Por Manuel Domingos Neto.
Nações não resultam de processos “naturais”: são comunidades imaginadas e construídas para legitimar o Estado moderno. Quem estudou a história moderna atento aos processos culturais sabe disso.
A construção das nações é trabalho delicadíssimo e perigoso: produz o sentimento coletivo mais potente e mortífero já conhecido. Não há carnificina moderna que não seja conduzida em nome da defesa dessa entidade sacrossanta, também chamada “pátria”.
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Grandes assassinos do século XIX agiram em nome de Deus, da pátria e da família. Na atualidade, o avanço do ultraconservadorismo ocorre por meio da agitação enviesada dessas bandeiras. Não há regime político autoritário que dispense o uso de sentimentos nobres amesquinhados por obscurantistas.
Um mero chefe de Estado não tem autoridade moral para pedir a vida de seus cidadãos. Um “pai da pátria” ou um “chefe da nação”, tem. Em nome dessa comunidade sacrossanta, multidões matam e morrem convictas de que ascenderão ao panteão máximo da glória.
Bolsonaro prometeu metralhar reformistas sociais em nome de Deus, da pátria e da família. Aprendeu, no Exército, que “o mais alto valor de uma nação / vibra n´alma do soldado, ruge n´alma do canhão” (Hino da Artilharia, calcado em música do exército alemão, mostrou-me certa vez um amigo atento).
(Lembrete aos que defendem a reforma do ensino militar como forma adequada de “democratizar” o Exército: é o cancioneiro, mais que preleções em sala de aula, que deixa os militares convictos da condição de criadores da nação e responsáveis por seu destino).
A construção desta comunidade, a nação, é permanente. O mais reconhecido teórico da construção da nação no século XIX, Ernest Renan, cunhou uma frase que seria repetida insistentemente: a nação é uma opção cotidiana. Não há tréguas na disputa pela nação que almejamos.
A construção desta comunidade representa uma disputa constante de interesses sociais divergentes. Neste processo, é fundamental “esquecer” determinados fatos e exaltar outros, assinalou Renan, autor usado por fascistas italianos.
Hobsbawm, por sua vez, revelou que a invenção de tradições joga peso fundamental na criação das nacionalidades. Hoje se fala em “disputa de narrativas”, mas a luta política sempre foi orientada por interpretações divergentes acerca de experiências vividas. Aos “de baixo” cumpre rechaçar cartilhas dos que lhes exploram.
Lula determinou silêncio relativamente ao golpe de 1964. O militar brasileiro acredita que, nesta ocasião, salvou a pátria. Não se envergonha do fato de tal “salvação” ter sido viabilizada pela força militar do Pentágono. O presidente dos Estados Unidos deu a ordem para deter o reformismo protagonizado por João Goulart, um governante legalmente estabelecido.
A determinação de Lula é inadmissível. Contraria sua própria história e confronta as forças que garantiram sua eleição. É uma cusparada na cara de Jango. Nega o discurso que legitimou a Constituição de 1988, quando Ulysses crivou que a ditadura merecia ódio e nojo dos brasileiros.
A determinação de Lula ajuda a legitimar a traição aos interesses populares ocorrida em 1964. Joga na lata do lixo o empenho de todos os democratas que se engajaram no combate ao regime assassino. Espezinha os que deram suas vidas pela liberdade e pelas reformas sociais. A lista é longa, desde Tiradentes até Manoel Fiel Filho. Passa por Bárbara de Alencar, Bergson Gurjão e Helenira Resende.
Conscientemente ou não, Lula endossou a percepção histórica do quartel, que se vê a encarnação de nobres propósitos.
Por que Lula tomou tal atitude? A Constituição determina que assuma o comando das corporações. Lula falou como subalterno, não como comandante. Não lhe cabe o posto de porta-voz de fileiras.
Em nome da preservação da democracia não faz sentido endossar os que se empenham em destruí-la. Lula falou como obscurantista e deve desculpas aos brasileiros.
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