Ideologia de gênero: assim surgiu o espantalho

Cunhado por cristãos neoconservadores, foi introduzido na política em 2013. Sua evocação, que mobiliza o senso comum pelo pânico moral, serve àqueles que desejam pavimentar caminho autoritário — eliminando quaisquer dissidências

Por Sônia Corrêa, na Revista Cult

Na vertigem eleitoral de 2018, a fantasmagoria da “ideologia de gênero” desaguou no caudal central da política brasileira. Em janeiro de 2019, o “combate à ideologia de gênero” foi citado como prioridade no discurso presidencial de posse. Desde então, tem sido reiterado, ad nauseam, em falas das autoridades e traduzido em diretrizes, mais ou menos explícitas, de políticas públicas. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucionais leis estaduais e municipais, aprovadas desde 2014, que proíbem gênero na educação, mas isso não deteve a proliferação de projetos de leis antigênero, seja no campo educacional, seja em outros domínios, como o reconhecimento da identidade de gênero na infância, a participação de atletas trans em competições esportivas e o uso da linguagem neutra de gênero. Desde o ano passado, as forças engajadas nessas cruzadas negaram a gravidade da Covid-19, recusaram medidas de isolamento e prevenção e atacaram as vacinas, contribuindo, portanto, para o fracasso da resposta à pandemia, do qual decorre a hecatombe em que o país está mergulhado no começo de 2021.

Essas ofensivas não começaram em 2018, nem são exclusivamente brasileiras. Para dimensioná-las ou interpretá-las corretamente – tratar de sua invenção, maturação e propagação, das forças nelas envolvidas, de seu caráter transnacional e de seus múltiplos efeitos –, precisamos examinar de perto. Não é possível fazer isso em poucas páginas. Neste breve texto, o que ofereço são notas mínimas sobre os ciclones que têm reconfigurado o campo de disputas muito mais antigas em torno de gênero e sexualidade no mundo e no Brasil.

Antes de 2018 

A erupção de uma clara ofensiva antigênero, no Brasil, se deu por volta de 2013, quando forças católicas e evangélicas, associadas ao movimento Escola sem Partido, deflagraram um ataque feroz contra gênero, sexualidade e raça nos debates do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024). Esses embates foram precedidos, em 2011, pela ácida controvérsia sobre o chamado “kit gay” e coincidiram com o repúdio à lei do matrimônio igualitário na França, uma campanha de mesmo teor na Croácia, uma forte diatribe contra “ideologia de gênero” proferida pelo ex-presidente Rafael Correa no Equador e o ataque a uma resolução sobre orientação sexual e identidade na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Mas antes disso já circulava no país o espantalho da “ideologia de gênero”, como definido pela antropóloga Letícia Cesarino. Em 2003, a expressão foi usada por um deputado do Prona em discurso na Câmara Federal e, em 2007, o documento final da reunião do Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), realizada em Aparecida, recomendou o firme combate à “ideologia de gênero”, deflagrando uma propagação mais ampla dessa categoria acusatória no país. Estudo de Carla Castro Gomes – Propagação de discursos sobre “ideologia de gênero” no Brasil, publicado em 2020 e disponível no site do Sexuality Policy Watch – informa que, até 2013, essa difusão se deu, exclusivamente, via canais ultracatólicos. A partir de então, ganhou escala ao ser veiculada pela mídia digital evangélica e replicada por pastores, influencers e figuras políticas.

A invenção da “ideologia de gênero”

O “problema de gênero do Vaticano”, que está na origem dessas mobilizações, eclodiu no estágio final de preparação para a IV Conferência Mundial das Mulheres (Beijing), em março de 1995. Esse episódio e seus desdobramentos foram analisados, em detalhe, em artigos recentes, como “A ‘política do gênero’: um comentário genealógico”, de minha autoria (Cadernos Pagu, n. 53, 2018), “‘Ideologia de gênero’ em movimento”, de David Paternotte e Roman Kuhar, e “A invenção da ‘ideologia de gênero’: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero”, de Rogério Diniz Junqueira (ambos publicados na Revista de psicologia política, vol. 18, n. 43, 2018).

