Por Iná Camargo Costa.
III
No 18 Brumário, Marx faz uma observação muito pertinente para a situação em que nos encontramos: “As revoluções proletárias […] se autocriticam constantemente, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçarem de novo; escarnecem com impiedoso rigor as meias medidas, fraquezas e misérias dos seus primeiros esforços; parecem derrubar seu adversário só para que este arranque da terra novas forças e diante delas se erga novamente, ainda mais gigantesco; recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos, até se criar uma situação que torna impossível qualquer retrocesso”[1].
Períodos como o que estamos atravessando, de ascensão do fascismo, nos colocam diante da necessidade de recomeçar tudo de novo. Aqui nos limitaremos ao trabalho da memória na frente cultural com o próprio marxismo como elemento central para nos dar régua e compasso.
Lembremo-nos, por exemplo, de que a tradição socialista e comunista é rica em confrontos, divergências e polêmicas infindáveis. Deles é que o marxismo tira a sua força e capacidade de avançar. Para uma pequena amostra desta ampla matéria, basta remeter a clássicos como o Manifesto comunista e Do socialismo utópico ao científico, este último da lavra de Engels. Nestas duas obras nos defrontamos com o socialismo reacionário dos aristocratas que sonham com a volta ao feudalismo, o socialismo conservador da burguesia, além do socialismo e do comunismo crítico-utópicos. Socialismo científico vem a ser uma denominação entre outras do marxismo, que suprassume todos os conceitos anteriores.
O próprio marxismo acabaria produzindo outra multiplicação de denominações. Por exemplo: marxismo legal, surgido na Rússia do século XIX, os marxismos economicista, reformista e/ou revisionista; marxismo empedernido (na formulação de Lenin em 1906); marxismo ortodoxo (na concepção de Lukács), o marxismo-leninismo dos stalinistas e assim por diante, até culminar na relativamente recente formulação de Perry Anderson – marxismo ocidental. Isto sem falar em outra preciosa contribuição inglesa, a de Raymond Willliams, que impulsionou a formação da ala do materialismo cultural[2], atuante até hoje na Inglaterra e nos Estados Unidos. Todas estas “escolas” constituem a nossa herança. Temos que no mínimo cultivar dialeticamente a sua memória pois, como aprendemos com Hegel, é com ela que forjaremos as armas com que confrontar os neoassaltantes de beira de estrada atualmente na ativa.
Sobre marxismo ocidental e materialismo cultural, vale a pena fazer uma pausa, pois a nossa hipótese é que os luminares do “marxismo cultural-espectral” assaltaram a obra de Perry Anderson[3], assim como a produção dos discípulos angloamericanos de Raymond Williams. Anderson subsume ao conceito de marxismo ocidental autores como Gramsci, Lukács, Escola de Frankfurt… Não são os mesmos mobilizados pela versão fantasmática? Outra demarcação do marxista inglês: os integrantes do marxismo ocidental atuariam de preferência no âmbito da cultura e do debate teórico (exceção feita a Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, cuja principal contribuição ao marxismo cultural – incluídas as reflexões sobre Maquiavel – foi produzida no cárcere fascista e, por isto mesmo, à revelia), enquanto os marxistas tout court (os clássicos: Marx, Engels, Plekhanov, Lenin, Rosa Luxemburg, Trotsky…), além de debaterem amplamente as questões culturais, também eram ligados à militância revolucionária, ou seja, vinculados a partidos, tanto da tradição socialista quanto da comunista[4], o que não se aplica aos integrantes da Escola de Frankfurt.
Dando continuidade a esta primeira pausa, não é demais lembrar uma outra consideração de Engels a propósito da luta de classes em todas as frentes, inclusive a cultural: “todas as lutas históricas, quer se processem no domínio político, religioso, filosófico, ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade apenas a expressão mais ou menos clara de lutas entre as classes sociais”[5].
