Por Andrew Fishman.
“Meu deus, é igual à intervenção militar nas favelas do Rio – mas muito pior.” Isso é o que Cecília Olliveira, do Intercept, dizia repetidas vezes, horrorizada, enquanto caminhávamos pelos postos de controle militar israelenses e nas ruas enjauladas de Hebron, a cidade distópica que é a maior da Cisjordânia, na Palestina.
Os colonos religiosos israelenses – muitas vezes nascidos fora dali, em países como os Estados Unidos – estão casa a casa, centímetro a centímetro, tentando estrangular e desenraizar a sociedade palestina em Hebron e tomar a cidade santa. É seu “direito divino”, argumentam. O direito internacional e as organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a B’Tselem utilizam um vocabulário diferente: ocupação ilegal, Apartheid e crimes contra a humanidade, entre outros.
A realidade segregada e militarizada da cidade é chocante para qualquer observador externo, mas as condições são muito melhores do que as dos palestinos que vivem em Gaza, que é considerada pelas organizações de direitos humanos a maior e mais superlotada prisão ao ar livre do planeta, com 2 milhões de habitantes.
No sábado, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu fez declarações abertamente genocidas: “Vamos transformar Gaza numa ilha deserta. Aos cidadãos de Gaza, eu digo: vocês devem partir agora. Iremos atacar todos e cada um dos cantos da faixa.” Evacuar ou ser bombardeada — só que os cidadãos de Gaza não tem para onde correr.
O ministro da segurança nacional que ajudará Netanyahu a cumprir essa promessa é Itamar Ben-Gvir, um colono extremista que foi condenado em um tribunal israelense por apoiar uma organização terrorista e incitar o racismo contra os palestinos em 2007.
Numa sucessão de ataques militares a zonas civis densamente povoadas nos últimos anos, Israel bombardeou instalações de tratamento de água, centrais elétricas, hospitais e escolas de Gaza, fechou as suas fronteiras e portos, proibiu a operação de um aeroporto e destruiu pelo menos um terço das terras agrícolas de Gaza desde 2000, quando evacuou assentamentos israelenses ilegais na área. No sábado, Israel lançou outro bombardeio a Gaza, o oitavo grande ataque desde 2005.
A causa imediata foi uma operação violenta sem precedentes perpetrada pela ala militante do Hamas, o partido político que governa Gaza desde a última eleição em 2006 e que tem apoio da população palestina. Esse ataque, chamado de “Operação Tempestade al-Aqsa”, surge no contexto de uma série de ações agressivamente provocativas por parte do governo israelense nos últimos meses — geralmente omitidas de cobertura jornalística — além de 75 anos de ocupação, e 16 anos de embargo apertado da Gaza.
Observadores internacionais, lideranças palestinas e pesquisas de opinião pública palestinas têm sinalizado há tempos que uma resposta violenta às agressões israelenses estava se desenhando, mas a liderança israelense de extrema-direita nunca imaginou que um golpe dessa magnitude fosse possível.
Até o momento, mais de 413 palestinos e 700 israelenses foram mortos. Há ainda mais de 2.300 feridos de cada lado.
Os olhos do mundo, depois de ignorar os ataques diários contra os palestinos, estão agora voltados para a tragédia em curso na Palestina e Israel. E, como é de se esperar, muitas das mesmas distorções, mentiras e meias-verdades de sempre estão sendo repetidas nos meios de comunicação corporativos e nas redes sociais para legitimar a violência israelense e atacar a resistência palestina à colonização.
Listo abaixo uma seleção de algumas das narrativas mais difundidas e perniciosas da mídia, tanto nos Estados Unidos e Reino Unido quanto no Brasil, onde a imprensa empresarial reflete em grande parte os pontos de vista estadunidenses sobre assuntos internacionais.
1. O “conflito Israel-Palestina” é uma “guerra”
Referir-se à ocupação israelense da Palestina como um “conflito” ou aos ataques israelenses como parte de uma “guerra” serve incorretamente para criar uma falsa equivalência entre as duas partes, como se fossem iguais e equilibradas.
Israel é uma nação independente que investe R$ 120 bilhões por ano nas forças militares e de inteligência, que estão entre as mais sofisticadas do mundo. Controla as fronteiras, os céus, as costas marítimas, as telecomunicações e a economia da Palestina, cujo governo tem uma autonomia extremamente limitada. A resistência armada palestina durante anos incluiu facas, fogos de artifício, explosivos caseiros e parapentes como parte essencial do seu arsenal. Os palestinos não têm tanques, aviões, navios de guerra, submarinos ou artilharia pesada. Nos últimos anos, receberam mais ajuda militar estrangeira — ainda irrisória em comparação ao poderio dos militares israelenses.
Israel não está em “guerra” ou em “conflito” com o Hamas ou com a nação da Palestina — é uma força de ocupação colonial ilegal que usa seu exército poderoso para, diariamente, cometer crimes contra a humanidade para reprimir os palestinos, um povo que está resistindo sua colonização racista.
