Por Raphael Sanz.
Entre 4 e 15 de abril, mais de sete mil indígenas compuseram a décima oitava edição do Acampamento Terra Livre em Brasília, onde protestaram contra o PL 191, que libera atividades extrativas em terras indígenas e pode entrar em votação a qualquer momento desde a última segunda-feira (18); e o PL 490 que, votado ano passado em caráter de urgência, agora terá sua principal tese, a do Marco Temporal, em pauta do STF a partir de junho. Além disso, a mobilização trouxe reflexões a respeito da destruição ambiental que acompanhamos no noticiário, colocou como ponto central da pauta indígena a demarcação de todas as terras e buscou trazer luz às candidaturas indígenas para as eleições nacionais que ocorrerão no próximo mês de outubro, sobretudo as das mulheres. Na busca por compreender todo esse contexto, entrevistamos uma delas: Kerexu Yxapyry, liderança guarani do Morro dos Cavalos, terra indígena próxima a Florianópolis – reconhecida em 2021 – e pré-candidata a deputada federal pelo PSOL em Santa Catarina.
Desde que foi consagrada como liderança do Morro dos Cavalos, em 2012, ainda no início do processo de demarcação da terra, a professora e educadora Kerexu aprendeu, “durante a luta”, como fez questão de frisar, o passo a passo e os percalços desse processo. “Foi como fazer uma segunda faculdade”, afirmou. No meio disso, sofreu diversas perseguições. Entre outras coisas, relatou que era comum que atirassem contra sua casa de madrugada e pessoas estranhas costumavam rondar seu entorno e persegui-la pelas ruas. Em 2017, quando o processo de demarcação avançava, a comunidade foi atacada por homens até hoje desconhecidos e, nesse ataque, sua mãe foi capturada enquanto dormia, torturada e teve uma mão mutilada. O terror quase a fez desistir, sobretudo quando após o episódio sentiu a desconfiança dos meios de comunicação de massa locais.
No entanto, refletindo sobre a necessidade comunitária, decidiu seguir adiante na luta, futuramente vitoriosa pela demarcação, até que, em 2018, após o chamado da APIB para “aldear a política” (nos termos do Acampamento Terra Livre deste ano), decidiu apresentar-se como candidata. Já em sua primeira campanha pelo PSOL, mesmo não vencendo, teve uma votação expressiva se levada em consideração a completa falta de recursos de que dispunha para fazê-la.
Nesta entrevista gravada em 11 de abril, enquanto ainda se encontrava mobilizada no Acampamento Terra Livre, dias depois de lançar sua pré-candidatura, Kerexu Yxapyry analisou a mobilização que pouco espaço encontrou nos grandes meios de comunicação brasileiros, contou sua história de vida, falou a respeito das pré-candidaturas indígenas e fez um chamado para a demarcação de todas as terras indígenas com vistas à preservação não apenas dos povos indígenas, mas da vida no planeta. Também falou sobre sua entrada na política institucional, comentou a carta assinada pelo ex-presidente Lula, atual pré-candidato à presidência pelo PT, com compromissos de defesa dos povos indígenas e do meio ambiente, além de fazer um chamado para que lutemos por políticas de reflorestamento dos biomas brasileiros, sobretudo a Mata Atlântica, “a primeira a ser devastada”, e onde vive o seu povo.
“Temos muito receio de que ataques aos povos indígenas se intensifiquem ainda mais agora nesse segundo semestre, já que pode ser o último do governo Bolsonaro”, alertou em relação ao momento conjuntural. Para Kerexu, retirar Bolsonaro do poder é a primeira tarefa em uma longa reconstrução do país – da qual os povos indígenas fazem questão de participar.
Leia a entrevista na íntegra a seguir.
Correio da Cidadania: Acompanhamos ao longo do mês de abril o Acampamento Terra Livre, em Brasília, e as mobilizações contra o PL 191 e a tese do Marco Temporal – o primeiro entrou em prazo para votação na última segunda-feira (18), enquanto a segunda será retomada no STF em junho. Como avalia a mobilização contra essas pautas e o que destaca destes dias de luta do movimento indígena em Brasília?
Kerexu Yxapyry: Primeiramente gostaria de agradecer pelo seu trabalho, de relatar o que está acontecendo no movimento indígena, em Brasília, acho muito importante quando abrem esses espaços para que a gente consiga passar informações sobre o que está acontecendo, pois nem sempre temos esse tipo de porta aberta.
Estivemos em Brasília a partir do dia 2 de abril, quando começaram a chegar algumas delegações à cidade, e a nossa agenda de atividades ocorreu do dia 4 até a sexta-feira (15). Os últimos grupos deixaram Brasília no sábado seguinte.