Luta de classes é a principal marca registrada do marxismo, mas é bom não esquecer que sua mais importante determinação é a da crítica ao capitalismo, cifrada no subtítulo do Capital: crítica da economia política. Importa insistir nisto, porque nosso ponto de honra é a luta pelo fim do sistema capitalista, de modo que o inimigo – que defende a continuidade do capitalismo – tem bons motivos para temer os comunistas. Somos inimigos mesmo: nós combatemos as relações de produção capitalistas, a verdadeira causa de todas as misérias – econômicas, sociais, políticas e culturais – atualmente existentes. Sendo assim, podemos e devemos dar razão a eles quando brandem o “marxismo cultural” contra nós, mas precisamos corrigir as suas falácias, falta de percepção e seus erros elementares, decorrentes de medo, ignorância e incapacidade para o pensamento.
Dialeticamente, para um marxista, o marxismo cultural (sub specie spectrum) nada mais é que a fusão operada pelo inimigo entre marxismo ocidental e materialismo cultural, numa operação ideológica que requenta, além de mal e porcamente reciclar, a marmita nazista. Segue-se que, para além do recurso aos nossos clássicos, devemos incorporar ao trabalho do pensamento na frente cultural todos os autores e obras que Perry Anderson examinou em seu livro – com destaque particular para a Escola de Frankfurt e Gramsci –, bem como os procedimentos e sugestões de Raymond Williams em sua profícua trajetória de pensador das relações entre cultura e luta de classes na Inglaterra. Estudar, por exemplo, O eclipse da razão, de Max Horkheimer e o capítulo “Indústria cultural, o iluminismo como mistificação das massas” do livro Dialética do iluminismo, também de Adorno e Horkheimer. Estes trabalhos foram elaborados num contexto de reflexão sobre a pergunta “como foi possível o surgimento da barbárie nazista?”. Para uma visão ampla do trabalho dos frankfurtianos, os brasileiros ainda temos a sorte de dispor da antologia publicada pela editora Abril na coleção Os Pensadores, Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas, trabalho coletivo que contou com o enérgico apoio (consultoria) de dois grandes marxistas culturais especialistas no assunto: Otília e Paulo Arantes.
Gramsci, em seus Cadernos do cárcere, tem inspiradoras análises dos desafios postos aos intelectuais pela presença e dominação cultural da Igreja Católica na Itália[6], cuja condição de empresa privada que obteve status de Estado graças aos fascistas, (pelo Tratado de Latrão em 1929), foi examinada no artigo “O Vaticano”, publicado na revista Correspondência Internacional em 1924. Ali Gramsci afirma sem meias palavras que o então papa Pio XI apoiou o golpe de estado do fascismo e declara que, além de contar em seus quadros com indivíduos de habilidade consumada na arte da intriga, o Vaticano é a maior força reacionária da Itália e um inimigo internacional do proletariado.
Encampando, além das acima enumeradas, as sugestões de Raymond Williams, o campo prioritário de atuação dos marxistas culturais vem a ser a esfera da cultura pautada pela luta de classes em todos os seus desdobramentos e seu olhar deve estar direcionado preferencialmente para os artistas e obras que, ao longo da história do capitalismo, tematizaram as lutas pela emancipação dos trabalhadores em todas as suas modalidades, sem prejuízo do interesse por aquelas obras que, a exemplo do que fez Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, desmascaram os comportamentos da classe dominante.
É assim que temos basicamente dois momentos nesta produção cultural: a da luta contra a escravidão propriamente dita – em especial a dos africanos, mas no caso de países de continentes como o americano também a dos nativos – e a da luta contra a escravidão salarial (esta é uma das expressões que Marx utiliza em diversas obras, inclusive O Capital). A causa pela qual lutamos é libertar o proletariado das relações de produção capitalistas – nunca é demais insistir –, e desde que foi fundada a Internacional Comunista (1919), um desdobramento que sintetiza estas pautas é a luta contra a dominação colonial. Portanto, aos marxistas culturais interessam todos os episódios de confronto com o colonialismo e o imperialismo, a começar pela Revolução do Haiti (1791-1804), até as vitoriosas guerras que os vietnamitas travaram contra Japão, França e Estados Unidos, passando por revoluções como a cubana e pelas guerras de libertação de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, entre outras. E só para adiantar um tópico: você sabia que o sucesso mundial de 1967, Pata pata, de Miriam Makeba, apoiada por Harry Belafonte, serviu para arrecadar fundos para tirar lutadores contra o apartheid das prisões sul africanas? Eis uma das milhares de histórias que interessam a um militante comunista do autêntico marxismo cultural!
