Por João Guilherme Bieber, para Agência Pública.
Em maio, Aracaju e Porto Alegre, duas capitais brasileiras separadas por mais de 3 mil quilômetros, enfrentaram o mesmo evento extremo: chuvas intensas. Na capital gaúcha, os temporais na primeira semana do mês corresponderam praticamente à média histórica de todo mês de maio. Um deslizamento destruiu quatro casas no Morro da Cruz, desalojando dez pessoas e ferindo duas. Já na capital sergipana, em cinco dias choveu mais do que a média histórica do mês de maio. Deslizamentos levaram à interdição de três imóveis e 16 famílias foram retiradas de suas casas por causa do risco de transbordamento do rio Poxim.
As chuvas em Aracaju e Porto Alegre não são casos isolados. Com intensidades diferentes, eventos extremos como esses já ocorrem por todo o país devido às mudanças climáticas. Segundo alertam cientistas, a tendência é que se tornem cada vez mais fortes e frequentes.
Segundo apuração da Agência Pública, Aracaju e Porto Alegre ilustram o despreparo das capitais brasileiras para responder aos desafios postos pela emergência climática. Elas estão entre as 17 das 27 capitais (incluindo o Distrito Federal) que não possuem planos municipais de mudanças climáticas.
Além de Aracaju e Porto Alegre, as seguintes capitais não possuem plano de mudanças climáticas: Florianópolis, Vitória, Campo Grande, Goiânia, Cuiabá, Palmas, Porto Velho, Macapá, Boa Vista, Manaus, Belém, Maceió, São Luís, Teresina e Natal.
Contatada pela reportagem sobre as recentes chuvas, a Prefeitura de Aracaju informou que atendeu todas as 210 ocorrências registradas, inclusive ocorrências para avaliação de riscos estruturais e de deslizamento de terras, destacando que não houve feridos ou vítimas fatais. Em relação às pessoas que moram em áreas de risco, a Prefeitura de Aracaju informou que há monitoramento constante subsidiando ações estratégicas, como execução de obras, desobstrução de canais, retirada preventiva de construções irregulares, cadastramento das famílias e ações educativas. A Prefeitura informou ainda que planeja elaborar o plano de mudanças climáticas no segundo semestre de 2023.
Já a Prefeitura de Porto Alegre informou haver necessidade de remoção de outras 27 famílias no Morro da Cruz. Em relação às mais de 84 mil pessoas morando em áreas de risco, a Prefeitura afirmou que “está em estudo a reestruturação da Defesa Civil para que o órgão tenha as condições necessárias para o trato das áreas de risco” e que um grupo de trabalho é responsável pela “análise e apresentação de soluções para a área de risco, que passam pela intervenção estrutura e, em último caso, remoção das famílias”. A entrega do Plano de Mudanças Climáticas de Porto Alegre está prevista para julho de 2024, de acordo com a Prefeitura. Leia aqui a resposta completa das duas prefeituras.
Estudos realizados pelo Serviço Geológico Brasileiro estimaram que 84 mil e 7,6 mil pessoas vivem em áreas de risco em Porto Alegre e Aracaju, respectivamente. Elas estão expostas a riscos de deslizamento, inundação, enxurrada, erosão de margem fluvial, dentre outros.
O Relatório Síntese do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), publicado em março deste ano, aponta que as mudanças climáticas já causam impactos adversos na saúde e bem-estar da população urbana, além de afetar negativamente a infraestrutura urbana, serviços de abastecimento de água e de saneamento e sistemas de energia, resultando em perdas econômicas e na interrupção de serviços.
“Não ter um plano é não reconhecer a emergência climática. Ela é real. Estamos vivendo tragédias humanas decorrentes das mudanças climáticas”, explica Diosmar Santana Filho. Ele é geógrafo e coordenador científico da Associação de Pesquisa Iyaleta onde coordena a pesquisa “Estratégia sobre mudanças climáticas e desigualdades: qualidade de vida, adaptação e saúde urbana na Amazônia e Nordeste do Brasil (2022-2024).
Rio Branco: cidade tem plano, mas ficou no papel
A existência de um plano não garante sucesso na resposta aos efeitos das mudanças climáticas — isto é, as propostas precisam sair do papel. Rio Branco elaborou seu plano municipal em 2020, mas não o executou apropriadamente.
