Meu amigo Fritz Müller. Por Viegas Fernandes da Costa

Fritz Müller

Por Viegas Fernandes da Costa.

Eu tinha onze anos quando conheci Fritz Müller, meu primeiro herói. Foi o professor Edson Schroeder quem mo apresentou, durante uma aula de ciências na Escola Básica Municipal Machado de Assis. O velho barbudo escorado em um cajado, pés descalços, chapéu largo, calça de sarja, bolsa à tiracolo. Que figura! Amigo do Darwin, poliglota que lia do alemão ao russo, um doido perdido nos trópicos, materialista. Tão materialista que abriu mão do diploma de médico porque se negou ao juramento em nome de Deus. Como fora parar às margens do rio Itajaí-Açu na metade do século dezenove era coisa de se admirar. Johann Friedrich Theodor Müller, o homem que desde ás margens das margens do mundo primeiro colocou em prática a teoria da evolução das espécies e cujas observações são citadas diversas vezes por Charles Darwin já na quarta edição da sua obra revolucionária.

Hoje a cidade de Blumenau o chama carinhosamente de Fritz. Não Johann Friedrich, mas Fritz, como sói aos íntimos, aos afetos. E isto é curioso, porque tão logo chegado à colônia do especulador imobiliário Hermann Blumenau, em 1852, gerou desconforto. Hermann, autoritário que era, pretendia uma colônia de cristãos com a cara enfiada na terra. Liberdade de expressão era coisa que não se cogitava na Blumenau do severo e amargo Hermann, que dentre outras medidas, proibiu a existência da imprensa durante o longo período em que administrou a colônia como se fosse seu próprio curral. Que dizer, então, da liberdade de pensamento? Como aceitar no convívio colonial um materialista que tentava compreender o mundo a partir das leis naturais e não das leis divinas? Por isso não surpreende que Hermann tenha empurrado Fritz Müller para o outro lado do rio, mantendo-o distante do pequeno núcleo urbano, e na sequência convencido o presidente da província (como eram chamados os governadores à época) a contratar o naturalista alemão como professor no Liceu Provincial de Desterro. Ironia por ironia, o segundo desterro de Fritz Müller, que primeiro abandonou a Prússia e depois foi empurrado para fora do Vale do Itajaí. E foi em Desterro, morando à beira do mar, que Fritz Müller leu Darwin e se pôs a observar os crustáceos em busca da comprovação da teoria da evolução das espécies. Enquanto uns voltavam seus olhos para Deus, Fritz voltou seus olhos para a larva dos crustáceos, e na larva encontrou a chave para os mistérios da evolução da vida.

Fritz Müller depois de pouco mais de uma década, volta a Blumenau e sobrevive à administração de Hermann como pesquisador do Museu Nacional; um funcionário do governo imperial, portanto. Com um microscópio singelo, pequena biblioteca e imensa curiosidade e capacidade de observação, entrega-se ao laboratório vivo da mata atlântica: a flora, a fauna, o solo e até o fantástico são objeto dos seus estudos. Suas cartas aos amigos cientistas espalhados pelo mundo não raro são publicadas como comunicações científicas em revistas prestigiadas como a Nature. Escreve poemas para a alfabetização das filhas, colabora com a imprensa local, viaja pela província de Santa Catarina, descobre novas espécies e comportamentos da natureza. Da margem da margem do mundo, descalço e hirsuto, participa da produção da mais refinada ciência da sua época e se comunica com os principais cientistas do seu tempo. Do interior de um Vale em meio à mata, Fritz Müller foi protagonista na principal revolução científica do século dezenove.

Com o golpe militar que instaurou a República, Fritz Müller foi demitido do Museu Nacional, e durante a ditadura do Marechal Floriano Peixoto, por pouco não foi enviado para ser fuzilado junto aos federalistas na fortaleza de Anhatomirim. Fritz, afinal, nunca gostou de botas.

Morreu pobre em 1897, amado por alguns, odiado por muitos, mas com a dignidade de poucos. A cidade que o desterrou e depois quase o enviou às balas, em 1929 inaugurou um monumento em sua desomenagem: em bronze e granito um Fritz Müller de traços fortes, sentado em um trono, a mão segurando o queixo, vestindo roupas de gala e os pés calçados. O cinzel de Freyholfer matou Fritz no Vale do Itajaí por muito tempo apresentando-o como uma caricatura de Pedro II. O Fritz cuja casa frequentei na adolescência oitenta e nove anos após a sua morte, e que me foi apresentado pelo professor Edson Schroeder, sempre foi um homem de espírito livre, um homem do mundo apesar de viver na colônia, um sábio misturado na floresta. O Fritz que conheço é o amigo que completa agora dois séculos de nascimento e ensina, a cada dia, que é preciso coragem para se ser aquilo que se é, e que o mundo é bonito mesmo nos mistérios de uma pequena larva.

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