A ditadura argentina vista pelos olhos de uma criança, filha de ‘montoneros’
Por Maria do Rosário Caetano.
O cinema latino-americano já nos contou a história de homens e mulheres que, na clandestinidade, lutaram contra governos ditatoriais. Contou, também, a história de crianças, orfãs de militantes de esquerda, adotadas por militares. Alguns deles, responsáveis diretos pela morte de seus pais.
Infância Clandestina, filme do argentino Benjamín Ávila, em cartaz nos cinemas brasileiros, adota novo enfoque: a clandestinidade de crianças. Isto mesmo: meninos que viveram sob nomes falsos em casas-aparelho, onde as visitas eram raras e silenciar sobre a vida dos familiares constituía regra cotidiana.
O longa-metragem, que disputa vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro, é uma produção entre a Argentina e Brasil. Na parte argentina, destacam-se, entre os produtores, dois nomes de ponta do cinema hispano-americano – o documentarista Tristán Bauer (Che, Um Homem Novo), hoje diretor da TV pública argentina, e Luiz Puenzo, autor de A História Oficial, primeiro filme sul-americano a ganhar o Oscar estrangeiro (o outro foi o também argentino O Segredo dos Seus Olhos, de Juan José Campanella).
O Brasil entrou na criação de Infância Clandestina desde o primeiro esboço do roteiro. O paulista Marcelo Muller, trabalhou com Benjamín Ávila nas cinco versões do roteiro. Depois, a Academia de Filmes, tornou-se a parceira e co-produtora brasileira de Infância Clandestina. E dois atores – a paraibana Mayana Neiva e o paulista Douglas Simon – agregaram-se ao elenco.
O trabalho de Marcelo Muller e de Gustavo Giani foi reconhecido pela Academia Argentina de Cinema, que os premiou com o troféu “Sur”, nas categorias roteiro e montagem. O sucesso de Infância Clandestina junto a produtores, realizadores, atores e técnicos foi avassalador. O filme recebeu indicações em todas as categorias possíveis, 16 em 19. E venceu em onze delas, incluindo melhor filme, diretor, atores principais e coadjuvantes. Infância Clandestinaconta a história de Juan (o excelente Teo Gutiérrez Romero), sobrinho e filho de pai e mãemontoneros (militantes do peronismo de esquerda, que optaram pela luta armada). Quando os pais deixam o exílio (em Cuba) e decidem voltar, clandestinos, à Argentina, para prosseguir na luta contra a ditadura militar (1976-1983), Juan ganha nome falso (Ernesto) e tem que perder o sotaque “cubano”. Os pais interpretados pelos atores uruguaios Cesar Troncoso e Natália Oreiro lembram que, sob a nova identidade, ele será um menino vindo de Córdoba. Juan (agora Ernesto) entra em território argentino pelas mãos de “parentes” brasileiros (Mayana Neiva e Douglas Simon). Vai viver num bairro comum, como filho de distribuidores de balas de amendoim, carameladas em chocolate.
A primeira fonte de inspiração do personagem é o próprio Benjamín Ávila, filho militantes de esquerda, que viveu uma “infância clandestina”. Marcelo Muller, de 34 anos, estudou cinema em Cuba e na USP, e frequentou curso de roteiro de Gabriel García Márquez (Como Se Cuenta um Cuento) em San Antonio de los Baños e no México. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala de sua parceria com o amigo argentino e de suas relações com a escola cubana.
Brasil de Fato – Como um brasileiro foi parar no roteiro de um filme como Infância Clandestina, que estreou em Cannes e, agora, busca uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro?