Esse ano de 2022 traz muitos desafios para os povos indígenas porque nós estamos passando por um momento em que começamos a circular após dois anos de uma pandemia terrível que assolou as terras indígenas – e não só as nossas terras, mas o mundo todo. Continuamos nessa resistência mesmo durante a pandemia, por conta de todos os ataques e retiradas dos nossos direitos que não pararam durante esse período, ao contrário de outras coisas. Mas é só agora que estamos conseguindo, de fato, retomar as nossas atividades de mobilização de forma mais direta e presencial.
Tivemos no ano passado, por exemplo, o PL490 [vinculado à tese do Marco Temporal, que determina que são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988. Ou seja, é necessária a comprovação da posse da terra no dia da promulgação da Constituição Federal]. Veio no meio da pandemia, em caráter de urgência, e na ocasião fizemos uma importante mobilização em Brasília contra sua aprovação.
Dessa vez, no Acampamento Terra Livre juntamos essas lutas, pois esse ano desenterraram o PL 191, que libera o garimpo nas nossas terras e está em pauta para ser votado logo. Nosso Acampamento tinha a programação apenas entre 4 e 8 de abril inicialmente, mas com a aprovação da proposta do PL 191, para ser votado a partir de 18 de abril, decidimos estender esses dias de mobilização. Quando fizemos a programação, pensávamos quais seriam os temas que iríamos trazer e que estariam de acordo com o que estamos vivendo hoje.
Nesse ano ainda teremos a eleição nacional e a votação do Marco Temporal no STF, além de todas as ameaças que estamos encarando nesses últimos meses de governo Bolsonaro, cuja promessa de que não demarcaria nem um milímetro de terra indígena foi feita em campanha e cumprida. Não tivemos a oportunidade, de fato, de fazer essas lutas nas ruas pra valer por causa da pandemia. De dizer que os processos demarcatórios das terras indígenas no Brasil não podem ficar no silêncio ou paralisados.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, vocês colocaram como título, ou lema do Acampamento Terra Livre, o seguinte: “retomar o Brasil e aldear a política”. O que querem dizer com isso?
Kerexu Ixapyry: Retomar o Brasil, para nós, na prática é retomar todos os processos de todas as demarcações de terras indígenas, retomar todas as políticas públicas que conquistamos com muita luta, em muitos anos duros, com pessoas que lutaram e não estão mais aqui. E buscando pautar, principalmente, a educação e a saúde para os povos indígenas, como também a Diretoria de Proteção Territorial (DPT), a FUNAI que está sucateada, entre outras questões.
Estamos nesse momento fazendo a retomada dessas pautas, para sejam colocadas novamente em andamento as lutas em torno delas, pois está tudo paralisado. Tudo isso para conseguirmos a demarcação dos nossos territórios, uma pauta que para nós é a principal.
Aldear a Política é a proposta do movimento de também ocupar, nesse ano de eleição, os espaços institucionais. Ver indígenas ocupando espaços na política oficial, seja nas assembleias legislativas estaduais, seja no Congresso Nacional, mas de maneira muito mais fortalecida do que foi em 2018, quando fizemos um chamado para que os povos se posicionassem e se apresentassem nesse meio político, principalmente na política partidária – algo que não aceitávamos antes porque há um histórico negativo com a classe política em geral.
Mas depois, debatendo entre nós, vimos que era necessário ocuparmos também esses espaços porque são os políticos, principalmente deputados, senadores e vereadores, que decidem as nossas vidas, então precisamos estar lá também. O Aldear a Política vem nesse propósito de que as pessoas que se apresentarem para ocupar esses espaços tenham de ir com o pensamento de liderança indígena, de fazer a defesa dos territórios porque, mesmo passando a questão nos partidos, essa mudança de mentalidade e essa defesa ainda são necessárias.
Na nossa avaliação, temos muita gente preparada para assumir, desde essas candidaturas até alguns outros espaços, como a presidência da FUNAI, secretarias de Saúde e alguns ministérios. Hoje temos pessoas preparadas para assumir esses espaços e essa é a luta que fizemos no Acampamento Terra Livre desse ano.
Correio da Cidadania: Como enxerga o nível de inserção do Acampamento Terra Livre e toda a mobilização indígena na mídia de massa? Vocês sentem um apagamento?
Kerexu Yxapyry: Sim, sentimos o apagamento. Desde sempre vimos e sentimos que esses espaços na mídia são negados para nós. Mas dentro do movimento indígena também temos a nossa mídia, que tem crescido muito nos últimos tempos. Temos jornalistas indígenas e vários profissionais dessas áreas, também não indígenas, que fazem esse trabalho.