Sintetizando essas análises, o episódio foi uma reação tardia à adoção do conceito de gênero pelo documento final da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo, que acontecera seis meses antes. Na conferência de Beijing, o uso do termo não causou maior controvérsia, embora tenha sido objeto de reservas por parte do Vaticano e do Paraguai. Mas, sem dúvida, inaugurou o que pode ser nomeado como “era da ideologia antigênero”. Iniciou-se a produção de uma vasta literatura de repúdio ao gênero, assinada por autoras e autores não clericais. Ela antecipou a crítica teológica do Vaticano, elaborada nos anos 2000, da qual resultaria, por sua vez, um acervo amplo de documentos vinculando os efeitos nefastos do gênero a múltiplas esferas da vida individual, social e política.

Considerando a primeira dessas duas ondas, no Brasil, a editora Canção Nova publicou em 2008 uma versão reduzida de um livro icônico: Agenda de gênero: redefinindo a igualdade, da jornalista estadunidense Dale O’Leary, que não usou o termo “ideologia de gênero”, mas “feminismo do gênero”. Já no que diz respeito ao acervo teológico, o Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas foi traduzido pelos frades salesianos no mesmo ano de sua publicação (2003) e, uma vez mais, pela CNBB, em 2007. A “Carta aos bispos da Igreja católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo”, de 2004, também teve ampla circulação. As elaborações coetâneas ou subsequentes sobre o “problema do gênero” basicamente repetem e, em alguns poucos casos, alargam os conteúdos e argumentos desses primeiros textos.

A tese central dessa literatura é que a teoria feminista do gênero é um engodo porque anuncia a igualdade entre homens e mulheres para destruir a diferença sexual “natural”. O texto da “Carta aos bispos” adiciona novos elementos a essa acusação, associando gênero à “polimorfia sexual”. Eric Fassin, em “Gender and the Democratic Problem of Universals: Catholic Mobilizations and Sexual Democracy in France”, artigo publicado na revista Religion & Gender (vol. 6, n. 2, 2016), observa que esse discurso se sustenta na primazia da ordem natural, evocada em termos dogmáticos e quase darwinianos para obstaculizar transformações em curso nas democracias sexuais contemporâneas. Esse apelo à ordem natural foi levado ao extremo, em 2009, quando Bento VVI equiparou a “ideologia de gênero” com a destruição das florestas, em discurso na Assembleia Geral da ONU. Desde 2013, Francisco, que tem na defesa ambiental uma de suas prioridades, afirmou, em algumas ocasiões, que “gênero é diabólico”.

A hidra de muitas cabeças 

Embora gestadas em berço católico, as formações que impulsionam as cruzadas antigênero são como hidras de muitas cabeças, e essa multiplicidade nos confunde. Na América Latina, estão assentadas sobre redes mais antigas de oposição ao direito ao aborto, orbitando em torno de um núcleo central que é tanto católico, em geral integrista, como evangélico fundamentalista. Envolvem uma gama muito heterogênea de atores seculares (ou aparentemente seculares): políticos de carreira, membros de corporações profissionais (sobretudo nas áreas de saúde e direito), empresários, institutos e ativistas neoliberais e grupos libertários de direita, mas também grupamentos abertamente nazistas e fascistas. Na Europa, e também na América Latina, mais recentemente, correntes feministas que se opõem à identidade de gênero têm se tornado visíveis nessa mesma e heterodoxa ecologia.

Como semântica política, a “ideologia de gênero” evoca e mobiliza o senso comum. A fórmula é como uma cesta da qual, segundo contextos e circunstâncias, objetos são extraídos para serem alvejados. Aqui o casamento igualitário será atacado, ali serão as leis de violência de gênero, acolá os direitos das pessoas trans. Gênero e sexualidade na educação estão na mira em toda parte e, por vezes, da cesta também sai o direito ao aborto. Com grande expertise comunicacional, as hidras antigênero navegam em condições políticas singulares, como eleições, colando emoções e significantes flutuantes, incitando pânicos morais, agregando públicos. Reativam o conservadorismo inercial das sociedades, produzindo “tempestades perfeitas” que levam a restaurações autoritárias ou à desdemocratização, sendo o Brasil um exemplo evidente.

As políticas antigênero miram, portanto, várias coisas ao mesmo tempo: as feministas que arquitetaram o conceito de gênero, as pessoas trans e queers que contestam com seus corpos a ordem dita natural e muitos outros alvos situados na esfera biopolítica de gênero, sexualidade, reprodução e parentesco. Mas também, e talvez principalmente, visam à ordem política como tal.

