Lei Áurea para quem? Ele viveu oito anos de escravidão no Brasil

A família de Vicente da Silva descobriu recentemente que ele foi submetido ao trabalho escravo por quase uma década durante a infância e adolescência. Aos 92 anos, ele relembra a época sombria que viveu

(Da esq. para dir.) Antônio José da Silva (filho de Vicente), Vicente José da Silva e Jéssica Lorraine da Silva (neta)

Por Isabela Alves.

O Brasil foi um dos últimos países a abolir, oficialmente, a escravidão. Isso ocorreu em 13 de maio de 1888 com a Lei Áurea, um dispositivo legal de apenas dois parágrafos. Na prática, no entanto, a escravidão não acabou no país.

Vicente José da Silva, hoje com 92 anos, viveu essa realidade em plenas décadas de 1930 e 1940, e até os dias atuais existem casos de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão, em diversas partes do país.

Nascido em 26 de julho de 1927, aos 10 anos de idade Vicente foi submetido ao trabalho escravo em Capela Nova, município do estado de Minas Gerais. Seus pais, que viviam em situação de extrema pobreza, plantavam e moravam nas terras de um latifundiário conhecido como Capitão Justo.

Em troca do terreno, Justo pedia metade da lavoura produzida pelo casal e a força de trabalho dos seus filhos, que, na época, eram crianças.

Quando o Capitão Justo morreu, um de seus filhos, Jaci Rodrigues de Oliveira, tornou Vicente seu escravo.

“Eu o chamava de meu patrão, mas eu era escravo dele. Naquele tempo, ninguém ganhava nada, existia apenas troca de serviços. Quando não tinha nada para comer, ele me emprestava um dinheiro para eu não morrer de fome”, conta Vicente.

Ele não sabia que era escravizado, mesmo sendo o único que não recebia um salário e era tratado diferente dos outros empregados da fazenda. Seu trabalho consistia em cuidar do gado e tirar o leite das vacas, e em pouco tempo ele também passou a produzir queijos.

Durante as refeições, ele comia peixes, ensopado de mandi (um tipo de peixe), angu de milho, couve, feijão, e só comia carne vermelha quando algum boi da fazenda morria por suspeita de contaminação. Na hora de dormir, ele ia para um porão próximo do estábulo, onde descansava perto dos arreios dos cavalos.

Apesar do sofrimento que vivia, ele não podia fazer queixas. “Quando eu estava longe, ele me chamava de macaco, mas quando estava por perto era chamado de negro. Naquela época os negros não podiam se comunicar muito com os brancos não”, relembra Vicente.

O jovem escravizado não chegou a sofrer castigos físicos, mas, por precaução, ele tinha uma garrucha com seis balas debaixo do travesseiro.

Certo dia, Quando Vicente estava na fazendo de um dos filhos de Jaci, em Rio Espera (MG), o dono da casa o ameaçou de morte.

Ele disse: “Eu vou falar com o teu patrão pra ele te deixar aqui pra gente te cortar no couro”. Prontamente, Vicente lhe mostrou a arma carregada na cintura e disse “vou meter duas balas na sua barriga e vou meter bala na casa do seu pai”. Depois disso, o jovem, chocado com a atitude de Vicente, foi relatar o caso ao pai.

O patrão o chamou para a cozinha e quando Vicente acreditou que ia matar os dois, Jandira, a viúva do Capitão Justo, havia apenas o convidado para jantar. Ele desistiu da ideia.

Vicente continuou escravizado até os 18 anos. Depois, fugiu para Belo Horizonte, onde aprendeu a trabalhar como pedreiro. De início, ele se ofereceu para trabalhar de graça ao longo de um mês até aprender o ofício. Assim que aprendeu a assentar tijolos, passou a ser independente pela primeira vez na sua vida.

Nessa época, ele conheceu a sua primeira esposa. Em um sábado à noite, no cinema, ele viu duas moças: uma branca e a sua empregada negra, de nome Maria. Quando chegou para conversar, Maria lhe disse baixinho “Você não pode namorar com essa menina não, porque ela tem problema. Mas se você quiser casar comigo, eu quero. É pra casar, não ficar de bobeira por aí”.

Eles se casaram e logo Maria ficou grávida de gêmeos. Depois, Maria engravidou novamente, mas a gravidez era de risco, e mãe e filho morreram.

Durante um dia de trabalho, Vicente sofreu um acidente que quase lhe tirou a vida: ele despencou de um andaime no sexto andar na obra de um prédio da Avenida João Pinheiro. Acabou fraturando a coluna e também arrebentou os tendões da mão esquerda. Ficou internado no hospital por 54 dias. Mesmo não recuperado, ele retornou ao trabalho para sustentar os dois filhos.

Posteriormente, comprou um terreno no bairro de Santa Mônica e construiu sua primeira casa própria. Nessa época, ele passou a beber cachaça, mas largou o vício assim que passou a frequentar a igreja, local onde conheceu a sua segunda esposa, chamada Hilda. O casal teve mais cinco filhos.

A história da escravidão de Vicente foi descoberta apenas neste ano pela sua família. Em uma manhã de domingo, enquanto fazia a barba, seu filho mais velho, Antônio José da Silva, de 58 anos, soube da verdade e logo contou para a sua filha Jéssica, de 24 anos, que publicou a história no Twitter, indignada. “Sempre fui defensora da questão racial. Já sofri racismo, mas aquilo foi um grande choque. A escravidão estava mais próxima de mim do que eu imaginava”, emociona-se Jéssica.

Os filhos de Vicente hoje têm ensino superior, algo que o orgulha grandemente. Antônio se formou em pedagogia no ano passado, quase ao mesmo tempo que a filha Jéssica, que se formou em engenharia de produção. “Temos que criar consciência sobre esse assunto e estudar para que essa realidade não se repita. É preciso coragem para enfrentar os obstáculos e também é preciso ter consciência que nós, negros, somos capazes de conquistar tudo o que quisermos”, conclui Jéssica.

Antônio e Jéssica no dia das suas formaturas (Arquivo Pessoal)

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