2. Israel é uma “democracia ocidental”
Deixando de lado uma série de decisões políticas e jurídicas autoritárias dos últimos anos, Israel realiza eleições regulares, tem um parlamento, um Supremo Tribunal, uma imprensa em alguma medida livre e todas as instituições de uma democracia. Mas falta uma coisa importante: os 5 milhões de palestinos que estão sob ocupação israelense não têm direito a voto. Se todos que estivessem sujeitos à autoridade israelense tivessem o direito de votar, a maioria seria palestina e a política israelense seria totalmente diferente. Se incluirmos os milhões de refugiados palestinos fora do país que gostariam de regressar à sua terra natal, o quadro se torna ainda mais claro.
Além disso, a maioria eleitoral sionista tem passado uma série de leis discriminatórias que visam limitar os direitos de cidadãos não-judeus de Israel. Essas são as principais razões pelas quais muitos observadores internacionais não consideram Israel uma verdadeira democracia.
E embora saibamos que isso não acontece na prática, em princípio, esperamos que as democracias ocidentais pelo menos finjam que respeitam os direitos humanos. Israel não tem esta pretensão há anos.
3. A ausência da palavra “Apartheid”
As Nações Unidas, a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e muitas outras organizações e acadêmicos proeminentes rotularam Israel como um estado colonial de Apartheid. Isto significa que o Estado pratica discriminação e segregação sistêmica racial de forma desumana para oprimir determinadas populações. As provas são esmagadoras e esta é a realidade dos cidadãos palestinos de Israel e ainda mais dos súditos coloniais palestinos nos territórios ocupados.
Este fato, contestado pelas autoridades israelenses e muitas vezes ignorado ou qualificado pela imprensa, é um elemento importante do apelo palestino à justiça e à autodeterminação e é crucial para demonstrar por que a resistência palestina é uma luta de libertação legítima e não apenas terrorismo irracional e antissemitismo, como querem fazer crer.
4. “Israel respondeu à agressão palestina” (A Palestina é sempre o agressor)
Os ataques israelenses a civis palestinos — que são crimes de guerra — são quase sempre enquadrados como respostas às provocações palestinas, colocando assim o ônus sobre os palestinos colonizados. Este enquadramento por grande parte da imprensa ajuda a atenuar a culpabilidade israelense, e é geralmente uma delimitação arbitrária que ignora as provocações criminosas dos israelenses contra os palestinos – muitas vezes feitas com pleno conhecimento de que estes atos levarão a uma resposta bélica.
Nada une melhor as sociedades do que uma ameaça comum e, em diversas ocasiões no passado, os líderes israelenses foram acusados de provocar respostas violentas intencionalmente, a fim de aumentar a coesão política e obter apoio público.
O Hamas é explícito ao afirmar que as suas ações hoje são uma tentativa de atrair a atenção da comunidade internacional para a situação do povo palestino. “Queremos que a comunidade internacional pare com as atrocidades em Gaza, contra o povo palestino e aos nossos locais sagrados como al-Aqsa. Todas essas coisas são a razão por trás do início desta batalha”, disse o porta-voz do Hamas, Khaled Qadomi, à Al Jazeera.
Israel é liderado atualmente pelo governo mais da extrema-direita da sua história e está passando por graves turbulências políticas, incluindo manifestações históricas que atraíram milhões de cidadãos nas ruas, protestando contra novas reformas autoritárias que diminuem o poder do judiciário. Este governo extremista tem provocado agressivamente tensões com os palestinos há meses e os líderes palestinos têm alertado a comunidade internacional de que estas provocações eram uma escalada que levaria a uma nova escalada.
Em julho passado Israel invadiu Jenin, um dos maiores campos de refugiados da Cisjordânia, matando 12 pessoas e atingindo 80% das casas depois de “terraplanar” as ruas com escavadeiras. Um ministro do governo declarou publicamente que “não existe” povo palestino e, após uma chacina perpetrada por colonos israelenses no povoado palestino de Huwara, disse que o local deveria ser “apagado” pelo Estado.
As provocações israelenses são demasiado numerosas para serem enumeradas, mas muitas se centraram em torno da mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, o terceiro local mais sagrado do Islã. A mesquita e seus arredores têm sido palco de repetidas e incessantes atos de violência por parte das forças de segurança israelenses e de colonos judeus ultraortodoxos, muitas vezes gritando“morte aos árabes”.
“Os ataques diários contra locais sagrados e fiéis durante o mês sagrado do Ramadã são ações condenáveis e inaceitáveis que irão inflamar a região e arrastá-la para o abismo”, disse um porta-voz da Organização para a Libertação da Palestina, que representa o povo palestino internacionalmente, em abril deste ano. As provocações continuaram e há três dias, judeus ultraortodoxos invadiram os arredores da mesquita – uma ofensa grave e intencional – com a ajuda das forças de segurança israelenses.
Israel também reduziu recentemente os direitos dos prisioneiros palestinos, o que levou a uma greve de fome de centenas de prisioneiros e a um protesto em Gaza, onde soldados israelenses mataram um manifestante e feriram outros nove. Mais de 5.000 palestinos são presos pelo Israel, inclusive muitos líderes políticos eleitos, como o popular herói da resistência palestina Marwan Barghouti.
Tudo isto somado a 75 anos de ocupação, a 16 anos de embargo a Gaza e racionamento de bens básicos — que vão de água e comida a insumos médicos — que está propositalmente estrangulando a economia local.
Leia a matéria completa em https://www.intercept.com.br/2023/10/08/israel-palestina-jornalismo-comete-erros-gaza-hamas/
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