?

JB: A imprensa ocidental publicou a manchete: “A Rússia pressiona a Ucrânia para evitar tratado com a UE”. Isso não era verdade. Este não foi o caso. O governo ucraniano continuou a mostrar interesse no tratado com a UE, mas simplesmente queria mais tempo para considerar soluções para esta situação complexa. Mas a mídia europeia não o disse. Nos dias seguintes, extremistas de direita do oeste do país apareceram na Maidan em Kiev. Tudo o que aconteceu lá com a aprovação e o apoio do Ocidente é realmente terrível. Mas detalhar tudo aqui é demais para explicar em uma entrevista.

O que aconteceu depois que Yanukovych, o presidente democraticamente eleito, foi derrubado?

JB: O novo governo interino – que emergiu do golpe nacionalista de extrema-direita – como seu primeiro ato oficial, mudou a lei linguística na Ucrânia. Isto mostra que o golpe não teve nada a ver com a democracia, mas foi produto dos ultranacionalistas que organizaram a revolta.

Esta mudança legal desencadeou uma tempestade nas regiões de língua russa. Grandes manifestações foram organizadas em todas as cidades de língua russa do sul, em Odessa, Mariupol, Donetsk, Lugansk, Crimeia, etc. As autoridades ucranianas reagiram brutalmente, reprimindo com o exército. As repúblicas autônomas foram brevemente proclamadas em Odessa, Kharkov, Dnepropetrovsk, Lugansk e Donetsk. Eles foram combatidos com extrema brutalidade e no final ficaram dois: Donetsk e Lugansk, que se autoproclamaram repúblicas autônomas.

Como eles legitimaram seu status?

JB: Eles tiveram referendos em maio de 2014, para ter autonomia, e isto é muito, muito importante. Se você olhar para nossa mídia nos últimos meses, eles só falam de “separatistas”. Mas isto é uma mentira: a mídia ocidental sempre falou de separatistas, mas isto é falso, os referendos mencionaram claramente a autonomia dentro da Ucrânia. Essas repúblicas queriam algum tipo de solução suíça, por assim dizer. Depois que o povo votou a favor da autonomia, as autoridades pediram o reconhecimento russo das repúblicas, mas o governo de Putin recusou.

A Crimeia também não está relacionada a isto?

JB: Geralmente esquecemos que a Crimeia era independente mesmo antes da Ucrânia se tornar independente. Em janeiro de 1991, enquanto a União Soviética ainda existia, a Crimeia realizou um referendo que foi administrado a partir de Moscou e não de Kiev. Tornou-se assim uma República Socialista Soviética Autônoma. A Ucrânia não realizou seu próprio referendo de independência até seis meses depois, em agosto de 1991. Naquela época, a Crimeia não era considerada parte da Ucrânia. Mas a Ucrânia não aceitou isto.

Entre 1991 e 2014, foi uma luta constante entre as duas entidades. A Crimeia tinha sua própria constituição com suas próprias autoridades. Em 1995, encorajada pelo Memorando de Budapeste, a Ucrânia derrubou o governo da Crimeia com forças militares e revogou sua constituição. Mas isto nunca é mencionado, pois lançaria uma luz completamente diferente sobre o desenvolvimento atual.

O que o povo da Crimeia queria?

JB: Na verdade, os criminosos se consideravam independentes. Os decretos impostos por Kiev estavam em total contradição com o referendo de 1991 e explicam porque a Crimeia realizou um novo referendo em 2014, depois que o novo governo ultra-nacionalista chegou ao poder na Ucrânia. Seu resultado foi muito semelhante ao de 30 anos antes.

Após o referendo, a Crimeia pediu para se juntar à Federação Russa. Não foi a Rússia que conquistou a Crimeia, foram as pessoas que autorizaram suas autoridades a pedir à Rússia que as acolhesse. No tratado de amizade entre a Rússia e a Ucrânia assinado em 1997, a Ucrânia garantiu a diversidade cultural das minorias no país. Quando o idioma russo foi proibido como idioma oficial em fevereiro de 2014, este tratado estava sendo violado.

As pessoas que não conhecem tudo isso correm o risco de julgar mal a situação?

JB: Penso que sim, e os Acordos de Minsk garantiram a autonomia das repúblicas de Donbass. A Alemanha do lado ucraniano e a França e a Rússia do lado das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Luhansk eram garantes. Eles desempenharam este papel dentro da estrutura da OSCE. A UE não estava envolvida, era um assunto da OSCE. Imediatamente após os Acordos de Minsk I, a Ucrânia lançou uma operação contra as duas repúblicas autônomas. O governo ucraniano ignorou completamente o acordo que havia acabado de assinar. O exército ucraniano sofreu outra derrota total em Debaltsevo. Foi um desastre.

