Menos investimento e proibição: os desafios enfrentados pela seleção feminina de futebol fora de campo

A Seleção feminina antes de seu primeiro jogo da Copa do Mundo de 2023. Foto: VCG Getty Images

“As coisas não acontecem de um dia para o outro.”

Com essa frase, a maior artilheira de todos os tempos do futebol brasileiro, masculino ou feminino, se despediu das Copas do Mundo, após a eliminação da Seleção na fase de grupos na Austrália nesta quarta-feira (2/8).

Marta representou o Brasil em seis Mundiais e conquistou seis vezes o prêmio de melhor jogadora da Fifa. Mas apesar de acumular recordes em seu currículo, nunca conquistou um título.

Desde a primeira edição oficial da Copa feminina, em 1991, a melhor posição conquistada pelo Brasil foi o segundo lugar em 2007.

A realidade contrasta diretamente com os resultados obtidos pela Seleção masculina, que é considerada a mais bem-sucedida da história do futebol mundial, com cinco títulos em Copas do Mundo.

Para especialistas consultadas pela BBC News Brasil, a diferença no desempenho e na confiança incitada pelas suas equipes pode ser explicada principalmente pela discrepância no investimento e pelos anos em que as mulheres foram impedidas de jogar no país.

Paralisação de quase 4 décadas

De acordo com historiadores, a principal razão para a desigualdade é a profissionalização tardia da modalidade no Brasil, após quase quatro décadas de proibição entre 1941 e 1979.

O veto foi instaurado pelo governo de Getúlio Vargas, sob o pretexto de que o futebol era um esporte violento demais para as mulheres, que poderia afetar suas funções orgânicas e capacidade de serem mães.

O decreto 3.199, que estabelecia “as bases de organização dos desportos em todo o país”, afirmava em seu artigo 54 que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”.

Matéria no jornal 'O Imparcial' em 1941 sobre futebol feminino
Matéria no jornal ‘O Imparcial’ em 1941 sobre futebol feminino. Fonte: Acervo Fundação Biblioteca Nacional – Brasil

O documento não mencionava sanções, dando margem para que cada delegacia impusesse as suas. Não há registros, no entanto, de mulheres presas por violar a ordem. Geralmente, elas eram detidas e liberadas logo após prestar depoimento.

Ainda assim, segundo Júlia Barreira, professora do curso de Educação Física da Unicamp, o período de proibição afetou profundamente o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil.

“As meninas e mulheres desafiaram o decreto, ocuparam os campos de várzea e se organizaram em espaços periféricos para continuar praticando a modalidade, mas perderam totalmente as competições e organizações esportivas que as apoiavam”, diz.

“Passamos quase quatro décadas sem competições oficiais para que elas praticassem e se desenvolvessem, estrutura para apoiá-las ou formação de treinadores e treinadoras com qualificação para trabalhar especificamente com esse grupo.”

Mesmo com o fim da proibição em 1979, o futebol feminino só foi devidamente regulamentado em 1983.

“Ao mesmo tempo em que o futebol feminino está proibido, o masculino tem um progresso e ascensão e conquista seu tricampeonato”, diz a historiadora Aira Bonfim, especializada em futebol feminino.

“Olhar para tudo isso nos ajuda a entender todos os paradigmas. Mesmo após a proibição, muito se falava sobre o futebol feminino não ser interessante para o Brasil ou não ter tradição.”

“É uma grande mentira que não temos tradição, porque a história do esporte não está só associada à oficialidade. Mas é inegável que a proibição limitou o desenvolvimento da modalidade.”

Segundo as especialistas consultadas pela BBC News Brasil, o período de veto também ajudou a construir parte do estigma social associado ao futebol feminino, já que boa parte da identidade nacional associada ao esporte também foi construída nessa época, deixando as mulheres de fora.

Investimentos e salários

Para Nathália Pessanha, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), outro fator crucial para analisar a situação de forma correta é o apoio recebido pelas equipes.

“A situação melhorou muito de 2019 para cá, o futebol feminino passou por um boom com a transmissão de Campeonato Brasileiro na televisão aberta, patrocínios nas camisas, investimento em seleções de base e, claro, com a criação de uma camisa própria para a Seleção – já que antes elas jogavam com uma versão masculina, com cinco estrelas no escudo”, diz.

Mas nada disso se compara ao investimento recebido pelo futebol masculino.

Em 2022, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) destinou aproximadamente R$ 200 milhões à seleção masculina principal. Outros R$ 70 milhões foram divididos entre o time feminino e sete seleções de base, segundo dados divulgados pelo próprio órgão.

A CBF é responsável pelos custos relativos à comissão técnica, delegações, passagens, alimentação, hospedagens e demais itens necessários à operação e desenvolvimento das equipes, nas competições e amistosos de preparação, realizados ao longo do ano.

Além disso, segundo Pessanha, os salários e comissões significativamente mais baixos recebidos pelas atletas mulheres também podem impactar a realidade atual, ainda que não sejam definitivos para um bom desempenho.

“Não dá para comparar investimento, não dá para comparar marketing e não dá para comparar salário”, diz.