Como temos essa luta que é específica, e muito potente, o movimento indígena hoje, representado pela APIB e todas as regionais, é o maior movimento do Brasil e talvez o maior movimento organizado do mundo, o que nos dá repercussão internacional, não apenas aqui dentro. Pessoas de outros países e outros povos e sociedades também chegam para se somar às nossas lutas e levam o que acompanham aqui para os seus países como um modelo de organização.
Dentro do nosso modo de vida e da nossa luta, desde 1988 quando é promulgada a Constituição Federal, a luta dos povos indígenas é para ter autonomia, inclusive em termos de mídia, porque em todos esses espaços existe a negação de voz e a invisibilização da gente. Ou, quando nos mostram, muitas vezes é de uma forma que não é correta. Por isso estamos nesse caminhar, acreditando e lutando muito, com muita esperança de chegar ao momento em que os povos indígenas terão sua própria governança. Já a temos nos nossos territórios e povos, bem organizados no movimento indígena, mas queremos estar repercutindo para fora, porque o que está sendo mostrado como um modelo para governar convencional, já percebemos que não dá certo para nós indígenas e para ninguém.
Correio da Cidadania: Sobre essa governança que não é para todos, vemos o PL 191 e a tese do Marco Temporal sendo pautadas por diferentes poderes da República. Como irão afetar as terras e as vidas indígenas, caso aprovadas?
Kerexu Yxapyry: Todos esses retrocessos são muito graves, assim como tudo o que é proposto por esse governo. São inconstitucionais e sequer deveriam estar sendo discutidos. Existem todos os projetos que são redigidos e aprovados de forma que as pessoas entendam esse processo como ‘democrático’, com o intuito maior de deslegitimar a reivindicação indígena às terras, mas são processos dos quais nós não participamos, e que decidem sobre as nossas vidas à revelia.
Dentro das organizações dos povos indígenas, conversamos com os parentes [o termo ‘parente’ é utilizado para chamar a qualquer indígena, não necessariamente um parente próximo, uma vez que, dentro do pensamento comum aos povos indígenas, são todos uma grande família] sobre ainda termos muitas terras que faltam ser demarcadas e homologadas. Há muitas terras que inclusive têm o processo demarcatório concluído mas não são homologadas, e, dentro do movimento indígena, o que acontece é que as lideranças da linha de frente são aquelas de povos que ainda não conseguiram a demarcação. Quem já conseguiu, se volta a proteção desse território e reprodução da vida nele. Então, são essas lideranças que estão aqui em Brasília, lutando pela demarcação das terras.
Esses PLs que são criados, como o 191 que libera mineração em territórios indígenas, irá afetar todas as terras indígenas, inclusive as que já são homologadas. Então nos posicionamos diante desse governo e desses ataques que estão acontecendo. Mas mesmo sendo uma tragédia, se esse PL for aprovado, fortaleceremos a nossa luta e iremos enfrentar o que venha a seguir.
Nas conversas aqui no Acampamento Terra Livre, com outras lideranças indígenas, é consenso a ideia de que precisamos estar preparados para esse revés. Nossa luta pode continuar da forma como estamos, mais tranquilos, podendo respirar, ou teremos que avançar mais, uma vez que essas decisões sobre as nossas vida – sem contar com a nossa participação, reitero – estão vindo, de fato, a exterminar com os povos indígenas, nossas vidas e territórios.
Não iremos aceitar essa conjuntura de forma alguma. E quando dizemos isso, sabemos que podem ser gerados conflitos, mortes etc., nós temos consciência disso e do que pode acontecer futuramente. Mas a decisão do movimento indígena é avançar e lutar pelas nossas vidas.
Correio da Cidadania: E pensando no fato de que as terras indígenas são as últimas reservas de conservação ambiental e que estamos acompanhando o avanço do capital sobre tudo o que ainda não foi convertido em mercadoria, mesmo diante de índices alarmantes de emissão de carbono e já sentindo as mudanças climáticas que prometem complicar a reprodução da vida na Terra, como projetar o efeito dessas medidas em seu todo, para indígenas e não indígenas?
