Já vimos esse filme

Imagem: Kemp

Por Celso Vicenzi.*

Nos cinemas, fazendo sucesso, o filme Lincoln, de Steven Spielberg, que concorre ao Oscar com 12 indicações. Não escapa ao espectador brasileiro, num misto de surpresa e ironia, saber que o 16º presidente dos EUA não relutou em lançar mão de expedientes pouco honestos para garantir uma vitória na Câmara dos Representantes. Não era pouca coisa o que se decidia, e os métodos não foram nem um pouco ortodoxos – ou foram, se considerarmos que, de fato, nenhuma civilização esteve imune a eles, desde o início da história humana. Para ir direto ao ponto: Lincoln pede a seus correligionários que consigam os 20 votos que estão faltando para aprovar a 13ª Emenda Constitucional, que colocaria um fim à escravidão em solo norte-americano. No filme, o próprio Lincoln reconhece a linha tênue que separa algumas das suas decisões da arbitrariedade. Confessa que tem superpoderes e que não sente pudor em lançar mão deles. E, sobre os integrantes da Câmara, sua opinião era muito próxima àquela formulada mais recentemente por Lula, quando este falou em “picaretas”. Para conseguir a aprovação da emenda – o que de fato aconteceu – Lincoln explica àqueles que vão negociar em seu nome que podem oferecer cargos e outras vantagens para que os membros recalcitrantes da Câmara mudem de lado. Em linguagem bem atual, uma espécie de “mensalão” norte-americano.


Combater a corrupção é desejável, sempre. Mas parece haver, principalmente no Brasil, uma excessiva dramatização dos fatos. A história sempre foi contada pelos vencedores, por aqueles que estão no poder. E, quase sempre, mal contada. Omitem-se fatos, realçam-se outros. Em linguagem mais clara: escondem-se algumas corrupções, amplificam-se outras. O campo da política costuma ser tão brutal que ninguém que passa pelo poder, ao que parece, escapa ileso. Na melhor das hipóteses, peca por negligência.

O povo brasileiro, culturalmente, não costuma ser ufanista em relação a seu país. Cultuamos poucos heróis e é tênue o limite entre a idolatria e o ódio. Haja vista o que acontece nos campos de futebol. Macunaíma, nosso principal herói literário já nasceu sem caráter. Costuma haver um sentimento generalizado de que o Brasil é um país corrupto, que aqui nada tem jeito. Talvez porque à boa parte da classe média e rica não interesse mesmo fazer grandes mudanças. Se tomarmos como referência o ranking da Transparência Internacional (2012), há motivos para preocupações, mas nada que nos leve a uma situação de autoflagelo. Entre 176 países pesquisados, o Brasil é o 69º menos corrupto. Está à frente da Itália, por exemplo, e dos outros países do BRIC: China, Índia e Rússia. Não é motivo de regozijo, menos ainda de desespero.

A prática da corrupção é universal. O Banco Mundial estima que mais de 1 trilhão de dólares são desviados anualmente.  A Organização Mundial da Saúde calcula que 25% dos medicamentos adquiridos em todo o planeta são desviados de seus objetivos e 60% chegam aos hospitais depois de passar por esquemas de corrupção.


Portanto, pedagogicamente, talvez fosse melhor encarar o problema como algo que sempre existiu e existirá, mas que pode ser atenuado, a depender de esforços e vontades. Sem falsos moralismos e oportunismos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a maior parte dos municípios brasileiros fiscalizados pela Controladoria Geral da União, no Brasil, apresenta algum problema com corrupção. Em outras palavras, não é uma exceção, não está localizado em uma única corrente política ou região. Está presente em todas as profissões e em todas as camadas sociais.


Se quisermos ir mais longe na história, veremos que o choque entre o bem individual e o bem comum é traço do comportamento social que sempre acompanhou o ser humano. O Código de Hamurabi – um dos mais antigos que se conhece –, datado de 1.700 a.C., já fala em punição de governantes corruptos. Do Cristianismo vem o relato de que Judas traiu Jesus por 30 moedas de prata. E depois se suicidou. Já os corruptos atuais não costumam se arrepender. E negam mesmo diante de provas insofismáveis.