Marxismo cultural pode muito bem servir de senha para nos voltarmos ao que realmente interessa no plano cultural. Enumeremos alguns exemplos para começo de conversa. Como estamos no Brasil, nossa primeira prioridade é a luta de resistência dos africanos às condições de escravidão, cuja figura mais antiga é o quilombo[7]. Palmares e Zumbi são ainda hoje fonte inesgotável de inspiração. Marxistas culturais brasileiros têm em Zumbi uma espécie de ancestral e já contam com respeitável tradição de abordagens da sua luta, com erros e acertos. Neste item entram evidentemente Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, autores da obra prima Upa, neguinho!, gravada por Elis Regina e integrante do espetáculo Arena conta Zumbi. Mas não podemos nos esquecer de que foi Abdias Nascimento[8] quem abriu os olhos do jovem Augusto Boal para importância desta questão.
Ainda no capítulo da denúncia e da luta contra a escravidão, o marxismo cultural tem muito o que aprender com os afroamericanos. Para ficar só num exemplo, existe um spiritual, Swing low, sweet chariot, que foi adotado pelos abolicionistas como senha para a fuga organizada de escravos. Uma organização clandestina (a Underground Railroad, ou estrada clandestina) fazia chegar a determinada plantação a notícia de que uma carroça passaria à noite para levar os fugitivos designados. Durante o dia, o líder dos trabalhadores cantava “swing low, sweet chariot” (balance de leve, querida carroça) e o coro respondia “coming for to carry me home” (que vem para me levar para casa – casa, aqui, significa liberdade). Todos ficavam sabendo que a carroça passaria naquela noite e tomavam as providências para a fuga ser bem sucedida. O Brasil teve organizações similares, como Os tenentes do diabo (Rio de Janeiro) que publicamente aparecia como associação carnavalesca, mas que ao mesmo tempo comprava cartas de alforria e colaborava em fugas organizadas.
Poetas europeus também participaram desta luta. Um dos melhores exemplos é Heinrich Heine (1797-1856), amigo de Marx, que escreveu o poema Navio negreiro, no qual denuncia a violência do tráfico, tanto no aprisionamento quanto na travessia do mar, e expõe a frieza dos traficantes em seus cálculos. Parte dele foi reaproveitada pelo nosso Castro Alves em poema de mesmo nome. Machado de Assis imortaliza o poema de Heine em passagem inesquecível do seu Memorial de Aires (1908), quando o diplomata aposentado constata em seu diário que o dia é 13 de maio.
A luta contra a herança do escravismo no Brasil e no mundo ainda está em andamento e precisa integrar de modo enérgico o conjunto das referências do marxismo cultural. Assim como a Jamaica forjou um C.L. R. James, cuja obra abarca desde Notas sobre dialética (1948) até Os jacobinos negros (1963), os Estados Unidos têm uma miríade de militantes, poetas e escritores de leitura obrigatória. Obviamente, Angela Davis e Bobby Seale fazem parte desta galeria, mas também Langston Hughes, Eugene O’Neill, Malcolm X, Stokely Carmichael e Martin Luther King. Nina Simone entra como a compositora da trilha sonora da luta por direitos civis e Billie Holiday, que em 1939 gravou Strange Fruit para denunciar linchamentos de afroamericanos nos estados sulistas, também deve fazer parte da sonoplastia do marxismo cultural. Dentre os brasileiros, cabe destaque a Luís Gama, José do Patrocínio, Abdias Nascimento e todos os seus discípulos (de Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo a Érica Malunguinho), mas isto apenas para começo de conversa.
