Livros que nos transportam

Escola Clemente Pinto, Caxias do Sul. Foto: Google Maps 2018. Jul 2011

Por Míriam Santini de Abreu, para Desacato.info.

Leio por acaso uma notícia do ano passado sobre a multidão que ajudou uma biblioteca da cidade de Ghent, na Bélgica, a mudar de endereço. Os moradores formaram uma corrente humana, passando os livros de mão em mão, para transportar o acervo para o novo prédio. A notícia me fez lembrar de uma antiga crônica sobre o papel das bibliotecas e dos livros.

Nos anos 1970 e 80 chamava-se “primeiro grau” a progressão de primeira a oitava séries. O primeiro grau eu fiz na Escola Estadual Clemente Pinto, em Caxias do Sul. O prédio ainda fica a uma quadra da casa de minha família. Entrei na primeira série com seis anos. Era baixa, magra, míope, muito míope. Todas as minhas roupas eram doadas por vizinhos e familiares. Usava uniforme azul com listras brancas, Conga e, no inverno, um casaco com pelos em volta das mangas e do colarinho que eu odiava. Mas havia um lugar onde a minha sensação de carência e de estranheza em relação a tudo e a todos desaparecia. Era na biblioteca da escola.
Bastava subir a escada ao lado da sala do SOE, o Serviço de Orientação Educacional, e o mundo era meu. As mesas da biblioteca eram baixas e redondas, os banquinhos também. Os livros, catalogados, pareciam me espiar, me desejar, aquietados nas prateleiras ou abertos, repletos de delícias. Objetos de vasto desejo como a Grande Enciclopédia Larousse ou a Barsa, a coleção da Revista Geográfica Universal – que minha mãe também adorava – a Vagalume, a Jovens do Mundo Todo, Monteiro Lobato, as aventuras de Laura Ingalls Wilder, e tanto mais.

Não havia dia nem hora para retirá-los. A biblioteca me acolhia, me aquietava. E lá fora, no pátio, havia concreto, mas também árvores, cantos misteriosos, reservados somente ao zelador, perto de onde a gente podia sentar e ler.

Quando a biblioteca da escola não dava conta da pesquisa, os grupos de alunos combinavam horário para se encontrar na Biblioteca Municipal de Caxias. Era uma solenidade. Livros escolhidos, o empenho era coletivo para preencher o papel almaço a caneta com a Introdução, o Desenvolvimento, a Conclusão e a Bibliografia. Sobre a mesa espalhávamos canetas, canetinhas, réguas, no esforço de lá sair já com o trabalho pronto.

A notícia sobre o gesto dos moradores de Ghent é muito simbólica do que representam as bibliotecas e os livros. Nós os transportamos e eles nos transportam. E quantas, quantas vezes, nos salvam.

A notícia citada está em:

http://www.bbc.com/portuguese/internacional-38775129

Míriam Santini de AbreuMíriam Santini de Abreu é jornalista em Florianópolis.

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