Marcelo Muller – Fui estudar cinema na Escuela Internacional de Cine y TV, em Cuba. Benjamín, seis anos mais velho que eu, era coordenador da Cátedra de Direção. Convivi com ele no dia-a-dia da escola e nos tornamos amigos. Conheci a história de vida dele, sua condição de “infante clandestino”. Sabia que daria um grande filme. Regressei ao Brasil, depois de concluir o curso de Direção, em Cuba. Surgiu, então, oportunidade de trabalhar na Disney, em Buenos Aires. Fui para lá e Benjamín me hospedou na residência dele. Ele já rinha dirigido o curta Veo Veo (Vejo, Vejo), nome de um jogo infantil, que funcionou como embrião de Infância Clandestina. Esboçamos os primeiros tratamentos do longa-metragem e o inscrevemos no Concurso de Roteiros Inéditos, do Festival de Havana. Fomos premiados.
Quem prestar atenção nas fotos que acompanham os créditos finais do filme, verá que Benjamín era bem mais jovem que o Juan/ Ernesto do filme, não?
Sim. Ele tinha seis ou sete anos quando passou por experiência similar à do personagem deInfância Clandestina. Necessitávamos de um personagem mais ativo, mais consciente do que acontecia ao seu redor. Querer isto de uma criança de seis ou sete anos é querer demais. Resolvemos, então, aumentar a idade do menino e colocar uma história de amor, dele com uma colega de escola, na trama. Achávamos que assim estabeleceríamos mais pontos de identificação com o público.
E esta identificação com o público se concretizou? Como foi o diálogo do filme com o público argentino?
Foi além de nossas expectativas. Afinal, trata-se de uma produção de tamanho médio, lançada com apenas 30 cópias. A procura foi tão boa na primeira semana, que mais 30 cópias foram lançadas. Chegamos perto de 200 mil espectadores e 90% das críticas foram positivas. Fomos selecionados para a Quinzena de Realizadores, em Cannes, e indicados em todas as categorias possíveis para o Prêmio Sur, da Academia Argentina de Cinema. Ganhamos o Colón de Ouro, o principal prêmio do Festival de Huelva, na Espanha. Vencemos, também, o prêmio Casa de las Américas, em San Sebastian, na Espanha, e o Festival da UnaSul. O filme tem distribuição garantida em vários países, inclusive nos EUA. Para um longa que custou um milhão de euros (cerca de R$2,7 milhões) há que se convir que teve um ótimo desempenho.
E como os diretores Luiz Puenzo e Tristán Bauer, dois grandes nomes do cinema argentino, se envolveram na produção do filme?
Desde 2006, quando escrevemos o primeiro tratamento do roteiro, sabíamos que a produção era maior que as possibilidades da produtora de Benjamín. Afinal, ele produzira apenas alguns curtas e dois longas. Resolvemos, então, procurar uma produtora maior. Pensamos, pelo tema do filme, que Luiz Puenzo poderia interessar-se. Ele leu o roteiro e se emocionou. Comentou, até, que Vitória, a irmãzinha de Juan/Ernesto, seria um dos bebês adotados por militares, tema de A História Oficial. Na história real de Benjamín, há um irmãozinho, Diego, que nasceu no exílio e foi entregue a parentes distantes da família, nos EUA. Já o Tristán Bauer, que hoje dirige a TV pública argentina, também nos apoiou na realização do filme. Mas é bom destacar que só tivemos segurança para iniciar as filmagens quando a parceria com a Academia de Filmes, do Brasil, se tornou concreta. O apoio de Paulo Schmidt, do grupo Margarida, que tem na Academia de Filmes seu braço cinematográfico, chegou em momento crucial. Nosso filme foi editado no Brasil, por um montador brasileiro (Gustavo Giani), um craque como o Daniel Rezende, de Cidade de Deus.
Quais são as chances de Infância Clandestina no Oscar?
