A organização de ajuda humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) reconheceu nesta quarta-feira (14) que, no ano passado, registrou 24 casos de assédio ou abuso sexual por seus profissionais. O anúncio vem em um momento desafiador para o setor humanitário, em que a ONG britânica Oxfam enfrenta críticas internacionais por denúncias de que foi omissa diante de casos de exploração sexual de menores e mulheres por seus funcionários no Haiti e em outros países.
Segundo a MSF, de 146 denúncias ou alertas recebidos em 2017, 40 casos de abuso ou assédio foram documentados após investigações internas, dos quais 24 foram de abuso ou assédio sexual. Dentre estes, em dois casos as vítimas eram pacientes ou pessoas de comunidades assistidas. Nos 24 casos em que houve abuso ou assédio sexual, 19 pessoas foram demitidas e as outras cinco foram punidas com advertências ou suspensões. O comunicado da organização não diz onde ocorreram os casos. A organização tem 40 mil funcionários permanentes em todo o mundo.
A MSF disse acreditar que os casos de má conduta reportados não correspondem ao número real, e que há barreiras “semelhantes às encontradas na sociedade em geral” para que abusos sejam denunciados, “incluindo o medo de não ser levado a sério, do estigma e de possíveis represálias”.
“Nossa maior prioridade é reforçar nossos mecanismos de denúncia e trabalhar para garantir que todos – de visitantes vindos das sedes da organização até membros da comunidade e pacientes – estejam conscientes desses processos, de como acessá-los e de proteger as vítimas e denunciantes em todos os momentos. Alcançar e manter um ambiente de trabalho livre de abuso e assédio é um esforço contínuo, pelo qual somos todos responsáveis. Nós também nos comprometemos a não prejudicar as pessoas vulneráveis que estamos nos esforçando para ajudar”, disse a MSF em nota.
Diferentemente do que acontece com o orçamento da Oxfam, que é 43% proveniente de verbas governamentais ou de organismos públicos, mais de 90% do orçamento da MSF depende de doações individuais, principalmente de pessoas físicas. Por isso, a organização é suscetível a qualquer escândalo que abale sua imagem na opinião pública.
MSF deixou de receber fundos de agências dos Estados Unidos em 2004, sob o argumento de que havia conflito de interesses devido às muitas guerras em que o país estava envolvido, e dos países da União Europeia em 2016, em reação às políticas do bloco que tentavam conter a chegada de refugiados do conflito na Síria e em outros países.
Só no Brasil, onde tem um escritório no Rio de Janeiro, MSF tem cerca de 400 mil doadores. No mundo, são mais de 6 milhões. A organização tem uma sede internacional em Genebra e cinco centros operacionais na Europa: em Bruxelas, Barcelona, Amsterdã, Paris e Genebra.
No caso da Oxfam, a Comissão de Filantropia, agência reguladora do setor beneficente no Reino Unido, anunciou a abertura de inquérito para apurar se a organização foi omissa na investigação das denúncias de que funcionários no Haiti usaram dinheiro da ONG para contratar prostitutas, que incluiriam menores de idade. Na terça-feira, o órgão disse estar recebendo anualmente mais de mil denúncias de abuso sexual envolvendo ONGs britânicas que trabalham com crianças ou pessoas em situação vulnerável.
O escândalo teve início na semana passada, quando o jornal “The Times” publicou uma reportagem mostrando que a diretoria da Oxfam — que tem mais de 23 mil funcionários — colocou panos quentes nas denúncias sobre assédio e exploração sexual no Haiti durante os esforços de ajuda humanitária após o terremoto de 2010. A Oxfam teria demitido quatro pessoas e permitido que outras três pedissem demissão sem denunciá-las.
A Oxfam também está em maus lençóis com o governo britânico, que ameaça congelar o repasse de verbas. Anteontem, a ministra do Desenvolvimento Internacional, Penny Mordaunt, disse que o grupo cometeu uma falha moral ao lidar com o problema e disse que precisará ser convencida de que a Oxfam pretende corrigir o erro. Quem também ameaça congelar fundos é a União Europeia, que no último ano repassou o equivalente a US$ 40 milhões para a ONG.
Nesta quarta-feira, a ministra Mordaunt subiu ainda mais o tom, ameaçando suspender o financiamento a organizações não governamentais que atuam no exterior se elas não aprenderem as lições do caso Oxfam, e disse que responsáveis por abusos poderão ser levados à Justiça por crimes cometidos no exterior.
“A menos que vocês protejam todos com os quais sua organização entra em contato, incluindo beneficiários, funcionários e voluntários, não financiaremos vocês”, disse ela numa conferência de organizações de ajuda ao desenvolvimento em Estocolmo. “A menos que vocês criem uma cultura que dê prioridade à segurança de pessoas vulneráveis e garanta que as vítimas e denunciantes possam falar sem medo, não trabalharemos com vocês. E a menos que vocês reportem todo incidente sério ou violação, não importa o quão danoso for para sua reputação, não podemos ser parceiros.”
O orçamento para ajuda internacional do Reino Unido em 2016, último número fechado, foi equivalente a US$ 18 bilhões. A maior parte dessa verba é canalizada por meio de organizações não governamentais.
Um levantamento divulgado pelo jornal “Independent” acusa a Oxfam de ser ainda uma espécie de campeã de denúncias de assédio sexual, com 87 incidentes no ano passado, em uma lista que inclui outra ONG britânica de destaque, a Save the Children (31 casos).
FALTA DE TRANSPARÊNCIA
No ano passado, a agência de notícias Reuters pediu que dez grandes agências de assistência humanitária fornecessem dados sobre registros de casos de abuso sexual, detalhando quantos funcionários haviam sido demitidos em consequência. No entanto, apenas seis delas se dispuseram a fornecer as informações sobre o tema.
À época, apenas a Save The Children e a Oxfam forneceram os números imediatamente, relatando 16 e 22 demissões no ano passado, respectivamente. A MSF e o Conselho Norueguês de Refugiados (CNR) responderam à solicitação vários dias depois.
E apenas recentemente outros dois grupos responderam, após o surgimento do escândalo da Oxfam. A Visão Mundial disse que houve 10 casos registrados em 2016 de exploração ou abuso infantil envolvendo as suas atividades. E a agência Christian Partners Development Agency (CPDA) relatou quatro casos de assedio sexual em seus locais de trabalho dentre os seus 50 mil voluntários e funcionários.
Por sua vez, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a Plan International, a CARE International e o Comitê de Resgate Internacional não forneceram as informações solicitadas.