Por Marcos Ferreira.
É trabalhoso construir um manifesto, uma declaração pública de uma intenção ou perspectiva. É preciso descrever o contexto e os problemas centrais que nos levam a fazer essa manifestação. É preciso apontar elementos históricos relacionados ao tema abordado. É preciso apresentar propostas concretas de ação e desenhos de futuros possíveis.
Os manifestos apresentados pelo Movimento Brasil pela Democracia e pela Vida terão implicado em muitos dias seguidos de debate, envolvendo atores de diferentes matizes e apontando uma enorme complexidade de propostas e direcionamentos. Terá dado muito trabalho fazer confluírem as propostas de entidades de tão largo espectro de objetivos e de representados, tais como a SBPC, a OAB, a CUT, o MST, Frente Brasil Popular, Frente Povo sem Medo, a Comissão Arns… Claro, o texto desses manifestos são longos e também trabalhosos de serem escritos, lidos e compreendidos.
Em suma, dá trabalho organizar manifestos que defendam a vida.
Claro, alguma vez se consegue alguma mobilização em defesa da vida a partir de um fato que ganhe notoriedade, um acontecimento. Por exemplo, no momento em que Jorge Floyd estava sendo assassinado, ele repetiu muitas vezes a frase mais temida na pandemia: eu não consigo respirar. O ataque a um homem negro, por homens brancos, agentes do estado, à luz do dia e sob a mira de câmeras, cujas últimas palavras apontavam a dificuldade de respirar, num contexto em que um determinado vírus conseguia afetar (e até mesmo impedir) a respiração de milhares de pessoas em todo o planeta, foi um estopim para manifestações importantes.
Foram manifestações, porém, que não resultaram ainda em mudanças significativas e abrangentes nos problemas denunciados. Ajudaram a impedir a reeleição de um presidente genocida, o que é relevante. Mas, ao mesmo tempo, legitimaram a eleição de um ultra-conservador de quem o planeta não pode esperar qualquer iniciativa que coloque a maior economia do planeta em sintonia com o combate ao genocídio basilar, que hoje exclui da possibilidade de vida digna para a maior parte da população do planeta.
Então, dá trabalho mesmo fazer um manifesto que defenda a vida.
Mas, para fazer um manifesto genocida basta organizar uma festa. Se for uma festa cara, com convidados conhecidos, tanto mais impactante será o manifesto. Ainda mais se a data da festa for bem escolhida, preferencialmente em dias com crescente número de mortes em decorrência de descaso com os cuidados de proteção individual e coletiva. Se for possível contradizer a orientação de todas as agências sérias de saúde que apontam a restrição do número de pessoas nas festividades de final de ano, tanto melhor.
Claro, quem organiza um manifesto genocida não pode ser uma pessoa qualquer. Tem que possuir credenciais. De preferência, precisa ter apoiado a eleição de genocidas reconhecidos no mundo e neste país. É preciso ter feito campanha eleitoral para um primeiro ministro que impõe opressão permanente e uma guerra sanguinária contra jovens palestinos. É preciso ter feito campanha para a eleição de presidente que atua sistematicamente de modo a agravar as condições de enfrentamento do vírus corona.
Além de ter um líder tão qualificado, talvez seja preciso também escolher um contexto propício ao lançamento de um Manifesto Genocida. Um contexto de profunda contradição no tocante aos discursos relativos à preservação da vida. Um contexto marcado pelo discurso da lei da selva: que sobrevivam os mais fortes.
Aqui abro espaço para uma crítica prévia feita a este texto. Seria o caso de chamar de manifesto suicida, ao invés de genocida? De fato, não houve uma festa somente. Houve uma enorme quantidade de festas em todo o país. Numa página do Instagram há registro de um enorme conjunto de festas.
Do meu ponto de vista, a adesão ao manifesto poderia contar com alguma dose de tendência suicida, mas o manifesto segue sendo genocida. Quem toma iniciativa de fazer o manifesto não sofrerá as mesmas conseqüências da maioria da população. Como no caso de Trump, não tomará a tal cloroquina e fará algum tratamento inacessível para a imensa maioria de nós.
Porque o manifesto está baseado na lei da selva, que é apregoada por bolsonaristas de todos os matizes.
No caso do prefeito de Florianópolis, por exemplo, essa adesão ao manifesto transparece nos detalhes. Nenhuma providência para exigir que a regra do uso de máscaras, proposta por ele, seja cumprida. Trabalhadores da COMCAP recolhem lixo sem equipamentos de proteção contra o vírus. O SUS é alvo de todo tipo de debilitação. Há silêncio onde deveria haver uma campanha pelo cuidado no uso de espaços públicos como as praias.
Para os apoiadores do manifesto genocida o importante é que tudo ocorra dentro de um clima de normalidade. Normalidade até que as conseqüências do final de ano tresloucado possam virar argumento para atos desesperados e odientos. Oxalá, isso não ocorra.
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