O Império Romano, que dominou boa face da Terra, não esteve imune. O que parece tornar um axioma a frase atribuída a Lord Acton: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Corrupção, aliás, é palavra latina, que significa, entre outras coisas, apodrecimento, decomposição.


Sêneca, filósofo e intelectual romano, deixou relatos afirmando que pilhar as províncias como governador era “o caminho senatorial para o enriquecimento”. Cícero, filósofo, orador e escritor, depois de um ano como governador de província, voltou para casa rico. Hoje não é muito difícil que isso também aconteça, mesmo que pelas vias legais – tantas são as mordomias que se destinam a quem está no poder. Segundo o economista Ladislaw Dowborn, “a grande corrupção é aquela que é tão grande que se torna legal”. Ou seja, é feita por pessoas que, não raro, usam as melhores e mais caras gravatas. E saem nas melhores fotos, nas capas dos jornais. Ou, como ironizou Bertolt Brecht: “O que é roubar um banco comparado com fundar um?”.


Suborno, extorsão, fisiologismo, nepotismo, clientelismo e peculato são algumas das formas mais comuns de corrupção. Leis, decisões judiciais e ações do poder Executivo que não visam o bem comum e se destinam a criar privilégios também deveriam ser enquadradas como tal. Mas não são apenas os políticos ou outras autoridades que se locupletam. O jurista Calil Simão lembra muito bem que não existe corrupção política sem haver corrupção social, ou seja, primeiro a sociedade se corrompe para, posteriormente, corromper o Estado. Pode-se não concordar inteiramente, mas é, no mínimo, uma via de mão dupla. O que significa o famoso “jeitinho” brasileiro senão uma forma de corrupção? Quantos são os exemplos cotidianos – sempre em nome de alguma causa – do povo brasileiro para imiscuir-se na corrupção? Desde sonegar Imposto de Renda, furar filas em órgãos públicos (para acelerar processos), tentar subornar agentes públicos para fugir de fiscalizações, pedir emprego em troca de votos e tantas outras possíveis de enumerar. Melhor do que fazer cara de inocentes é admitirmos que algumas práticas do cotidiano precisam ser revistas. Alguns hábitos de comportamento, desenraizados. E que a fiscalização dos poderes, sem esquecer de fiscalizar os interesses particulares da mídia, é o melhor antídoto.

Grandes lideranças da história mundial – como Lincoln, para retomar o início do texto – não deixaram de fazer uso de ações pouco recomendáveis para alcançar certos objetivos. Não cabe, aqui, relativizar as consequências, muito menos fazer o elogio da contravenção. Mas não há como deixar de constatar o uso político e seletivo de questões éticas e morais. A mídia e grupos de poder calam ou denunciam, conforme interesses muito particulares. Amplificam ou reduzem espaços de visibilidade.

As relações sociais e as instituições políticas são mais desafiadoras do que as simplificações que buscam produzir indignação momentânea, sem resolver os problemas e suas causas. Poucos governos no planeta – se é que houve – não tiveram que negociar algo fora da legalidade. Há os melhores e os piores, mas todos precisaram, às vezes, lidar com “a banda podre da sociedade”.

Por isso, o julgamento de um governante ou de um governo não pode ser somente moral. Lincoln não diminuiu sua importância na história por conta da maneira como conseguiu os votos para a 13ª emenda. No plano político, tem mais relevância a ética que visa o bem comum do que a particular. Mais importante é saber quais foram as mudanças promovidas na sociedade e se estas beneficiaram a maioria do povo e os setores mais necessitados.  No entanto, este costuma ser um terreno minado pela demagogia e o populismo. Ainda mais na era da comunicação de massa, em que o convencimento se dá muito mais pela emoção que pela reflexão.

 

* Celso Vicenzi é jornalista.

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