Kerexu Yxapyry: Trazemos com muita força essa consciência. Na minha avaliação, existe um sistema dentro do Brasil que começa desde as escolas e vai passando conforme as pessoas vão passando de nível, indo para ensino médio, superior etc., e inserindo-se na sociedade. Por que, então, a nossa luta por uma educação diferenciada? Porque a gente percebe que antes dessa destruição maior que existe desde a invasão do Brasil em 1500, quando chega a catequização e em seguida o sistema escolar, esse sistema chega e desmata não apenas a floresta, mas a mente das pessoas. Mata a consciência daquilo que é o óbvio, que é a realidade dos nossos povos.
Então vivemos em um momento da nossa sociedade, de forma geral, sem essa consciência ambiental. Pode até entender o que está acontecendo, mas não desperta na sociedade a consciência de que tudo o que está acontecendo hoje leva somente a um lugar: a morte, nossa e do meio ambiente. E para nós, povos indígenas, o que é mais assustador hoje é justamente isso, ver as pessoas ‘querendo morrer’.
Os espaços onde lutamos pela demarcação de terras e onde já existem terras indígenas demarcadas são os pilares de sustentação desse mundo, do ar, do clima, vemos que está tendo um colapso muito grande no planeta por toda essa destruição e que nós estamos sendo perseguidos justamente porque fazemos esse enfrentamento, tentando proteger o que sobrou do planeta, algo que é benéfico para toda a humanidade. Assim vemos que não existe essa consciência, esse sentimento do ser humano pela vida, o que nos leva a crer que essa luta é muito mais do que uma luta física, política ou jurídica, mas uma luta espiritual. A nossa espiritualidade quer trazer todo esse sentimento de amor pela vida, e a cura para a destruição do planeta, para evitar que todos esses seres continuem morrendo.
Por que então a nossa sociedade não se envolve de fato, não consegue pegar isso com força e fazer a defesa do meio ambiente, do espaço em que se vive e de lutar por isso? Porque hoje, agora, aqui no Brasil, está sendo romantizado todo esse desequilíbrio que existe no planeta. Quando as pessoas falam que está tendo uma “crise climática” ou um “transtorno ambiental”, são esses termos que, ao invés de te chamar para uma luta de defesa do meio ambiente, fazem com que as pessoas despertem um sentimento de pena, mas não a ação.
Está acontecendo esse colapso e havendo uma crise e uma reação da Terra. Mas tudo o que está acontecendo e levando a essa morte planetária é fruto de um planejamento, é uma crise pensada e planejada historicamente.
Não é por acaso que vemos esse monte de PECs e PLs votadas dentro do Congresso Nacional, pelos mesmos de sempre, as quais funcionam literalmente como planejamento dessas crises e dessa morte geral. Como iremos aceitar essa condição como uma “crise”, um “transtorno”, um “desequilíbrio” – sem saber como reagir? É isso que vamos fazer enquanto sociedade? O movimento indígena está aqui para dizer que há um crime planejado acontecendo contra a humanidade, o planeta e todos os seres vivos – e é isso que vamos denunciar. Essas pessoas não podem mais ter poder e precisam ser punidas, pois são criminosos que estão destruindo o mundo e todas as nossas vidas.
Não estamos lutando apenas para os povos indígenas, pois a nossa luta, sendo vitoriosa, vai ser uma vitória de todo o mundo, que hoje acompanha todo esse desequilíbrio e destruição planetária.
Correio da Cidadania: No acampamento, o ex-presidente Lula, possível vencedor das eleições de outubro, firmou uma carta de compromisso com os povos indígenas na qual prometeu a demarcação e homologação de todas as TIs até 2026, mais orçamento para políticas indigenistas, um plano efetivo para o fim das invasões de comunidades, proteção aos povos isolados e respeito à convenção 169 da OIT. Como avalia este pacote e sua viabilidade? Acredita ser possível que isso seja entregue sem que o derrubem do poder?
Kerexu Yxapyry: O movimento indígena vai além dessa carta que trouxe ao pré-candidato à presidência, Lula, para dizer também que a partir de agora estamos nos posicionando para estar nesses planejamentos. Temos a consciência que é impossível alguém chegar e fazer tudo o que estava colocado na carta de uma só vez, mas estamos nos disponibilizando e nos propondo a estar junto nessa construção, fazendo todo o esforço que for preciso para atingir esses objetivos.
Sabemos que mesmo que, vamos supor que o Lula vença a eleição, não será da forma como imaginamos, do tipo, “Lula ganhando estará tudo certo e ponto”. Temos a noção e a consciência de que iremos reconstruir o país e de que isso dá trabalho e não é uma tarefa fácil. Queremos participar da reconstrução do país e precisamos participar da construção desse caminho. Mesmo assim temos a consciência de que não vai ser fácil. Temos que retomar coisas que se foram, além de construir outras novas que precisarão vir. O movimento indígena se coloca nesse papel e disposição de estar envolvido nessa reconstrução, especialmente naquilo que reforça a questão da luta dos nossos direitos e dentro da questão ambiental – pela qual viemos fazendo desde sempre tudo o que precisa ser feito, e sem estar ocupando os espaços institucionais, onde agora também buscamos atuar.
