O dramaturgo lotou teatros com dois musicais. No primeiro, homenageou Racionais MCs. Depois, enegreceu “Gota D’água”
Ficou assim definido que para Jé Oliveira alcançar a glória no teatro, a jornada será uma ladeira clivosa. Mas, se a subida íngreme pareceu uma penitência aleatória, devemos afastar essa hipótese de imediato. Dramaturgo, ator, músico, produtor e diretor de seus próprios espetáculos, o filho da favela do Zaíra e da Vila Bocaina é negro. Por conta disso, o único clichê que sua trajetória nos permitirá flagrar é a eterna luta do povo preto contra as estruturas racistas do Brasil, que ele afronta antes de estrear cada peça. Nos palcos, o artista se esquiva das previsibilidades, coloca a revolta na primeira pessoa e busca amparo na obra de um dos maiores artistas da história brasileira, Mano Brown. Se tornou, ainda jovem, uma potência.
“Só sou um artista hoje porque em 1995 eu ouvi Racionais MC’s. Só existo como artista porque o Mano Brown existe. O Racionais me despertou para uma sensibilidade artística e me ensinou a fazer o pouco de dramaturgia que eu sei. Eu faço dramaturgia pensando como aquela história seria se fosse uma música do Racionais”, afirma Jé, que pela casa coleciona artigos ou recordações de uma vida seguindo o lendário grupo de rap. Ao lado da vitrola, um disco autografado pelo DJ KL Jay. Na parede, fotos com Mano Brown.
Discreto nas redes sociais, o dramaturgo não esconde o embaraço diante do gravador ligado e agora caminha pisando pesado pela casa. Horas antes, Jé, descontraído, desfilava seu conhecimento sobre o rap nacional enquanto petiscava um caqui partido. “’Exilado sim, Preso não’ é um disco foda, mano”, sentencia o dramaturgo, lembrando o primeiro disco solo de Dexter após dissolver o grupo 509-E. “Quando eu conheci o KL Jay, ele não deu intimidade, mano. Ficou na dele, me estudando, querendo saber quem eu era. Eu faria o mesmo, os caras [integrantes dos Racionais Mcs] são fechados.”
KL Jay foi o DJ em algumas exibições da peça “Farinha com Açúcar ou Sobre Sustança de Meninos Homens”, do Coletivo Negro, que é escrita, dirigida e protagonizada por Jé Oliveira. O espetáculo nasceu após o dramaturgo entrevistar doze homens negros, propondo uma discussão sobre a construção da masculinidade dos sujeitos periféricos. A trilha sonora é composta por músicas dos Racionais Mcs.
Na noite de 31 de agosto de 2016, Mano Brown apareceu para assistir “Farinha com Açúcar ou Sobre Sustância de Meninos Homens”. “Eu sabia que ele estava na plateia. Mano, quantas peças de teatro o Mano Brown viu na vida dele? Vou arriscar que ele viu apenas duas, a minha e a da filha dele [Domenica Dias, que é atriz]. Porra, um dos maiores do mundo estava sentado na plateia, vendo uma peça minha que homenageava ele. Me disseram que algumas pessoas viram ele chorando. Eu não vi nada, nem olhava para ele. Na hora de cantar o ‘Vida Loka II’ eu pedi licença para o cara. A verdade é que eu estava com medo do julgamento dele. Foi um dos dias mais importantes da minha trajetória.”
Nos últimos onze anos de sua vida, Oliveira esteve cercado por Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jefferson Matias e Raphael Garcia. Neste período, os cinco atores produziram seis peças e fundaram, em 2008, o Coletivo Negro, grupo teatral que tem em sua gênese a inspiração no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 e extinto em 1961, que tinha na figura do enorme Abdias Nascimento seu patrono.
Mano Brown foi assistir o espetáculo em que é homenageado (Foto: Sérgio Silva)
Discutir racismo
Acostumado com o trabalho de pesquisa e aprofundamento dos argumentos das peças produzidas pelo Coletivo Negro, Oliveira opõe-se à frivolidade do “nosso tempo”. “Está tudo ficando escasso, o tempo da pesquisa, o tempo de leitura e até mesmo o tempo das músicas. Está tudo muito superficial. A vida está se tornando um storie do Instagram, dura 24 horas.”
O Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, espaço suntuoso, afeito em receber alguns dos principais nomes da cultura nacional já serviu de palco para Bibi Ferreira, a dama do teatro brasileiro. Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil também se apresentaram lá. Entre os dias 10 e 12 de maio, todos os 2,4 mil ingressos disponíveis para as exibições de “Gota D´Água [Preta]” foram vendidos.