No final de março, fortes chuvas atingiram a capital. O rio Acre atingiu o seu segundo maior nível histórico e sete igarapés que cortam a cidade transbordaram. Dezenas de bairros foram atingidos pelas inundações e mais de 100 mil pessoas foram afetadas, de acordo com a Secretaria de Meio Ambiente. O evento provocou o fechamento temporário de sete unidades de saúde da família e de referência em atenção primária e a suspensão das aulas em escolas públicas.
As inundações são justamente uma das vulnerabilidades de Rio Branco às mudanças climáticas identificadas pelo Plano Municipal.
Jarlene Gomes é pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e participou da elaboração do plano municipal de Rio Branco como representante do IPAM. Em sua avaliação, não houve continuidade para implementar o plano.
“Com a troca de gestão, o plano ficou esquecido. A pandemia deixou mais difícil ainda. Não houve ação concreta para implementar, faltou vontade política. Deveriam existir instrumentos para implementar as ações para reduzir riscos e impactos. Elas devem ir além das ações emergenciais, precisam ser políticas de estado e municipais,” ela explica.
Em setembro do ano passado, menos de dois anos após a publicação do plano, a Prefeitura de Rio Branco abriu um prazo de consulta à sociedade para revisão do documento.
Questionada pela reportagem acerca da implementação, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Rio Branco (Semeia) reconheceu que “as ações previstas no Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima ainda não foram implementadas”. Segundo a pasta, “antes deste passo há a necessidade da criação do Comitê Intersecretarial de Mudanças do Clima para revisão e posteriormente a implementação das ações”, cuja criação encontra-se em análise pelo setor jurídico.
Em relação à revisão do plano, a Semeia informou que constatou a necessidade de consulta à população devido à ausência de participação da população na elaboração do plano anterior. No entanto, a secretaria não especificou prazo para conclusão da revisão. Por fim, a Semeia negou que as recentes cheias sejam parte dos efeitos das mudanças climáticas, atribuindo a causa das cheias ao “crescimento desordenado e sem planejamento da cidade”. Leia aqui a resposta completa da Semeia.
Recife: painel de monitoramento não inclui metas de adaptação
A tragédia de 2022, quando 128 pessoas morreram após fortes chuvas na região metropolitana de Recife, voltou à lembrança da população novamente com o início da época de chuvas. No final de maio, chuvas intensas impactaram a capital pernambucana, colocando a Defesa Civil em alerta máximo. Houve o desabamento de um muro de uma casa, aulas foram suspensas e pelo menos 27 linhas de ônibus pararam de funcionar.
Inundações e deslizamentos são duas das principais ameaças identificadas pelo plano de mudanças climáticas de Recife, além de ondas de calor, doenças transmissíveis, seca e avanço do nível do mar. O documento, elaborado em 2020, estabelece diversas metas nas áreas de energia, saneamento, mobilidade e resiliência, focadas principalmente na redução das emissões de gases de efeito estufa.
A Prefeitura do Recife disponibiliza para consulta do público um painel de monitoramento, que “apresenta dados do acompanhamento das ações e reduções previstas para os três anos de meta do Plano Local de Ação Climática (PLAC): 2030, 2037 e 2050”. Contudo, o painel não apresenta o monitoramento das metas de resiliência, que tratam do enfrentamento às ameaças climáticas identificadas.
Contatada pela reportagem, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Recife não respondeu diretamente sobre o porquê de não incluir as metas de adaptação no painel de monitoramento. Leia aqui a resposta completa.
“Existe uma cultura de esperar a catástrofe acontecer”
Em meio a capitais sem plano de mudanças climáticas e outras com planos sem implementação, o Brasil ainda não está preparado para os efeitos das mudanças climáticas.
Rodrigo Jesus, porta-voz da Campanha Clima e Justiça do Greenpeace Brasil, avalia que as políticas de adaptação estão atrasadas e por muitas vezes são inexistentes em determinados estados e municípios. “Estamos passos atrás na implementação de medidas de adaptação em todas as instâncias de governo. Existe uma cultura de esperar a catástrofe acontecer. Adaptação requer ações de prevenção, emergência e pós-catástrofe. Não é só infraestrutura. É assistência técnica, programas e políticas para moradia popular, educação, aluguel social, regulação fundiária”, comenta.