Temos muitas esperanças de chegar à lista de finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Nossa distribuidora nos EUA é pequena, mas desde os anos 90 a Argentina faz um belo trabalho de promoção de seus filmes nos EUA. Todo ano, o embaixador argentino organiza uma Semana do Cinema Argentino, em Los Angeles. A deste ano [2012], como nos anos anteriores, foi muito prestigiada. O fato de termos Luiz Puenzo como nosso produtor também deve ajudar, não é? Quanto ao conteúdo do filme, o que posso lhe dizer que ele permite muitas leituras. Na Argentina ele agradou aos simpatizantes e aos não-simpatizantes da lutamontonera. Os que estão à direita no espectro político se envolvem com o filme por ver que ele mostra a “irresponsabilidade” de pais que meteram seus filhos pequenos naquela guerra. Em Cannes, uma crítica estadunidense escreveu que os antagonistas do filme são os pais, que não permitem que Juan/Ernesto realize seus sonhos.
Sim, cada um pode dar relevo a aspectos que mais o agradem. Mas o filme não condena osmontoneros.
Nós trabalhamos os personagens para que fossem complexos. Tivemos trabalho para humanizar o pai, que é um dirigente montonero. Na vida real, os personagens em postos de mando são mais duros. E a situação real vivida pela família de Benjamín foi ainda mais tensa.
O que mais é ficção no filme, além da idade do garoto e do namoro com a colega de escola?
Para ser sincero, nesta altura, tudo está tão misturado, que acabo perguntando a Benjamín: isto fomos nós que criamos ou aconteceu mesmo? Outro dia perguntei a ele se a distribuidora de amendoins com chocolate, que camuflava a casa dos montoneros, era invenção nossa ou real. Benjamín me disse que era real, sim. A fachada da casa onde a família residia era de uma pequena distribuidora de doces.
As cenas de ação são encenadas em desenho animado. Isto foi uma solução para cortar custos?
Não. Desde os primeiros tratamentos do roteiro queríamos evitar imagens violentas na narrativa. O filme está, o tempo todo, sob o ponto de vista de Juan/ Ernesto. Tudo é filtrado pela memória, pelos sonhos dele, por isto era importante mostrar as cenas de outra forma, noutro registro. Pensamos num desenho no estilo do Speed Racer, quadrinho japonês dos anos 70, com imagens fixas e aproximações da câmara, com pouco movimento dos personagens. Mas no desenvolvimento do trabalho, com o desenhista Andy Riva, foi desenvolvida uma estética original que ficou diferente da referência. Entendemos que estas cenas são muito mais efetivas do que se fossem filmadas em ação real, pois nos ajudavam a imaginar e a fantasiar sobre a situação com muito mais liberdade.
Os atores do filme são argentinos, uruguaios e brasileiros. Por que dois uruguaios foram escolhidos para interpretar pais argentinos? Ernesto Altério é um astro da TV e cinema argentinos?
A escolha de Cesar Troncoso e Natalia Oreiro se deve ao fato de serem ótimos atores, que trabalham na Argentina e no Uruguai. Troncoso, aliás, tem feito vários filmes no Brasil (Hoje,Faroeste Caboclo). Já Ernesto Altério é filho do grande Hector Altério (História Oficial, O Filho da Noiva). Quando Hector foi para o exílio, durante a ditadura argentina, levou Ernesto, quer era pequeno. Ele fez carreira na Espanha e hoje é muito conhecido lá e na Argentina. Ele protagonizou a série “Ventos de Água”, de Juan José Campanella, que teve boa repercussão.
Como se dá sua relação com Escola de San Antonio de los Baños? Você continua ligado a ela?
Muito ligado. Como me casei com uma cubana (a fotógrafa Mailin Milanés) e gosto muito da Escola, vivo hoje entre o Brasil e Cuba. Vou, a San Antonio de los Baños, duas vezes por ano, dar aulas e participar das atividades docentes. Cuba se tornou minha segunda casa.
Seu projeto de vida é dividir-se entre o magistério e os roteiros?
Não só. Quero dirigir. Afinal, me formei em Direção. Adoro escrever roteiros e adoro o magistério. Já dirigi alguns curtas e tenho vários projetos de longas. Já me inscrevi algumas vezes no Edital de Baixo Orçamento, do MinC. É só ganhar um deles, que concretizo minha estreia.
Fonte: Brasil de Fato