Desigualdade e pós-pandemia: amadurecimento forçado é realidade de adolescentes negros

Por Caroline Nunes, para Alma Preta Jornalismo. 

O processo de amadurecimento se intensificou em adolescentes do mundo inteiro devido à pandemia de Covid-19, de acordo com um estudo elaborado pelo Hospital Infantil Bambino Gesù, em Roma, na Itália. No entanto, esse processo se deu de maneira diferente entre crianças e adolescentes brancos e negros.

Enquanto para os brancos, o desenvolvimento de traços adultos de origem hormonal marcam o amadurecimento precoce, para os jovens negros se resulta em mais responsabilidade, problemas emocionais e adultificação antecipada oriunda de questões sociais.

Para a psicóloga Jusceli Macedo da Rosa, especializada em crianças e adolescentes, é nítida a diferença apresentada por pacientes brancos e negros. A profissional explica que com a pandemia muitos jovens negros passaram a enxergar o futuro de maneira pessimista, como se eles – ao confrontarem a realidade da crise sanitária mundial – entendessem que não vale a pena investir em sonhos.

“A gente está falando de jovens que aos 13, 14 anos, já têm total consciência de que a vida é injusta e difícil, e que em vez de terem planos de conhecer seus ídolos ou acharem estranho o desenvolvimento do corpo, passam a pensar como farão para sobreviver em um mundo hostil e repleto de muros sociais para pessoas negras. Isso é cruel, pois eles estão na fase de experimentar o mundo sem tantos medos”, avalia.

Essa sequela do amadurecimento forçado também mudou a forma de jovens negros se relacionarem entre si e no ambiente estudantil. O pedagogo Caetano Martins, professor de Projeto de Vida em escolas públicas de São Paulo, pontua que a visão de futuro de adolescentes negros mudou significamente desde 2020.

“Os alunos brancos mantiveram o padrão de comportamento nas salas de aula, mesmo que de forma mais madura. Já estudantes negros se dividem em pelo menos três subgrupos: aqueles que não têm perspectiva nenhuma de futuro e vivem em modo automático; aqueles que aos 13 anos já possuem responsabilidades de um adulto de 30; e os que buscam aprender o máximo possível para terem uma ínfima chance de ter uma profissão que garanta sua sobrevivência”, conta.

“Em todos os três casos, os sonhos de adolescência foram substituídos por desesperança, amargura e choque de realidade. É um fenômeno difícil de assistir”, completa.

Vítimas das circunstâncias

Em muitos casos, segundo a psicóloga Jusceli, o amadurecimento emocional dos jovens negros tem como estopim algum tipo de trauma vivido, que os coloca em contato com seus maiores temores e os obriga a assumir responsabilidades antes nunca pensadas por eles.

“É um momento de catarse. Uma perda familiar. A escassez. A gravidez na adolescência, ainda tão presente em meninas negras. Tudo parte de um sistema de desigualdade social que retira toda a beleza da adolescência dos jovens negros e os bota em contato com uma vida adulta em que sua fisiologia e conhecimento não estão preparados para vivenciar”, pondera.

É o caso de Amanda da Silva Pereira, de 16 anos, moradora do Grajaú, periferia da Zona Sul de São Paulo. A jovem perdeu a mãe para a Covid-19 no final de 2021 e acabou por se tornar a responsável pelos seus dois irmãos mais novos, de 8 e 12 anos. Após a separação dos pais, que aconteceu em 2018, a jovem nunca mais teve notícias de seu genitor e se viu sozinha com tantas responsabilidades.

“Minha mãe era empregada doméstica e a patroa dela era negacionista, então ela nunca pôde parar de trabalhar. Na época eu havia conseguido uma vaga de jovem aprendiz em um supermercado. Com dois meses de serviço, minha mãe se foi. E a minha vida virou de cabeça para baixo”, desabafa.

Mudanças

Quando a mãe de Amanda faleceu, alguns vizinhos passaram a ajudá-la com as contas e também a procurar seu pai. Mas com a dificuldade de encontrá-lo, a ideia mudou: começaram a ameaçar chamar o Conselho Tutelar caso ele não aparecesse para acolher a filha e aos seus irmãos.

Com medo de que ela fosse separada de seus irmãos, que ficaram muito abalados com a morte da mãe, Amanda mentiu aos vizinhos dizendo que seu pai estava em outro estado, mas que ele iria assumir as responsabilidades financeiras dos filhos. “Depois disso, ninguém mais se meteu, mas também pararam de ajudar a gente. Foi aí que eu tive que assumir tudo”, recorda.

“Liguei para o dono da casa que a gente morava e falei a real. Ele abaixou o valor do aluguel de R$ 600 para R$ 450 por um ano. Cheguei no meu patrão do mercado e disse que ele não podia me mandar embora porque senão eu ia ter que morar na rua com os meninos. Arrumei um bico numa pizzaria de final de semana e estou segurando as pontas em casa até hoje. Cometi vários erros, como esquecer de pagar as contas de água e aí cortaram. Eu tive que aprender tudo muito rápido, sem ninguém para me ensinar”, relata.

Atualmente, Amanda conta os dias para fazer 18 anos, pois ela ainda tem medo que alguém tente separar sua família. Além disso, ao completar a maioridade, ela sai de jovem aprendiz do supermercado e poderá ser registrada como operadora de caixa – o que aumenta seu salário. Somando o valor que recebe no supermercado e na pizzaria, a jovem ganha cerca de R$ 1.500 por mês.

“Não tem nem como eu sonhar com uma faculdade, nada disso. A única coisa que eu quero é poder ganhar mais para poder dar mais conforto para os meninos. E eu sinto que meus sonhos ficaram todos para trás, pelo menos até eles crescerem. Meu amadurecimento foi virar mãe dos meus irmãos”, desabafa.

Não é um caso isolado

Segundo informações da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos dois primeiros anos da pandemia, 40.830 crianças e adolescentes perderam suas mães para a Covid-19 no Brasil. Do total, 64% dos orfãos são negros.

“É certo que a morte de um dos pais, em particular da mãe, está ligada a desfechos adversos ao longo da vida e tem graves consequências para o bem-estar da família, afetando profundamente a estrutura e a dinâmica familiar”, avalia Célia Landmann Szwarcwald, pesquisadora do Laboratório de Informação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz.

O educador Caetano Martins enfatiza que é fundamental a existência de políticas públicas que assistam às necessidades desses jovens, para que seu amadurecimento não seja tão traumático. Enquanto isso não acontece, muitas vezes cabe aos professores orientarem seus alunos a respeito de coisas simples do cotidiano adulto, mas ainda desconhecidas para os jovens.

“Como eu leciono projeto de vida, obviamente falamos sobre a vida deles. E na verdade, a vida desses estudantes gira em torno de responsabilidades inadequadas à sua idade. Não são nem de longe o que um jovem de tão pouca idade deveria estar pensando”, comenta.

“Tenho alunos que me perguntam como faz para trocar chuveiro, como cozinhar e congelar, onde é mais barato comprar mantimentos. Tenho alunas com filhos, mesmo aos 14 anos, tenho um aluno que mora na garagem dos tios porque dentro da casa não tem espaço para ele, que perdeu a mãe. Isso não é amadurecimento. É o conformismo de uma vida dura”, finaliza.

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