Lembranças do futebol e de um mundo em ruínas

Por Elaine Tavares.

Há dois anos voltei a São Borja, numa viagem épica, com meu pai. Estávamos indo levar as cinzas da minha mãe, que sempre sonhara descansar nas águas do seu amado rio Ibicuí. São Borja não estava nos planos, mas foi quase impossível não parar. Havia mais de 30 anos que saíra dali para nunca mais voltar. Paramos na velha cidade para almoçar e matar a saudade, tudo estava como sempre fora. A velha praça, a igreja, o relógio do sol, as estátuas em bronze de Getúlio e de Jango. Fomos render homenagens a Maria do Carmo, a santa do povo, e depois decidimos ir até o Paso, bairro que dá passagem para a Argentina, espaço de muitas doces lembranças. Na velha curva que inicia o caminho para o bairro paramos num posto de gasolina. Eu estava distraída, meio melancólica. Então, num levantar de cabeça eu vi. Eram as ruínas do velho estádio de futebol do Internacional de São Borja. Jamais poderia imaginar que ainda existia.

Fui acometida de uma profunda emoção e pude então racionalizar todo o amor que eu tenho pelo futebol. Num átimo, me vi, guriazinha, cabelo armado, magricela, “patitas chuecas”, entrando naquele lugar agarrada à mão do meu pai. Ele era radialista e ia cobrir os treinos do Inter. Eu ia junto e enquanto ele trabalhava, eu ficava sentadinha nas velhas cadeiras de lata vermelha, absorvendo toda a magia do balão de couro dançando no campo verde. E quando havia jogo, lá estávamos nós, bandeira em punho, torcendo pelo Internacional. Era coisa de paixão, algo irracional e tanto que quando os clubes locais decidiram unir-se num só: o São Borja Futebol Clube, levei um bom tempo até voltar ao estádio. Não parecia haver a mesma magia. Agora, quase 40 anos depois, ali estava o velho estádio, em ruínas, a me evocar lembranças tão memoráveis.

Veio dali, daquele lugar sagrado todo o amor que sempre senti pelo futebol, e tanto que na vida de repórter, nunca negligenciei essa espaço da vida. Em Caxias, vibrando amorosamente pelo time grená, o Caxias e, depois, em Florianópolis, escrevendo momentos incríveis do Figueirense, o furacão do estreito, o qual é o dono do meu coração.

Futebol sempre teve gosto de beleza, de paixão, de compromisso amoroso. E eu lembro a alegria profunda que me causava ver aquela correria louca no campo verde. Os dribles inauditos, as defesas fenomenais, os gols. Ah, os gols… Ainda guardo na memória as figuras do Cassiá, zagueiro dos bons, Paulo Taborda, Moisés. E a impressão que se tinha era de que cada um deles ali estava pela simples alegria de estar. Não havia ainda essa coisa do jogador-escravo, propriedade de empresas. Eles jogavam e se divertiam.

Todas essas lembranças me assomam ao ver o choro sentido do Ronaldo, ao se despedir do futebol. Esse garoto fenômeno que fazia loucuras com a bola, de chute potente, de dribles sensacionais. É triste ver o que fazem hoje com esses meninos. Descobertos ainda na infância, eles logo são vendidos a algum grande empresário e seguem na sua vida de escravos, fazendo só o que a empresa manda. Ultrapassam todos os limites corporais, usam todas as energias, arrebentam todos os tendões. São máquinas de fazer dinheiro. Alguns deles – como é caso do Ronaldo – ficam ricos. Mas são poucos. No geral quem enriquece são as empresas e os empresários. Mas, mesmo esses que ganham rios de dinheiro, ao final não podem fazer-se uma nova pessoa. Estão destruídos, e nem chegaram aos 40 anos.

Ali estava o Ronaldo chorando e eu a lembrar de mim, do Inter de São Borja, das ruínas do estádio. Uma espécie de metáfora da ruína das gentes, estas que são vencidas pela ganância, pelo desejo do lucro. Ali estava o Ronaldo chorando e nenhum dinheiro do mundo podia lhe ajudar.  Enquanto isso, em algum campinho do Brasil, os olhos gordos de empresários gordos, certamente espreitavam algum outro molequinho… Um molequinho que daqui a 30 anos talvez venha chorar na TV porque tudo o que tinha lhe foi tirado. Então eu me agarro a estas lembranças antigas, de um tempo em que o futebol era só alegria, cabelos ao vento, gol na rede. Um tempo em que as torcidas não matavam ninguém, ao contrário, ofereciam o ombro na derrota e o calor do aconchego. Mas isso já vai bem longe… Longe demais… Esse é um tempo em ruínas, tal qual o velho estádio do Inter de São Borja.

Foto: Estádio Vicente Goulart de São Borja – RS

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