Por Paulo Nogueira.
O melhor artigo que li sobre Mandela foi de Slavo Zizek, e foi publicado no Guardian. Zizek saiu dos lugares comuns da beatificação ubíqua de Mandela, e produziu um texto que faz pensar.
Seu ponto central é que Mandela só foi aplaudido por todo mundo, incluídos aqueles que queriam vê-lo enforcado, porque, paradoxalmente, fracassou.
O fracasso de Mandela, nota agudamente Zizek, está estampado na abjeta desigualdade social que persiste na África do Sul, a despeito do fim do apartheid.
No campo das especulações, Zizek atribui ao malogro no combate à iniquidade a “amargura” de Mandela em seus últimos anos de vida.
Um dos mais aclamados biógrafos de Mandela, o jornalista inglês John Carlin, admitiu em sua eulogia de Mandela que em sua presidência de cinco anos ele fez bem menos do que se presumia que fizesse para a construção de uma sociedade economicamente mais justa.
Onde ambos, Zizek e Carlin, divergem é na explicação para o avanço social tímido da África do Sul sob Mandela.
Para Carlin, ele manobrou com cuidado para evitar uma guerra civil entre brancos e negros.
A hipótese de Zizek me parece mais interessante. Mandela, de acordo com sua interpretação, viveu o drama das esquerdas contemporâneas, em toda parte: ao chegar ao poder, elas como que se acovardam, sob o pavor de serem punidas pelo assim-chamado “Mercado”, seja isso o que for.
No fim, as esquerdas no poder acabam mudando, elas mesmas, mais do que o mundo que deveriam chacoalhar. Em vez de moldar uma nova ordem, elas se moldam à velha.
Até no plano simbólico: barbas são aparadas, os guarda-roupas se renovam com o que há de mais caro na praça, a retórica passa a ser de conciliação – e por aí vai.
É como se a esquerda se desculpasse por ser de esquerda e garantisse ao “Mercado”, de joelhos, que nada será feito muito diferente do que a direita faria.
Não é preciso muito esforço para associar a visão de Zizek ao Brasil comandado pela esquerda nos últimos dez anos.
O que foi a Carta aos Brasileiros senão a promessa de que nada de muito diferente seria feito? E Henrique Meirelles no Banco Central?
“Não mordo”, o PT estava dizendo para a plutocracia.
E de fato não mordeu. Lula fez questão, no correr de sua presidência, de dizer que nunca os empresários tinham ganhado tanto dinheiro.
É uma verdade doída, sob o ponto de vista dos 99%, para usar a grande divisa do movimento Ocupe Wall St.
Num país em que o 1% fez do Estado uma fonte inexaurível de mamatas e negociatas, algo de que surgiu uma das sociedades mais iníquas do mundo, não é exatamente animador que num governo de esquerda os mesmos de sempre continuassem a ganhar tanto ou mais do que sempre ganhavam.
O espantoso, no caso brasileiro, é que a resposta da direita à conciliação e à moderação primeiro de Lula e depois de Dilma não foi um agradecimento ainda que discreto. Foi um ataque brutal ao governo, comandado por uma mídia que simplesmente abandonou o jornalismo para tentar repetir o que fez em 1954 e 1964.
Nas duas ocasiões, a mídia buscou os generais para fazer o serviço. Desta vez, uma vez que os generais como administradores se desmoralizaram inteiramente depois do caos que promoveram em todas as esferas, a mídia tentou os juízes.
A maior lição de Mandela, aplicada ao Brasil, talvez seja a seguinte: para fazer sentido, a esquerda tem que ser de esquerda.
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.