O “problema de gênero do Vaticano” está na origem das mobilizações antigênero (Foto: Divulgação)

Gênero e marxismo 

Desde sempre, a fórmula “ideologia de gênero” esteve associada ao marxismo. Essa vinculação, que já estava presente no livro de O’Leary e no primeiro documento latino-americano de repúdio à “ideologia de gênero”, publicado por bispos peruanos em 1998, tem sua expressão mais evidente no O livro negro da nova esquerda, de Agustin Laje e Nicolás Marquez (2016), amplamente lido no Brasil. O argumento central desses escritos é que gênero é uma versão mascarada de marxismo. Contudo, o significado e os efeitos dessa associação não têm sido objeto de maior atenção.

A origem de tal vinculação deve, sem dúvida, ser buscada na larga tradição antimarxista religiosa, seja católico-integrista, evangélico-fundamentalista ou simplesmente vaticana. Esse repúdio que remonta ao século 19 foi reativado, nos anos 1930, no registro dos chamados fascismos clericais, e uma vez mais durante a Guerra Fria, deixando rastros profundos em muitos contextos nacionais, inclusive no Brasil. Nesse exame genealógico, cabe também contabilizar o perenialismo, ou tradicionalismo, objeto do recém-traduzido livro de Benjamim Teitelbaum, Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista (Unicamp, 2020) – obra especialmente relevante no Brasil pois, como se sabe, o tradicionalismo é a fonte de inspiração de Olavo de Carvalho. Essas vertentes religiosas ou transcendentais repudiam o marxismo como pensamento materialista e igualitário, mas também como sintoma das “máculas da modernidade”. São discursos que, com frequência, vilipendiam, num só fôlego, as revoluções francesa, mexicana e russa e as rebeliões dos anos 1960.

Mas são também incontáveis, e muito antigas, as fontes seculares de repulsa combinada ao marxismo e ao feminismo. Entre elas estão os discursos nazifascistas dos anos 1930, que associam o “judeu-marxismo” com a democracia sexual, assim como posições neoliberais seminais, como a expressa por Ludwig von Mises em Socialismo, análise econômica e sociológica, de que o feminismo que busca remover os “limites naturais” impostos ao destino humano é “um filho espiritual do socialismo”.  E, no final do século 20, o marxismo foi objeto de novas leituras críticas que arrastaram mais água para o mesmo moinho.

Muitas delas foram elaboradas por autores do campo de estudos estratégicos nos Estados Unidos – como Pat Buchanan, Samuel Francis, Paul Gottfried, Gerald Atkinson, William Lind e Paul Weyrich –, que desde os anos 1980 e com mais intensidade depois da queda dos muros, estigmatizaram Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt como graves ameaças ao capitalismo e ao Ocidente. No que diz respeito a rebatimentos dessas teses no contexto brasileiro, Eduardo Costa Pinto e João César Rocha têm rastreado sua influência sobre militares bolsonaristas, e nos Estados Unidos o historiador Benjamin Cowan vem mapeando conexões muito anteriores entre Paul Weyrich e a direita religiosa, em particular a organização Tradição, Família e Propriedade (TFP). Mas há também vertentes europeias de direita a considerar, como o grupo de pesquisa coordenado por Alain de Benoist, que, tendo 1968 como ponto de partida, desenvolveu críticas ácidas à esquerda cultural ou neomarxista. E também há autores italianos que conformam o chamado “gramscianismo de direita”, além de vozes espanholas, ambas correntes menos conhecidas no Brasil.

Ainda que suas lentes de leitura não sejam as mesmas, essas várias vertentes avaliam que, apesar da ruína do socialismo real, a denominada “revolução gramsciana” foi muito bem-sucedida, pois alterou a arquitetura normativa das democracias liberais e penetrou na própria lógica do capitalismo. A “ideologia de gênero”, inventada pelo catolicismo neoconservador nos 1990-2000, não só faz eco a discursos dos anos 1920-1930 na Europa, como, sobretudo, foi habilmente enxertada sobre os extratos recentes de repúdio ao chamado marxismo cultural. Dessa hibridização resultou um recurso muito eficaz para nutrir as lutas – discursivas, imagéticas, digitais e das ruas – por hegemonia política, lutas em que as novas direitas estão hoje plenamente envolvidas. A ideologia e as cruzadas antigênero – grafadas como repulsa concomitante ao materialismo e igualitarismo da modernidade – incitam, a um só tempo, pânicos morais e pânicos políticos. É preciso haver, portanto, análise, crítica e resistência nessas duas claves.

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