No âmbito da luta cultural do proletariado contra a escravidão salarial, da qual Brecht é uma das mais eloquentes sínteses, entram todos os escritores naturalistas, a começar por Emile Zola e Maxim Gorky. Do primeiro vale a pena destacar Germinal (1885), que trata da organização dos trabalhadores numa prolongada greve de mineiros que contou até com o apoio da Associação Internacional dos Trabalhadores (fundada por Marx, entre outros, em 1864, também conhecida como Primeira Internacional). O assunto central do romance é a greve que evolui para uma rebelião violentamente massacrada pelas forças da ordem. De Gorky (1868-1936) destaque-se o romance A mãe (1906) que mostra como uma mulher evolui de analfabeta e despolitizada a militante fundamental na luta clandestina depois de acompanhar a evolução política do próprio filho, que morre num confronto com as forças da ordem. Brecht adaptou este romance para o teatro.
Para encerrar este primeiro passeio, cabe fazer uma homenagem a Augusto Boal, também discípulo de Paulo Freire, enumerando alguns nomes daqueles que podemos chamar de integrantes do arco-íris do marxismo cultural sem precisar pensar duas vezes (desde já insistindo: é lista de memória e sem pretensão de ser exaustiva).
Dentre os brasileiros, além dos já citados, temos Jorge Amado, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Patrícia Galvão, Joracy Camargo (todos escritores-militantes), Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Emília Viotti, Fernando Novais, Anatol Rosenfeld, Chico de Assis, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Ruy Guerra (este foi importado de Moçambique, mas se abrasileirou rapidamente), Eduardo e Lauro Escorel, Leon Hirszman, Oduvaldo Vianna Pai e Filho, Solano Trindade, João das Neves, Clóvis Moura, Chico Buarque, Flávio Império, Michel Löwy, Roberto Schwarz, Maria Bethânia, Ivone Lara, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus…
Nas Américas temos Rigoberta Menchú (Guatemala), Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Ariel Dorfman, Violeta Parra e Patricio Guzmán (Chile), Rubén Darío (Nicarágua), Miguel Angel Astúrias, Carlos Fuentes, Frida Kahlo e Diego Rivera (México), Atahualpa del Cioppo e Mário Benedetti (Uruguai), Sergio Cabrera, Gabriel García Márquez, Santiago Garcia e Enrique Buenaventura (Colômbia), Leonidas Barletta, Oswaldo Dragún, Fernando Solanas e Eduardo Pavlovsky (Argentina), José Martí, Roberto Fernandez Retamar (Cuba), Aimé Césaire (Martinica), César Vallejo, José María Arguedas e José Carlos Mariátegui (Peru), Henry Sylvester Williams (Trinidad), Harriet Taubman, Frederick Douglass, James Brown, Mother Jones, Joe Hill, John Reed, Louise Bryant, Paul Robeson, Elisabeth Gurley-Flynn, Jack London, John dos Passos, Joan Baez, Woody Guthrie, W.E.B. Dubois, Elmer Rice, Harry Braverman, Frederic Jameson, Sally Field, James Baldwin, Spike Lee (Estados Unidos)…
Note-se que ainda nem começamos a pensar em nossos clássicos, grandes cientistas, pensadores e filósofos que, de fins da Idade Média ao século XIX, vêm enfrentando as trevas cultivadas pela Igreja Católica (e agora também pelas evangélicas). É o caso de Maquiavel, Giordano Bruno, Galileu e Copérnico, René Descartes, Voltaire (que insistia sobre a necessidade de “massacrar a infame”), Diderot, Laplace (o astrônomo que dispensava a hipótese de Deus), David Strauss, Feuerbach, Newton, David Hume, Kant, Charles Lyell,Charles Darwin, Thomas Huxley, Ernst Haeckel… Para o século XX, podemos adotar Cheikh Anta Diop como símbolo da pesquisa mais relevante: o marxismo cultural se considera herdeiro de todas as conquistas da ciência e assume seu compromisso irrevogável com a verdade – tanto a científica quanto a histórica – porque sabe que a mentira tem um papel reacionário. Reafirma assim seu compromisso com a legítima defesa da humanidade.