“E o salário impacta diretamente na condição que aquela atleta vai entrar em campo, na condição de vida que aquela pessoa vai dar para sua família, porque querendo ou não o futebol no Brasil é um elemento de crescimento social.”

“E aí tem gente que fala ‘mas o Neymar é muito mais famoso do que a Marta’. A Marta ganhou seis títulos de melhor jogadora do mundo”, completa.

A CBF anunciou em 2020 a igualdade de salários entre homens e mulheres na Seleção – isto é, enquanto estão convocados eles recebem o mesmo valor diário para treinar e representar o Brasil nos jogos.

No entanto, em parte dos campeonatos, como a Copa do Mundo, os valores seguem bem diferentes: ao anunciar a igualdade de salários em 2020, a CBF informou que as premiações serão proporcionais ao repasse da Fifa para cada modalidade.

Nas ligas nacionais e equipes privadas, a realidade também é de desigualdade. Marta joga atualmente na liga americana pelo Orlando Pride e recebe anualmente um salário de US$ 400 mil.

Em comparação, a jogadora ganha por ano menos de 1% que Neymar, atacante do Paris Saint-Germain que ganha US$ 50 milhões por temporada, de acordo com a revista Forbes.

Marta é, inclusive, uma das maiores ativistas pela igualdade de salários e investimentos no futebol atualmente. Na última Copa, ela dispensou patrocínios e entrou em campo usando uma chuteira com o símbolo da igualdade nas cores azul e rosa, criado pela campanha ‘GoEqual’.

“A Marta atleta se sente realizada. Mas o maior sonho mesmo é sentir que a nossa modalidade está caminhando para frente”, afirmou a jogadora em uma entrevista à CBF em 2018.

Que o futebol feminino não é só uma promessa. É uma realidade. Que as meninas possam mesmo sonhar em ser atletas, seguir uma carreira, viver do futebol. Sentar depois no futuro, na minha casa, no sofá e ver o futebol feminino na TV como algo normal, constante”, defendeu.

“Existe uma ideia muito forte de que as mulheres têm que se provar, tem que gerar renda para que os patrocínios e salários cresçam. Mas aí entramos em um ciclo sem fim, por que como as mulheres podem provar que geram renda se não tem patrocínio ou transmissão?”, questiona Pessanha.

Desenvolvimento de liga nacional

A especialista afirma ainda que a existência de ligas nacionais bem consolidadas, com times de base, é essencial para o desenvolvimento de um esporte. Mas no Brasil atualmente os progressos nesse setor ainda acontecem muito lentamente.

“Ter boas seleções de base e campeonatos estruturados são elementos essenciais para formar e revelar novas jogadoras, que no futuro vão renovar a atual Seleção”, diz.

“Fora que um campeonato bem estruturado ajuda a vender o esporte dentro do país. Quanto mais times competindo em alto rendimento, mais torcedores começam a acompanhar.”

Desde 2019, os clubes masculinos da Série A do Campeonato Brasileiro e da Libertadores são obrigados a ter elencos femininos. O Brasileirão feminino também conta com três séries desde 2022, e mais quatro campeonatos de futebol feminino foram lançados no ano passado.

“Progredimos muito nesse setor, mas ainda temos muito a avançar”, diz Pessanha.

Quando se trata do futebol nacional, outro parâmetro importante é o interesse dos patrocinadores pelas equipes, segundo a pesquisadora.

Quando estreou, em fevereiro de 2023, a atual edição do Campeonato Brasileiro feminino contava com um apoio externo de patrocinadores recorde, mas que não chega nem perto dos valores da mesma competição para homens.

No total, somando as 16 equipes, são 80 patrocínios presentes no campeonato de mulheres, contra 134 na série A do Brasileirão masculino.

Celebrar as conquistas

Mas segundo Nathalia Pessanha, é importante também celebrar as conquistas, apesar das adversidades.

“Se analisarmos o panorama de 10 anos atrás, vemos o quanto progredimos e o quanto a Seleção Feminina tem conquistado”, diz.

Além de ter ganhado seis vezes a Copa América de Futebol e três Pan-americanos, a brasileira é considerada uma das melhores seleções de futebol feminino do mundo e sempre está bem posicionada no ranking da FIFA.

Em 2011, o Brasil ainda encerrou a primeira fase da Copa do Mundo de Futebol Feminino na Alemanha com 100% de aproveitamento e a melhor campanha dentre as 8 seleções que se classificaram para a segunda fase: 3 vitórias em 3 jogos, 7 gols marcados e nenhum sofrido

“Se a sociedade entender que a igualdade é necessária, o desenvolvimento pode acontecer também por meio da pressão social, seja sobre as entidades esportivas ou sobre as empresas e campanhas de marketing.”

Antes do jogo desta quarta, em uma entrevista coletiva, Marta também ressaltou a importância do legado.

“Sabe o que é legal? Eu não tinha uma ídola no futebol feminino. Vocês (imprensa) não mostravam o futebol feminino. Como eu ia entender que eu poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma referência? Hoje a gente sai na rua e os pais falam. ‘Minha filha quer ser igual a você’. Hoje temos nossas próprias referências. Não teria acontecido isso sem superar os obstáculos. É uma persistência contínua.”

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