Não será fácil. Nossa luta é constante e contínua, mas o que precisamos nesse momento é nos unir para derrotar o Bolsonaro nas urnas, tirá-lo do lugar onde está e chamar toda a sociedade para uma questão muito grave que acontece nesse nosso Brasil, e muito vergonhosa, porque lá fora as pessoas e outras sociedades estão olhando perplexas para o Brasil que toma iniciativas ruins não só para nós mesmos, mas para o mundo. Por isso, nos propomos a estar juntos para essa primeira vitória que é tirar o Bolsonaro do poder.
Correio da Cidadania: Sobre as alternativas que se dizem além da polarização Lula x Bolsonaro, houve alguma recepção da pauta de vocês por parte dos principais partidos e pré-candidatos presidenciais?
Kerexu Yxapyry: Até agora temos a soma de alguns partidos para o enfrentamento nas eleições desse ano. Temos as candidaturas indígenas, que queremos lançar para construir um Parlamento do Cocar – já temos a Sônia Guajajara, lançada candidata deputada federal por São Paulo, a Célia Xakriabá por Minas Gerais, a minha candidatura pelo estado de Santa Catarina e muitas outras candidaturas, incluindo para as assembleias estaduais.
Como digo, temos a consciência de tudo o que virá pela frente, mas nesse momento o principal é a saída de Bolsonaro do governo, então estamos nos juntando à Rede, ao PT, ao PSOL, a vários outros partidos de esquerda e muitos outros apoiadores, de fora dos partidos, que também vêm para somar nessa luta.
De todas as conversas e diálogos que tivemos com as lideranças desses partidos, a pessoa que faltava assumir esse compromisso era o ex-presidente Lula, mas durante o Acampamento Terra Livre ele se comprometeu. Para nós é complicada a aproximação dele com o centrão, por conta de quem muitos do centrão representam. Num momento mais democrático, em que não tivéssemos passando por essa destruição total, talvez não fizéssemos alianças da forma como estamos fazendo, mas a nossa luta principal hoje é a derrota do Bolsonaro.
Correio da Cidadania: Você é pré-candidata a deputada federal pelo PSOL em Santa Catarina. Pode falar um pouco a respeito do seu povo e das lutas que travam no Estado? Como foi a luta pela homologação do Morro dos Cavalos?
Kerexu Yxapyry: Sou liderança na Terra Indígena Morro dos Cavalos [TI próxima do centro de Palhoça, cidade da Grande Florianópolis], e quando assumi o cacicado em 2011 já fui colocada para fazer a defesa do território porque estávamos passando por um momento de ataques dentro do processo demarcatório.
Para mim foi algo muito novo. Sou professora, educadora, e tenho formação na área de gestão ambiental. Mas entender todo o processo demarcatório, como acontece na prática, é muito difícil. Eu entendia a parte do direito, dos pré requisitos, mas essa parte mais prática e burocrática eu não conhecia de verdade. Pra mim foi uma outra faculdade aprender o passo a passo do processo de defesa e demarcação de uma terra.
O Morro dos Cavalos entra então nesse papel desafiador porque além de todo esse processo demarcatório que precisa ser feito, ainda temos que fazer o enfrentamento com os empreendimentos que existem dentro da Terra Indígena, como a BR-101, a sobreposição territorial do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, e outros empreendimentos localizados dentro do território. Tudo isso envolve termos relações com o Estado e os consórcios, e eu não sabia nada disso, fui entendendo o processo ao longo da luta. E o processo de demarcação então começa a ir se desenrolando.
Retomando, quando eu me tornei cacique no Morro dos Cavalos, o processo ainda estava no início, por uma portaria declarada pelo ministro da justiça. Logo em seguida sai a demarcação física e, quando ela sai são feitos os mapas, e começa então uma enorme perseguição contra a minha pessoa e a comunidade. Foram anos de muita batalha. Desde 2012 venho sendo muito perseguida por isso. Pessoas vinham à minha casa de madrugada e atiravam na casa, rondavam a área onde moro, me perseguiam na rua, e mesmo assim me posicionei no papel de ser essa liderança que faz o enfrentamento, com a consagração e benção dos nossos líderes da tekoa [como os Guarani se referem às suas terras e comunidades]. Tinha e sigo tendo essa certeza e confiança em estar nesse papel.