Como lembrou o companheiro Carlos Russo Jr., citando Gramsci, em recente matéria do site “Espaço Literário Marcel Proust”, “o fascismo incorpora como nunca a servidão, a mentira e o terror, flagelos que buscam fazer reinar o silêncio entre os homens, obscurecendo-os uns aos outros e impedindo que se reencontrem no único valor que poderia salvá-los: a longa cumplicidade cujo limite é precisamente o poder de revolta dos homens em conflito contra o despotismo e a opressão.”[9]
Fim do primeiro tempo
Quando os nazistas inventaram o fantasma do bolchevismo cultural, para variar cometeram a falácia da generalização apressada (marca registrada de toda abstração indevida que tem a intenção de bloquear o debate). Atiraram num fantasma quando na realidade o bolchevismo cultural – entendido como a revolução bolchevique no plano da cultura – estava muito presente na União Soviética e também na Alemanha, sobretudo nas figuras de Asja Lacis (leta), Meyerhold, Tretiakov (russos) e de Piscator, Hans Eisler, Max Valentin (alemães), entre inúmeros outros. O fato histórico é que havia dentre os bolcheviques, desde outubro de 1917, uma ala dedicada a enfrentar os problemas culturais que os marxistas debatem desde que existem e a Revolução colocara na ordem do dia: órfãos da guerra e da revolução, fome, analfabetismo, questão feminina, integração do proletariado e seus filhos à vida cultural (escolarização, todas as modalidades de arte, teatro, cinema, literatura etc., etc., etc.).
A luta cultural da Revolução de Outubro ainda é amplamente desconhecida entre nós e por isso vale a pena começar do começo quando o assunto é bolchevismo cultural. Os bolcheviques que assumiram a linha de frente nesta luta foram Lunatcharski e Krupskaia (comissários do povo para a educação e cultura – o Narkompros). Uma semana antes do 25 de outubro de 1917, Lunatcharski deu o primeiro passo na tarefa de organizar artistas e intelectuais para a luta que se avizinhava. Com os mais aguerridos, fundou a Proletkult (cultura proletária), organização que em pouco tempo (menos de um ano) arregimentava cerca de 400 mil pessoas[10]. Krupskaia dedicou-se às crianças, às mulheres e ao programa de erradicação do analfabetismo. Seus textos disponíveis no site marxists.org mostram o alcance do seu compromisso com a construção de um futuro sem as marcas horrendas da ideologia burguesa tanto no que se refere à autonomia das mulheres quando na educação de crianças experimentando a igualdade de gênero (meninos e meninas em pé de igualdade e camaradagem na organização chamada Jovens Pioneiros) desde a mais tenra idade. O exato oposto do escotismo, adotado com entusiasmo por fascistas e nazistas (meninos e suas violências de um lado e meninas se preparando para a submissão aos homens e para a maternidade do outro). Merece destaque, no trabalho com crianças, a atuação de Asja Lacis, que desenvolveu, com apoio de Meyerhold, métodos de resgate de crianças abandonadas através do teatro e depois ajudou os camaradas alemães a organizarem até grupos infantis de agitprop. Ainda na questão feminina temos na linha de frente Alexandra Kollontai e Inessa Armand que publicaram textos a respeito da necessidade de libertar as mulheres da escravidão doméstica e da submissão aos homens empenhando-se na criação de restaurantes, lavanderias e creches de modo a liberar o tempo das mulheres para a ação política. Inessa Armand cuidou até do trabalho feminino na retaguarda do exército vermelho durante a guerra civil[11].
Dentre os incontáveis bolcheviques da frente cultural – dramaturgos, diretores teatrais, cineastas, artistas plásticos – destaquemos ainda Tretiakov, o exemplo de “artista militante” na expressão de Walter Benjamin[12]; Meyerhold, que dirigiu a divisão de teatro do comissariado da educação e cultura; Eisenstein, Dziga Vertov e Pudovkin que ainda hoje dão régua e compasso ao cinema que pretende ser relevante; Rodchenko e Stepanova, que desenvolveram na teoria e na prática as propostas do construtivismo; e, evidentemente, Maiakovsky, o poeta que a plenos pulmões cantou a Revolução em prosa e verso. São dele os versos inesquecíveis: COME ANANÁS, MASTIGA PERDIZ. TEU DIA ESTÁ PRESTES, BURGUÊS.