Especialistas entrevistados pela reportagem são uníssonos de que a atuação estatal não deve vir apenas em resposta aos eventos extremos e desastres e devem integrar todas as áreas de atuação do poder público.
“A questão das mudanças climáticas não é só ambiental. É um tema transversal que engloba moradia, transporte, saúde,” afirma Jandui Junior. Ele é engenheiro ambiental e chefe da Divisão de Mudanças Climáticas da Secretaria de Meio Ambiente de João Pessoa, e esteve diretamente envolvido na construção do plano de mudanças climáticas da cidade que acabou de ser publicado. Ele aponta que um dos principais desafios enfrentados na elaboração do plano foi envolver e integrar outras secretarias municipais, além da ambiental, mostrando que as mudanças climáticas também impactam suas atividades.
A importância do plano está em definir o caminho que será seguido para preparar a cidade para as mudanças climáticas com base em seu contexto e necessidades específicas, explica Keila Ferreira, coordenadora de baixo carbono e resiliência no Brasil da ICLEI América do Sul. “Ele institui metas, diretrizes e ações concretas para mitigação, adaptação e justiça climática equidade, centrada nas pessoas”, afirma.
Para Diosmar Santana Filho, a resposta às mudanças climáticas deve enfrentar a desigualdade existente no ambiente urbano:
“As condições urbanas são um desafio para a política de adaptação. Para trabalhar as necessidades de adaptação dos municípios às mudanças climáticas, é preciso olhar as desigualdades existentes no território,” afirma Diosmar Santana Filho.
Neste sentido, Rodrigo Jesus, do Greenpeace, ressalta a importância de envolver as comunidades na construção do plano.
“Não adianta ter plano de ação climática se não tem uma governança institucional preparada para dialogar com as comunidades que foram vulnerabilizadas, e que já sentem historicamente os efeitos das mudanças climáticas e que desenvolvem estratégias autônomas de adaptação,” explica. “Aquelas pessoas que já passaram por processos de deslizamentos, enchentes, que perderam bens materiais, como fogão, geladeira, sofá, elas já se preparam autonomamente para uma possível nova enchente. Elas poderiam contribuir na preparação e planejamento para um possível plano.”
Como é feito um plano de resposta a mudança climática
Os planos de mudanças climáticas são parte de um longo processo de resposta dos municípios. Em geral, este processo se inicia com a realização de dois estudos que fazem uma espécie de diagnóstico da cidade: o inventário de emissões de gases de efeito estufa e o estudo de vulnerabilidade e riscos às mudanças climáticas.
Primeiro, o inventário investiga como a cidade está contribuindo para as mudanças climáticas, identificando e quantificando as emissões de gases de efeito estufa — principal causa do aquecimento global —, e suas fontes, como transporte, energia e resíduos sólidos.
Por sua vez, o estudo de vulnerabilidade e riscos às mudanças climáticas analisa como a cidade deve ser impactada, como avanço do nível do mar, enchentes ou secas prolongadas. O estudo precisa identificar as áreas mais vulneráveis ou expostas aos riscos.
A partir desses estudos, o plano de mudanças climáticas deve definir ações a serem tomadas pelos municípios com os objetivos de reduzir e até neutralizar as emissões de gases de efeito estufa, e reduzir os riscos e impactos dos efeitos das mudanças climáticas.
Com o plano pronto, o próximo passo é implementar as ações previstas, um trabalho que deve durar décadas. Justamente por ser um plano de longo prazo, um dos desafios enfrentados para implementar o plano é a mudança de gestão. Por isso, é importante que o plano seja transformado em decreto ou lei, explica Keila Ferreira. “Mudança de gestão é um risco. Corre o risco de ficar perdido. Tem que sair pelo menos um decreto municipal para evitar um vazio. Ideal é que se torne lei”, diz.
João Pessoa quer seguir este caminho e transformar o seu plano em lei. A Prefeitura planeja apresentar um projeto de lei para ser aprovado pela Câmara Municipal. O objetivo é garantir que o plano não seja desta gestão apenas, mas seja do município, explica Jandui Junior. “A lei traz segurança e a perspectiva é que também facilite a captação de recursos junto a entidades internacionais.”
Outros obstáculos à implementação dos planos apontados pelos especialistas são dificuldades para obter recursos para o financiamento das ações previstas, a falta de alinhamento político entre os diferentes níveis de governo e a falta de capacidade técnica.