Só que a partir de um ponto, a minha família começou a ser ameaçada. Meus filhos, meu pai, meus irmãos, minha mãe. Até que em 2017 acontece um ataque dentro da Terra Indígena Morro dos Cavalos no qual a minha mãe foi pega, em casa, enquanto dormia, e foi torturada da forma mais terrível que você possa imaginar. Até hoje não conseguimos descobrir quem são esses torturadores ou da onde vieram.
Fizeram uma tortura brutal com ela, cortaram todo o seu corpo e arrancaram sua mão esquerda. Hoje minha mãe não tem essa mão.
Naquele momento eu pensei em desistir da luta porque as ameaças estavam muito fortes. Mas pensei que se desistisse seria pior, pois estávamos no meio do processo de homologação, e era todo o meu povo que estava passando por isso. Torturaram a minha mãe visando me tirar do espaço que ocupava, mas o ataque foi contra a terra indígena, todo o povo, toda a comunidade. Então fiquei nessa encruzilhada. Fizemos a denúncia para todo o mundo, não tivemos nenhum retorno e nenhuma garantia de proteção, nem para o território e a comunidade no geral, e nem para a minha família no particular. Pelo contrário, o que eu vi dentro do Estado e do município, naquele momento de muita dor, luto e sofrimento, de termos visto a mãe perder uma mão sob tortura, e a comunidade toda em choque com tudo o que aconteceu, que na mídia de Florianópolis e região falava-se sobre o assunto, mas com insinuações de dúvidas, se era verdade ou não o que estava acontecendo.
Teve um dia que saiu num jornal local que um procurador de Palhoça dizia que policiais tinham pego um suspeito na cidade que, por sua vez, havia confessado o crime. Só que embora tivesse confessado o crime, dentro da visão desse procurador, que olhando pra pessoa que está confessando o crime, entende que ela estaria sendo ameaçada pelos familiares da vítimas e, por isso, confessava o crime. É inacreditável. E nós estávamos com muito medo naquele momento para desmentir a versão.
Quando vi a notícia, não comentei com ninguém, parei e pensei: de fato o Estado está nos entregando à morte e agora qualquer coisa que acontecer conosco na Terra Indígena, principalmente comigo ou com a minha família, será para a sociedade um ato de autodefesa, depois desse depoimento do procurador. Essa reportagem realmente inverteu os fatos. Então ali me senti totalmente entregue mesmo, perdendo todas as forças e os sentidos, e sem saber como reagir. Se ia embora, se ficava, como ficaria entre a minha família e todo esse processo da comunidade, da demarcação das nossas terras.
Isso foi no final de 2017, então em 2018 eu decidi que iria me apresentar ao movimento indígena como uma candidata aos espaços institucionais. De toda forma já estava sendo perseguida e atacada, e a qualquer momento pessoas podem chegar e fazer algo ruim comigo, inclusive me ameaçar de morte, então vou me apresentar como candidata e, nesse movimento, denunciar tudo isso que aconteceu comigo e com o meu povo. Tinha decidido que iria abrir minha boca e falar sem medo, porque todo o tempo que eu vivi ali tentando fazer denúncia, procurando polícia, procurando a FUNAI etc., nunca resolveu nada. Então resolvi que vou falar para a sociedade, para o povo, o que está acontecendo – e seja o que deus quiser. É melhor fazer essa denúncia e futuramente ficar para que as pessoas que continuarem entendam todo o processo, do que ficar em silêncio ou fugir e essas mesmas coisas acontecerem com outras pessoas no futuro.
Correio da Cidadania: Dentro desse contexto, como você foi parar no PSOL e que impressões teve desse novo momento? O que destaca da primeira campanha, em 2018?
Kerexu Yxapyry: Conversei com alguns partidos e dentro do PSOL pude me apresentar como uma liderança indígena, e pautar a demarcação das terras. Outras pessoas e organizações acharam a proposta interessante, mas senti que ficaram com receio de falar sobre as demarcações, que é o que historicamente trazem os conflitos em Santa Catarina.
Com o PSOL eu consegui trazer isso, me deram essa abertura. Foi onde eu fui como “Kerexu Yxapyry, liderança do Morro dos Cavalos, na luta pelas demarcações e a transformação pelo bem viver”, lema com o qual tentei mostrar durante a campanha a ideia de que existe esse lugar e esse sonho bonito que os povos indígenas trazem, e que não é só para nós, mas para todo mundo fazer parte dessa construção que nós apresentamos a partir da nossa cultura.
