Fotos: https://drive.google.com/
A ficção científica brasiliense CARTÓRIO DAS ALMAS, com roteiro e direção de Leo Bello, fará sua estreia mundial no 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no Cine Brasília, dia 14 de dezembro, às 21 horas. O filme passa em um mundo onde o ser humano descobriu, por meio de banhos de rejuvenescimento, uma maneira de dilatar seu tempo de vida. No entanto, os que fazem a opção por não envelhecer têm como efeito colateral a perda das memórias e da capacidade de sentir. O longa lança uma provocação aos estudos futuristas dos pesquisadores “expansionistas de vida”, “imortalistas”, ou ainda “longevistas”, questionando de maneira poética se vale a pena viver a qualquer custo.
Na narrativa, Laura, uma jovem de 126 anos, é a recém-contratada no Cartório das Almas, local onde recebe as pessoas que desistem de viver para conduzi-las à “transmutação”. Em sua nova função, ela apenas protocola, sem juízo de valor – até mesmo por imposição dos efeitos colaterais de não envelhecer – as motivações daqueles que abriram mão da possibilidade de rejuvenescimento. Laura “notariza” o fim dos ciclos de outrem. No entanto, por força de contrato, a ela mesma não é facultado interromper sua tediosa existência. Vivendo (no e) para o trabalho, em sua rotina protocolar, aos poucos desenvolve vínculos com quem por ali passa.
A trajetória da personagem Laura revela o sentido da trama de CARTÓRIO DAS ALMAS. Jovem centenária, é solitária, não tem certeza se guarda ou cultiva as suas memórias, e, além de todas essas perdas, é impelida a tomar banhos, em águas especiais, para se manter jovem e viva, e alcançar uma estranha longevidade.
Na premissa inicial do filme ocorre algo enigmático. Em sua nova ocupação, ela, que optou por não envelhecer, recebe as pessoas que desistem de viver. No CARTÓRIO DAS ALMAS, Laura só tem uma obrigação: saber quais foram os motivos que levaram essas pessoas ao abandono, não exatamente da vida, mas da longevidade. Até que decide interromper seu rejuvenescimento, tomar para si o controle da sua vida e voltar a sentir.
O espaço ficcional
Embora CARTÓRIO DAS ALMAS aponte para alguns códigos da ficção científica – como a distopia dos campos ermos de soja e um enredo que se passa num tempo futuro – o filme também acaba, sutil e habilmente, por inverter alguns dos seus preceitos. Na realidade ficcional, toda filmada em Brasília, há a possibilidade de uma vida longa, quase eterna. Desejo comum em algumas religiões – o anseio da vida eterna, ou paradisíaca – ou mesmo uma pulsão das tecnologias contemporâneas, que se movem para abolir a morte. No entanto, em CARTÓRIO DAS ALMAS, a vida sem memória e sem família perde completamente o sentido.
Ao ouvir os motivos de velhos, crianças, e tantos solitários que habitam os campos vazios do filme, Laura se espelha neles. Decide, ao menos, parar um pouco com os banhos e se questiona: será que na vida eterna – sem fim nem morte – é possível obter um sentido de plenitude?
A transmutação
Depois de decidem morrer, os personagens passam por uma metamorfose – a transmutação. Viram um pássaro preto, num gesto poético de voo e luto. Mais uma vez, é Laura quem testemunha essas transformações. Pouco a pouco, o convívio com as angústias de uma vida sem sentido acaba por tocar, e mesmo ferir Laura. Ela passa a se ver como uma das pessoas que também quer partir, e para de tomar seus banhos. Laura deixa de atender a as pessoas e almas do cartório, em busca do sentido final da sua vida – e da sua própria alma.
Assim, CARTÓRIO DAS ALMAS trata por meio de um universo fantástico a inevitabilidade do fim, oferecendo às pessoas a escolha e a dignidade de um epílogo natural e íntegro. Em uma visão não-niilista da morte, em que o corpo físico perece, mas a alma permanece, seu continuum é representado, no filme, por um pássaro preto. A escolha de viver de forma livre.
O dualismo vida e morte é conduzido pela vontade pulsante de viver sentindo a incompletude da vida, e nisso a direção de arte e a fotografia conduzem a um ritmo de opostos onde se transita entre o minimalismo frio das geometrias urbanas imortais em contraposição com a natureza viva. O ciclo da seca e da chuva marca a respiração, os tratamentos líquidos da imortalidade fluem para a busca em prol da própria salvação.