Isso também aconteceu com o apoio da OTAN?

JB: Sim, e nos perguntamos o que os conselheiros militares da OTAN fizeram porque as forças armadas dos rebeldes derrotaram totalmente o exército ucraniano.

Isto levou a um segundo acordo, Minsk II, assinado em fevereiro de 2015, que foi a base para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Este acordo era, portanto, vinculativo sob o direito internacional e tinha que ser implementado.

Isto também tem sido monitorado pela ONU?

JB: Não, ninguém se importou, e além da Rússia, ninguém exigiu o cumprimento do acordo de Minsk II. De repente, falava-se apenas do formato da Normandia. Mas isso não fazia sentido. Esse “formato” nasceu durante as celebrações do Dia D, em junho de 2014. Antigos protagonistas da Segunda Guerra Mundial, Chefes de Estado Aliados, assim como a Alemanha e a Ucrânia, foram convidados. No formato da Normandia, apenas os chefes de Estado estavam representados, as repúblicas autônomas obviamente não estavam presentes. A Ucrânia nunca quis falar com os representantes de Lugansk e Donetsk. Mas, se você ler os acordos de Minsk, você verá imediatamente que um referendo deveria ter sido realizado para que a Constituição ucraniana pudesse ser emendada (no sentido federal). Este processo interno foi impedido pelo governo ucraniano.

Mas os ucranianos também assinaram o acordo…

JB: … sim, mas o governo ucraniano decidiu culpar a Rússia por seu problema interno. Os ucranianos afirmaram que a Rússia havia atacado a Ucrânia e que esta era a fonte dos problemas. Mas para todos nós que visitamos o país, ficou claro que se tratava de um problema interno. Desde 2014, os monitores da OSCE nunca viram unidades militares russas. Ambos os acordos são muito claros e precisos: a solução deve ser encontrada dentro da Ucrânia. Tratava-se de conceder alguma autonomia dentro do país, e somente a Ucrânia poderia resolver esse problema. Não teve nada a ver com a Rússia.

Para isso, era necessário um ajuste à constituição?

JB: Sim, exatamente, mas isso não foi feito. A Ucrânia não tomou nenhuma medida a esse respeito. Os membros do Conselho de Segurança da ONU também não se comprometeram.

Como a Rússia se comportou?

JB: A posição da Rússia sempre foi a mesma. Ele queria que os Acordos de Minsk fossem implementados. Nunca mudou sua posição durante oito anos. Durante esses oito anos, houve várias violações de fronteiras, bombardeios de artilharia, etc., mas a Rússia nunca questionou a implementação dos acordos.

Como a Ucrânia procedeu?

JB: A Ucrânia aprovou uma lei no início de julho do ano passado. Foi uma lei que confere diferentes direitos aos cidadãos, dependendo de sua etnia. Esta legislação faz muito lembrar as leis raciais de Nuremberg de 1935. Somente os verdadeiros ucranianos têm plenos direitos, enquanto outros têm apenas direitos limitados.

Logo depois disso, Putin escreveu um artigo no qual explicava a gênese histórica da Ucrânia. Ele criticou o fato de que poderia ser feita uma distinção entre os ucranianos e os russos. Ele escreveu o artigo em resposta a esta lei. Mas, na Europa, isto foi interpretado como não reconhecendo a Ucrânia como um Estado, e que seu artigo procurava justificar uma possível anexação da Ucrânia. No Ocidente, as pessoas acreditam nisso, e aqueles que leram o artigo de Putin são contados com os dedos de uma mão. É óbvio que, no Ocidente, o objetivo era tornar a imagem de Putin o mais negativa possível. Eu li o artigo; faz todo o sentido.

O que os russos esperavam de Putin?

JB: Há muitos russos na Ucrânia. Putin tinha que dizer algo. Não teria sido correto para seu povo (também do ponto de vista do direito internacional) não dizer nada diante de uma lei discriminatória contra os russos ucranianos. Todos esses pequenos detalhes são uma parte importante do conflito, caso contrário, não entendemos o que está acontecendo. Esta é a única maneira de colocar o comportamento de Putin em perspectiva e de ver os mecanismos que provocaram a guerra. Não posso dizer se Putin é bom ou ruim. Mas o julgamento que fazemos dele no Ocidente é claramente baseado em elementos falsos.

