Identidade como força e não como fardo: uma crítica do filme Zama

Por Francieli Borges, Santa Maria, para Desacato.info.

Este momento, em especial, nos dá a todos certa aura de culpa, ou melhor, uma presença insistente de culpa. Quero dizer, embora as coisas estejam finalmente sendo nomeadas nos termos que talvez mereçam, caso de pautas comuns que finalmente admitem que o que acontece na América Latina é uma disputa entre entendimentos de esquerda e direita – para quem, antes, essas nomenclaturas não tinham razão de ser porque já não havia esquerda e direita, segundo eles, enfim, entre poderes que se querem mais ou menos progressistas, ainda assim, resta a nós, mulheres e homens não-heroicos, tantas vezes confusos, tantas vezes exaustos, a sensação que deveríamos ter nos colocado mais, deveríamos ter nos precavido mais, deveríamos ter combatido mais. Há, ainda, a culpa de tentar pensar o outro, de figurar o outro, mesmo que a intenção seja a ficção. Muito da autonomia, condição principal da resistência, anda pisando em ovos.

A sensação que tive, ao ver o trailer de Zama* (2017, Argentina/Brasil/Espanha), foi a de reconhecer a semelhança com certa espiral de pessoas que querem estar em qualquer lugar que não este. Assim, isto é, porque tal impressão me persegue nos últimos anos, e querendo me entender com ela, fui à pré-estreia do longa, em São Paulo, que aconteceu no último dia 27 de março. Somado a isso, o fato de estar convencida da qualidade do que assistira, em especial porque acompanho o trabalho da diretora, Lucrecia Martel, permitiu que eu chegasse em tempo de pegar um dos últimos ingressos da bilheteria do Itaú Cultural, espaço que exibiu o filme – que agora está em cartaz em todo o país.

Pouco antes da exibição, a diretora e parte do elenco reservaram para a abertura algumas palavras. Muito acertadamente, mencionaram o assassinato de Marielle Franco. O que foi dito ali e que eu não consigo e nem poderia reproduzir fielmente é que o filme escancara uma impressão amarga bastante sólida: parte enorme da população que para nestes trópicos vem porque precisou sair e até fugir de onde queria estar; outra parte vem forçada, em diversos casos, para ser escravizado. Até hoje.

E no longa, ambientado nos fins do século XVIII, pensado também a partir do romance homônimo de Antonio di Benedetto, fica entendido um círculo vicioso na esfera da violência. Como uma espécie de alegoria da nossa história colonial, um oficial da Coroa Espanhola, Diego de Zama, necessita servir em uma província melancólica. Em inúmeros momentos, entre os diálogos com pouca sequência, ficamos sabendo que Zama quer ser transferido para um lugar em melhores condições, pedido em tudo ignorado no meio de um sem fim de burocracias e desleixos. Entre o que os livros didáticos já nos contaram e o que a cabeça dos criadores da ficção permitem deslumbrar, são apresentadas personagens sofridas, violadas, além de governantes desastrosos, francamente patéticos, grotescos até. Fica a dúvida quanto às possibilidades de algo radicalmente diferente do que temos assistido na história: o ridículo do festival de aparências de quem quer uma estética de neve nos trópicos, de preferência com camadas e camadas de renda, mas que para a infinita tristeza só tem a própria pele. E nua.

No cenário, tudo é exuberante. As paisagens litorâneas, claro que sim. Mas também a trilha sonora que sugere uma queda, uma descida profunda. Ainda, os animais que nos olham, tantas vezes cúmplices, em belíssimos planos. Existe, também, a repetição de decisões políticas sequencialmente impostas que não podem disfarçar o próprio fracasso e caricatura, semelhante aos cabelos que não querem caber nas perucas de corte que cobrem com caracóis grisalhos as testas suadas. A tensão é toda ela uma só, isso porque o diálogo entre as personagens é apresentado de forma mais ou menos desconexa – e quando o olhar procura juntar as peças do jogo da trama, todo o fundo é ocupado daquele espaço de uma beleza excessivamente melancólica. No tempo das cenas, permanece a curiosidade e certa fascinação da órbita do cinema que permite que a gente não desista de um filme que não se entrega, que não é fácil.

O que pode a literatura? O que pode o espaço de um filme? Zama pode muito porque favorece um critério diferente para compreender a forma da nossa geografia política e de uma identidade negativa que nos enfiaram goela a baixo. Mais que tudo, compreender o que continua vivo nesta nossa terra cheia de pedaços que insistem em permanecer como não deveriam ser.

*Direção: Lucrecia Martel    Elenco: Daniel Giménez Cacho, Lola Dueñas, Matheus Nachtergaele

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