Motivação do diretor
Cartório das Almas nasceu da necessidade de ressignificar uma experiência traumática vivenciada enquanto ainda era um adolescente. Acompanhei junto com meus familiares os últimos momentos de meu avô, que fez sua passagem devido às complicações causadas por um câncer terminal. Em um determinado dia ele teve um mal súbito, o que o levou a perder a consciência.
Naquele momento, já deveríamos estar todos resignados, uma vez que sua luta foi longa e, nessa reta final, já não havia como reverter a metástase que tomou conta daquele corpo já frágil e cansado. Meu avô era dessas pessoas fortes que passava a impressão de que estava tudo bem, mesmo vivenciando todas aquelas dificuldades e sentindo que sua existência nesse plano já estava chegando ao final. Claramente ele queria desfrutar seus últimos preciosos instantes com seus familiares, também, preparando-os para o momento de sua passagem. Mas nem todos aceitam da mesma maneira e, num ato de puro desespero, uma parente próxima decidiu pelo protocolo de reanimação, mantendo-o em sobrevida por mais dois dias, prolongando seu sofrimento.
De fato, a dor de perder meu avô era grande, mas talvez a experiência mais traumática foi vê-lo sendo mantido daquela maneira. Durante anos me perguntei se realmente tinha sido a decisão correta. Decidir que alguém viverá a qualquer custo sem refletir sobre o sofrimento a que talvez esteja sendo submetida foi algo marcante para um adolescente, e me custou muito aceitar. É nesse sentido que CARTÓRIO DAS ALMAS talvez seja a cereja da minha superação. Um portal que separa o menino traumatizado do homem adulto. Este, agora, assim como a personagem Laura, que no Cartório protocola as razões dos seus, sem fazer julgamentos, não desiste ainda de procurar seus sentidos. A mim restou a busca por tratar do tema com um olhar reflexivo, enxergando na morte um sentido digno para a vida.
SINOPSE
Em uma sociedade onde as pessoas pararam de envelhecer, Laura começa a trabalhar no cartório de almas, onde descobre que não quer viver para sempre.
FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA
- Título: Cartório das AlmasGênero: Fantástico
- Duração: 77min
- Ano de Produção: 2023
- Diretor e roteirista: Leo Bello
- Diretor de Fotografia: Pedro Maffei
- Diretora de Arte: Maíra Carvalho
- Montador: Joaquim Castro
- Técnico de Som: Marcos Manna
- Designer de Som: Olivia Hernandez
- Trilha sonora: Negro Leo e Piqueras Santangelo
- Interprete: Ava Rocha
- Produtor: Alisson Machado
- Empresa Produtora: Machado Filmes
ELENCO
- LAURA Gabriela Correa
- MARCONE Wellington Abreu
- ZACI Chico Sant’anna
- OTTON Roustang Carrilho
- ROSA Maria Carolina Machado
- MAÍRA Gabrielle Lopes
- MARIA Camila Guerra
- MICA Paula Passo
- RUDAH Vitor Cavalcante
- LAIZ Lorany Kayná
- TOCA Kamala Ramers
- TONY Vanderlei Costa
- MATHEUSA Dani Macedo
- JAIRO João Araruna
- SAULO Deni Moreira
- RAIA Paola Bello
- ROGÉRIO Adriano Lugoli
SOBRE O DIRETOR
Leo Bello (1981/Brasília) é formado em cinema pela Fundação Armando Alves Penteado FAAP. Estreou seu projeto final de graduação, o curta-metragem ficcional PIPA (2008), no Interfilmes de Berlim. Desde então tem se dedicado a escrever e dirigir filmes e séries, destacando-se O Pequeno Pé Grande (2016) – Prêmio do Júri Melhor Curta-metragem XIII FANTASPOA – Fantaspoa Fantastic Film Fest – Brasil e o curta-metragem documentário: Retratos da Alma (2016) – Prêmio especial do Júri 15º MAFF – Matsalu Nature Film Festival – Estônia. Seu primeiro longa-metragem de ficção, O Espaço Infinito (2022), teve estreia mundial no 23ª SFF – Sopot Film Festival – Pôlonia, e participação no 6° SANFICI – Santander Festival Internacional de Cine Independiente – Colômbia. No mesmo ano, o longa foi distribuído em 25 salas de cinema comercial, nas principais capitais brasileiras.
SOBRE A MACHADO FILMES
Desenvolvemos conteúdos autorais independentes, desde as primeiras ideias do argumento até a exibição na telona, sempre em parceria com os autores. Ficção? Documentário? Experimental? Simplesmente filme. Seja o que for, temos uma queda por olhares voltados para transformação, que reflitam arte, cultura e sociedade. Mas o que nos move mesmo é a vontade de contar boas histórias, debater narrativas, pensar audiovisual, encontrar bons personagens e filmá-los.