O que você acha da reação da Suíça, com o fim da neutralidade?

JB: É um desastre. A Rússia elaborou uma lista de 48 “Estados hostis”, e a Suíça também faz parte dela. Esta é realmente uma mudança epocal, mas pela qual a própria Suíça é responsável. A Suíça sempre foi “o personagem do meio”. Facilitamos o diálogo com todos os Estados e tivemos a coragem de estar “no meio”. Há histeria em relação às sanções. A Rússia está muito bem preparada para esta situação, vai sofrer, mas está preparada para suportar seu impacto. No entanto, o princípio das sanções é totalmente errado. Hoje em dia, as sanções substituíram a diplomacia.

Já vimos isso com a Venezuela, com Cuba, Iraque, Irã e assim por diante. Estes estados nada mais fizeram do que ter uma política que não agrada aos Estados Unidos. Quando vejo que os atletas deficientes foram suspensos dos Paraolímpicos, fico sem palavras. É totalmente inapropriado. Afeta as pessoas individualmente, é simplesmente perverso. É tão cruel como quando o Ministro das Relações Exteriores francês diz que o povo russo deve sofrer sanções. Quem disser isso não tem honra aos meus olhos. Não há nada de positivo em começar uma guerra, mas reagir assim é simplesmente vergonhoso.

O que você acha quando as pessoas tomam as ruas contra a guerra na Ucrânia?

JB: Eu me pergunto: o que torna a guerra na Ucrânia pior do que a guerra contra o Iraque, Iêmen, Síria ou Líbia? Nesses casos, sabemos que não houve sanções contra o agressor, os EUA, quem se manifesta pelo Iêmen, quem se manifesta pela Líbia, quem se manifesta pelo Afeganistão? Não sabemos por que os EUA estavam no Afeganistão. Sei de fontes de inteligência que nunca houve uma indicação clara de que o Afeganistão ou Osama bin Laden estivesse envolvido nos ataques de 11 de setembro, mas de qualquer forma fomos para a guerra no Afeganistão.

Por que isso acontece?

JB: Em 12 de setembro de 2001, logo após os ataques terroristas, os EUA decidiram retaliar e bombardear o Afeganistão. O Chefe de Pessoal da Força Aérea dos EUA disse que não havia alvos suficientes no Afeganistão. Ao que o Secretário de Defesa respondeu: “Se não tivermos alvos suficientes no Afeganistão, bombardearemos o Iraque”. Isto não foi inventado por mim, há fontes, documentos e pessoas que estavam lá. Esta é a realidade, mas a propaganda e a manipulação nos enviesam permanentemente para o lado “certo”.

De suas respostas, você acha que o Ocidente há muito tempo vem adicionando combustível ao fogo e provocando a Rússia, mas essas provocações raramente são relatadas em nossa mídia e Putin é retratado como um belicista, um monstro?

Meu avô era francês, ele foi soldado na Primeira Guerra Mundial. Ele me contou muitas vezes como começou esta guerra, ela foi o produto de um estímulo à histeria de massa. A histeria, a manipulação e o comportamento imprudente dos políticos ocidentais é muito semelhante ao que estava acontecendo em 1914 e isso me preocupa muito. Quando vejo como nosso país neutro não é mais capaz de assumir uma posição independente da UE e dos EUA, fico envergonhado. Precisamos ser lúcidos, racionais e conhecer os fatos por trás do barulho da mídia. Essa é a única maneira de a Suíça ter uma política de paz razoável.

NOTA

*Jacques Baud tem mestrado em Econometria e pós-graduação em Segurança Internacional pelo Instituto de Relações Internacionais de Genebra e é ex-coronel do Exército Suíço. Ele trabalhou para o Serviço Suíço de Inteligência Estratégica e foi consultor para a segurança dos campos de refugiados no Leste do Zaire durante a guerra ruandesa (ACNUR-Zaire/Congo, 1995-1996). Ele trabalhou para a ONU DPKO (Departamento de Operações de Manutenção da Paz) em Nova Iorque (1997-99), fundou o Centro Internacional de Desminagem Humanitária de Genebra (CIGHD) e o Sistema de Gerenciamento de Informações para Ação de Minas (IMSMA). Ele ajudou a introduzir o conceito de inteligência nas operações de manutenção da paz da ONU e liderou o primeiro Centro Conjunto de Análise de Missões da ONU (JMAC) integrado no Sudão (2005-06).

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.