[1] MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 21. Aplicada ao próprio marxismo, esta proposição resultou na obra coordenada por E.J. Hobsbawm, História do marxismo, que na edição brasileira conta com 12 volumes e está disponível para download no site Biblioteca Base.
[2] Para quem está chegando agora, um bom começo é o verbete “cultural materialism” da Wikipedia. Os mais dispostos encontrarão amplo material nas diversas obras de Raymond Williams publicadas no Brasil pela Editora Unesp. Recomendo especialmente A política e as letras, de 2013, em que ele reconstitui sua própria trajetória no trânsito permanente entre cultura e política.
[3] Cf. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989.
[4] Recomendamos uma visita ao site marxists.org, seção “select author”, para se ter uma ideia da quantidade de integrantes desta tradição.
[5] ENGELS, F. Prefácio à terceira edição alemã da obra O 18 brumário de Luís Bonaparte, op. cit. p. 12.
[6] Os excertos publicados no volume Literatura e vida nacional são de extremo interesse para quem tem que se haver com os atuais descendentes do infamíssimo padre Bresciani, jesuíta grosseiro e fanático (1798-1862) que cultivava um espírito de vingança reacionária e caprichava na polêmica áspera, atropelando o interlocutor. Na opinião de De Sanctis, ele era pouco dotado, de caráter vulgar, desprovido de espírito, rancoroso, dado a encenar paixões que não sentia, dedicado a mentir, caluniar e odiar. Não é coincidência a semelhança entre estes traços de falta de caráter e as atitudes dos nossos adversários políticos.
[7] Palenques são os equivalentes dos nossos quilombos em países latinoamericanos. Há histórias de extremo interesse na Colômbia, Jamaica e Venezuela, bem como no Equador, México, Panamá e Peru. Em espanhol, os fugitivos da escravidão eram chamados “cimarrones”.
[8] Marxistas culturais que ainda não incorporaram esta figura fundamental em suas referências podem começar a se atualizar com a obra O quilombismo, já em terceira edição, agora (2019) por conta da editora Perspectiva e do Ipeafro. Abdias propõe que Exu (como expressão dos princípios da comunicação, contradição e dialética) e Ogum (como princípio do compromisso com a luta) sejam considerados símbolos do quilombismo.
[9] Cf. https://www.proust.com.br/post/fascismo-revolta-e-renascimento
[10] Interessados em mais detalhes podem ler o livro publicado em 2018 pela editora Expressão Popular: LUNATCHARSKI, A. Revolução, arte e cultura.
[11] Há vários textos destas e de outras mulheres no livro SCHNEIDER, Graziela (org.). A revolução das mulheres. São Paulo: Boitempo, 2017. Ver, sobre o mesmo assunto, GOLDMAN, Wendy. A libertação das mulheres e a Revolução Russa. In JINKINGS, Ivana e DORIA, Kim (orgs.). 1917 – o ano que abalou o mundo. São Paulo: Boitempo, 2017.
[12] Cf. o ensaio “O autor como produtor”, disponível em várias edições.
Essa é a terceira e última parte de uma série que Outras Palavras publica sobre a utilização do termo “marxismo cultural” na História. O primeiro texto pode lido aqui:
Marxismo cultural, um fantasma que ronda a História
Bolsonaro e seu séquito tomaram-no como o grande mal a ser combatido. Não é novidade: em Mein Kampf, Hitler já o utilizava para justificar fechamento de jornais e perseguição a intelectuais e artistas. Mas o que é mesmo este espectro?
O Marxismo Cultural e a paranoia americana
Décadas de medo: para a direita dos EUA, os sindicatos e artista e, mais tarde, feministas, LGBTs, negros e ambientalistas, são parte da Conspiração de Marx para destruir a família cristã. Discurso de Bolsonaro é um requentado desta época
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Para que a memória prevaleça