Minha campanha em 2018 foi muito voluntária. Me apresentava como candidata pela primeira vez, não tinha recursos e poucos me conheciam fora do movimento indígena. Além disso, dentro do próprio partido senti um distanciamento, uma desconfiança, senti um pouco a sensação de que estava cumprindo alguma espécie de “cota indígena” ali, como candidata. Naquele momento eu via o partido olhando para a minha candidatura dessa forma. Mas quando saiu o resultado das urnas, no final, todos se surpreenderam porque mesmo muitas vezes sendo vista dessa forma subestimada, e com uma pauta muito desafiadora, que é a demarcação de terras – e toda a negação e perseguição do Estado sobre ela e quem a defende – tive um resultado muito bom nas urnas. As pessoas me perguntavam como eu podia ter tido uma votação tão expressiva, sem qualquer recurso para campanha.
Tudo isso me deu forças para mais uma vez me apresentar como candidata à sociedade, a fim de trazer essas reflexões sobre a situação indígena, ambiental e geral, especialmente agora em que vemos como está o Brasil, com tudo cada vez mais difícil e com a perseguição ao que se conhece como minoria – mas que na realidade são maiorias excluídas, como os povos indígenas, o povo negro e os pobres e trabalhadores como um todo.
Correio da Cidadania: Você afirmou o seguinte: “Moro na Mata Atlântica, uma floresta usurpada, estuprada, que quase não existe mais. E é com a força da resistência da floresta que aceitei esse desafio e me coloquei aqui para levar essa missão adiante”. A partir dessa declaração, quais as tuas expectativas para a campanha e, em caso de ser eleita, como projeta o teu mandato?
Kerexu Yxapyry: A questão principal é a demarcação das terras, mas além dela, tento trazer com força, por ser do território Guarani e do bioma Mata Atlântica, a questão do reflorestamento.
Precisamos dar essa visibilidade a essa pauta e às denúncias dos crimes ambientais que vêm ocorrendo ao longo da Mata Atlântica. Além disso, queremos fazer o chamado para que a sociedade pense em construir um novo sistema de políticas onde o diferente venha para somar e colorir mais esses espaços, para criar e preservar a diversidade e a biodiversidade – que tornam o Brasil um lugar tão rico. E são justamente essas diversidade e biodiversidade que hoje estão na linha de frente sendo ameaçadas de morte por todo esse pacote de governança que vemos hoje no país.
Correio da Cidadania: Lançastes a tua candidatura em conjunto com Sônia Guajajara e Célia Xakriabá no Acampamento Terra Livre, em Brasília, de onde estamos gravando essa entrevista. O que comenta sobre elas e sobre a Joenia Wapichana, atual deputada federal indígena?
Kerexu Yxapyry: O movimento indígena se organizou para apresentar as candidaturas de mulheres indígenas – embora também haja vários candidatos homens. Nós, mulheres, estamos sendo lançadas pela organização. E o que trazemos para refletir dentro desses 18 anos de Acampamento Terra Livre em que viemos organizando e mobilizando nossos povos, é que percebemos que nas mulheres indígenas vemos muito essa linha da organização, como mães que organizam suas casas e comunidades. Além disso, as candidaturas indígenas pensam muito no coletivo, do que deveria ser essa democracia da consulta, da inclusão. Por isso estamos aqui.
Em 2018 foi feito o primeiro chamado para que os parentes se apresentassem como candidatos e assumissem esses espaços. Vimos que uma única mulher que conseguiu chegar ao Congresso Nacional, a deputada Joenia Wapichana, vive o propósito do movimento indígena e conseguiu fazer um trabalho de mobilização lá dentro. Ela consegue trabalhar de forma coletiva com uma bancada de parlamentares que estão ali com ela no enfrentamento a todos os pacotes que chegam sobre a questão indígena e ambiental. E embora sejam minoria, fazem um ótimo trabalho e conseguem segurar muitos retrocessos.
O que também tínhamos visto nas eleições passadas, era que existia muito a ideia de candidaturas coletivas. Pareceu interessante, mas no final das contas decidimos que não iríamos seguir esse modelo. Pensamos em ir individualmente nas campanhas, mas a partir do momento que assumirmos a nossa cadeira no Congresso, iremos trabalhar lado a lado com o movimento indígena. Daí o lema do “aldeamento da política”, porque vamos trabalhar como nós somos, coletivamente.
Correio da Cidadania: Como avalia o brutal período bolsonarista em que vimos, além do avanço sobre os povos indígenas, todos os biomas queimarem como nunca? Como reverter esse processo?
