Por Luciana Bertoia, Página 12.
Dez dias antes de Javier Milei assumir o cargo, Diana Mondino – sua atual ministra das Relações Exteriores – explicou como pretendiam compensar a falta de seus próprios legisladores no Congresso: governar por “decreto puro”. Sem explicar a necessidade e a urgência que o levaram a modificar as leis para desregulamentar a economia e o mercado de trabalho, e mostrando que as palavras do chefe da diplomacia argentina eram transparentes, Milei finalmente apresentou seu Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) – cuja constitucionalidade certamente será contestada nos tribunais. Juristas renomados descreveram a estratégia do A Liberdade Avança (LLA por suas siglas em espanhol) como uma usurpação da autoridade do Congresso, uma invasão da divisão de poderes e uma tentativa de concentração do poder público.
Vilma Ibarra, secretária de Assuntos Jurídicos e Técnicos do governo da Frente de Todos, advertiu no X (ex-Twitter) que os DNUs (Decreto de Necessidade e Urgência) só são autorizadas pela Constituição em circunstâncias excepcionais de necessidade e urgência. “Se um DNU revoga 300 leis e modifica outros 300, o poder executivo nacional está se arrogando poderes legislativos que são proibidos. Avassala a divisão de poderes”, observou Ibarra.
A Constituição argentina é clara: o presidente não pode legislar. Ele só tem uma ferramenta para quando o Congresso não puder fazer seu trabalho em “circunstâncias excepcionais”, que são os DNU. Além disso, eles não podem tratar de questões criminais, tributárias, eleitorais ou de regime partidário. Dentro de dez dias após a assinatura do DNU, o chefe de gabinete deve encaminhá-lo à Comissão Bicameral Permanente para estudo.
Em 2006, o Congresso argentino aprovou a Lei 26.122, que regulamenta o procedimento:
A Bicameral pode ou não emitir um parecer. Se não o fizer em um prazo de dez dias, as Câmaras podem tratar do DNU em questão;
O DNU permanece em vigor enquanto estiver sendo analisada pelo Congresso;
Ele só deixa de estar em vigor se ambas as Câmaras o rejeitarem;
Se for rejeitado, os direitos adquiridos durante sua vigência não serão perdidos.
Desde a reforma constitucional de 1994, um DNU nunca foi rejeitado, diz o constitucionalista Gustavo Ferreyra, “porque exige a rejeição por ambas as câmaras e porque não há prazo para isso”. O sistema de controle do Congresso é muito ruim e não funciona. A Lei 26.122 precisa ser alterada e um prazo precisa ser estabelecido: em outras palavras, se não for ratificada pelo Congresso dentro de um ano, o DNU cai”, argumenta ele.
Irregularidades
Em uma exaustiva série de tuítes, Vilma Ibarra explicou o procedimento para a elaboração de um DNU e destacou alguns pontos obscuros na técnica empregada pelo governo de A Liberdade Avança:
“Os ministérios envolvidos devem iniciar um processo e fazer uma minuta com relatórios técnicos e o parecer jurídico correspondente;
O Secretariado Jurídico e Técnico o revisa. Também deve haver um parecer jurídico;
Diversos meios de comunicação publicaram que havia escritórios de advocacia trabalhando ou revisando o megadecreto. “Se foram escritórios de advocacia privados, isso é extremamente grave e não pode ser permitido ou normalizado”, disse Ibarra, acrescentando que faz parte da transparência das ações do governo saber quem trabalhou nisso e se eles se beneficiaram. “Podemos nos deparar com hipóteses criminais devido à corrupção”, alertou.
O ex-ministro da Justiça, Martín Soria, atribuiu diretamente a autoria do DNU a Federico Sturzenegger – que foi visto à direita de Milei durante a cadeia nacional, chegando a deslocar o chefe de gabinete, Nicolás Posse. “O autor da megatroca de (Fernando) de la Rúa -2001- e da bomba Lebacs de (Mauricio) Macri”, ele o definiu. “Enquanto Milei pulveriza os salários e as poupanças dos argentinos, eles pretendem violar a constituição para eliminar leis e direitos por decreto”, escreveu ele nas redes sociais.
A tentação autoritária
“Revogar 300 leis e modificar mais de 300 leis por meio do DNU é uma tentativa de resumir o poder público proibido pelo artigo 29 da Constituição que transforma o Poder Executivo Nacional na Comissão Consultiva Legislativa do século XXI. É a extinção do Congresso como o coração da democracia”, afirmou o constitucionalista Andrés Gil Domínguez.
A Comissão Consultiva Legislativa (CAL) foi o órgão legislativo da última ditadura. Não havia membros do Congresso, mas representantes das Forças Armadas que concordavam sobre qual lei promover e como apresentá-la à sociedade.
“O DNU é uma ferramenta de uso excepcional baseada em orçamentos que precisam ser credenciados. Eles estão substituindo o Congresso e é uma tentativa de somar o poder público”, reafirmou Gil Domínguez em uma conversa com este jornal.
Atos nulos e sem efeito
“Toda autoridade usurpada é ineficaz, seus atos são nulos e sem efeito”, explica Ferreyra. “Um megadecreto que abrange muitos assuntos vai contra a Constituição, porque o processo lógico para a vontade é a lei, não o DNU. Por outro lado, a Suprema Corte de Justiça tem dito, em jurisprudência pacífica e atual, que o DNU não deve abranger matérias jurídicas que tenham vocação de generalidade e permanência: trabalhista, civil, porque essa é uma atribuição natural do Congresso”.
O ex-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados da Capital Federal (CPACF) Jorge Rizzo foi uma das vozes críticas ao anúncio de Milei. “É inconstitucional por completo. Um decreto não pode revogar ou modificar leis. O único caso que a Constituição reconhece é se houver necessidade e urgência. Não há nem uma coisa nem outra. É um escândalo. Gente de Derecho (GDD, o grupo que ele lidera) vai levar isso ao tribunal”, disse ele a este jornal.
A Corte – como Gustavo Arballo escreveu em Brevísimo curso de derecho para no abogados – proclamou “com determinação” que a regra do DNU é a excepcionalidade. Resta saber se os tribunais manterão sua própria linha.
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