Kerexu Yxapyry: Desde 1500 quando houve a invasão do Brasil, nós vemos a destruição. E hoje estamos tendo o pouco que nos resta invadido. Bolsonaro pretendia fazer a entrega do Brasil e do que ainda resta do Brasil. Talvez não tenha conseguido consumar, mas fez com que muitas pessoas acreditem nele. Contudo, toda a política que Bolsonaro tentou fazer não é algo do interesse dos povos brasileiros, sejam indígenas ou não indígenas. Essa política é do interesse completo dele, da sua família, seus aliados políticos e empresas e grupos estrangeiros da Europa e dos Estados Unidos.
Quando começam a ter esses grandes incêndios nas florestas brasileiras, também ficamos na linha de frente para fazer a defesa e a denúncia desses biomas que estavam sendo queimados. Fui algumas vezes para fora do Brasil fazer essas denúncias, principalmente nas COPs, e era muito assustador ver lá as pessoas que propunham aos povos indígenas a proteger a Amazônia, como se só ela existisse. Me chocou muito, porque essa proteção dita por esses financiadores, de trazer recursos para os povos indígenas e para o governo brasileiro não era para a proteção, mas trazia nas entrelinhas um olhar de exploração das riquezas que ainda existem nessas florestas.
Muita coisa do que vinha para o Governo Federal sobre financiamento para proteger a Amazônia não era com essa intuição de proteger. Por exemplo, tínhamos que falar que na Amazônia tinha muita água, medicina, ouro etc. Ou seja, parecia mais uma propaganda da Amazônia do que um pedido de proteção. Algo como pagar para que não mexessem nessa riqueza, por enquanto. Visto isso, levamos o questionando enquanto movimento indígena, e eu mesma fiz esse papel de chamar a atenção dos europeus: ‘que negócio é esse de vocês dizerem que estão protegendo? Esses projetos que vocês estão trazendo são de exploração, e não de proteção’, disse algumas vezes.
Disse isso porque, entre outras coisas, temos também mais biomas destruídos e ameaçados, como por exemplo na minha região, a Mata Atlântica – pra não falar do Cerrado, dos Pampas, do Pantanal e da Caatinga. O nosso foi o primeiro bioma a ser impactado quando os europeus invadiram o Brasil – que passou e continua passando por todos os processos de morte até hoje com os agrotóxicos, as rodovias, as ferrovias. Tudo o que é construído no Brasil chega do oceano e passa primeiro pela Mata Atlântica.
A nossa floresta foi a primeira a ser destruída. Então por que não existe um projeto sério de reflorestamento dela? Te digo: porque as riquezas já estão esgotadas.
Toda hora vinha alguém me perguntar se eu era indígena e se era da Amazônia. Quando dizia que não, mas da Mata Atlântica, alguns até desconversavam. Fiz esse chamado em Madrid e em Londres: ‘vocês querem proteger a floresta? Então comecem a pôr as mãos no fogo, abram seus asfaltos, ponham a mão na terra, e curem os seus espaços que foram destruídos. Só assim começaremos a proteger a Amazônia porque os nossos biomas dependem um do outro para terem equilíbrio’. Muitos já não quiseram mais conversar, e outros entenderam a mensagem.
Retomando a tua pergunta, nesse momento o que estamos vendo são muitos ataques, muitas vendas de terras indígenas por grileiros, e mortes. Como o caso dos Yanomami, onde o garimpo contamina as águas, mata as crianças, onde as mulheres estão sendo violentadas pelos garimpeiros, e onde não existe um olhar de proteção, nem de punição a quem está cometendo esses crime. Bolsonaro, é claro, está lucrando muito com isso politicamente, e o capital estrangeiro junto dos oligarcas brasileiros lucram literalmente. Ou seja, as pessoas que estão nos territórios cometendo essas ações ruins são apenas uma parte do problema.
Temos muito receio de que ataques aos povos indígenas se intensifiquem ainda mais agora nesse segundo semestre, já que pode ser o último do governo Bolsonaro. Por isso a necessidade de tirá-lo do poder o quanto antes.
E para terminar, gostaria de deixar como mensagem para quem tiver lido e acompanhado essa minha entrevista, de que precisamos assumir o papel de sermos pessoas humanas, como fomos criados pelas divindades. Precisamos abrir os olhos e entender de fato o que foi planejado para nós. Olhar e dizer que essa luta de todos que estão fazendo esse enfrentamento maior, principalmente dos povos indígenas, é uma luta para todos. E queríamos que a sociedade abrisse mesmo os olhos e visse o tanto de morte e insensatez que tem sido planejada para que chegássemos a esse ponto.
Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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