A peça dirigida por Oliveira é uma adaptação do Coletivo Negro do musical “Gota D´Água”, escrito por Chico Buarque e Paulo Pontes em 1975. Pensado para afrontar a ditadura militar, o espetáculo ganhou diversas montagens, mas a primeira foi protagonizada justamente por Bibi Ferreira, que interpretava o papel de Joana, mulher de meia idade que sofre após ser abandonada por Jasão, um jovem sambista.
Na montagem do Coletivo Negro, Joana ganha voz e vida no corpo da cantora Juçara Marçal, em uma interpretação arrebatadora, que assusta os que descobrem que essa é sua primeira incursão no teatro. É Jé quem interpreta Jasão. Entrosado, o elenco diverte quando solta “cacos” que fazem alusão à política brasileira em tempos de Jair Bolsonaro. Na produção, o dramaturgo substituiu o samba de Chico Buarque e Paulo Pontes por tambores, funk e rap.
Na sala de sua casa, horas antes de apresentar “Gota D´Água [Preta]”, Jé reflete sobre quando as brincadeiras se tornaram racismo e quando o racismo passou a orientar sua obra. “Em 1995, eu tinha doze anos, nem entendia a vida direito, eu estava apenas vivendo e vivia em um lugar que a maioria dos meninos pareciam comigo. Naquela época, tinha uns mais claros que me chamavam de ‘macaco’, mas você não para pensar, até porque isso já estava naturalizado como uma ‘brincadeira’. Conforme você vai amadurecendo e vai entendendo mais do que aqueles caras estão falando, aí a revolta vem, porque você vai compreendendo por que acontece, como acontece e quando acontece. Isso foi crescendo e tomando conta do meu trabalho de tentar dar conta do que a gente vive na rua.”
Uma vez mais, Jé Oliveira cita os Racionais MCs. “Sem qualquer arrogância, cumpro no teatro o que eles faziam no rap”. O dramaturgo reivindica para a sua obra um espaço entre o revide e o afeto. “Eu queria que minhas obras fossem um abraço em quem sofreu com o racismo, que cresceu na década de 1980 sendo preto e discriminado, não conseguindo ficar com as minas porque eram pretos, não conseguindo tomar Yakult porque era preto, não conseguindo usar um tênis Nike, comer no Mc Donald’s, coisas que parecem pequenas, mas que vão formando nossas frustrações. Agora podemos nos abraçar, eu e tantos outros que sofreram com essa revolta” filosofa.
Para Allan da Rosa, historiador e escritor, que também espalhou seus conhecimentos na dança e teatro, Jé já encontrou, apesar da juventude dos 36 anos, sua identidade criativa. “A gente percebe que ele, como estratégia, lida com ícones e pilares da cultura brasileira. Na primeira, ele lida com um ícone negro, que é o Mano Brown. Na outra, um ícone da branquitude de esquerda, que é a obra do Chico Buarque. Ele tem essa estratégia que esparrama possibilidades para a sua audiência e abre mais círculos. O lugar de pele e CEP são pilares da casa que ele constrói”, analisa.
Juçara Marçal e sua arrebatadora interpretação de Joana, personagem principal de “Gota D’água”, texto de Chico Buarque adaptado pelo Coletivo Negro (Foto: Sérgio Silva)
O teatro brasileiro é branco
Jé padece da angústia de não conseguir escapar dos labirintos do racismo em sua obra. Toda saída, pode ser uma porta de entrada para falar sobre o tema. “Isso é terrível. Se não quiser falar, tudo bem, mas acho que os artistas negros sofrem com isso. É muito difícil se livrar disso porque o preconceito está o tempo todo em qualquer ação do dia a dia, entrar num mercado, o primeiro encontro afetivo com alguém, ir jantar e ficar vendo quantos negros tem, ou se eles estão só servindo. Eu quero falar sobre outros aspectos da vida”.
Reservado às elites, o teatro brasileiro se tornou um espaço de brancos. Patrocinadores, roteiristas, donos das casas de espetáculos, os atores principais e o público. Reverter essa lógica é um processo de obstinação de longo prazo. Em 2019, quase 80 anos do surgimento do Teatro Experimental do Negro, ainda é possível nomear coletivos negros – como As Capulanas, Os Crespos, Caixa Preta, Nóis e o Coletivo Negro – que ganharam visibilidade no cenário nacional.
“O diretor já chegou?”
Jé, que dirige suas próprias peças, se acostumou a ouvir essa pergunta dos funcionários dos teatros que ele aluga. Certa vez, um contratante exigiu que Jair Bolsonaro não fosse criticado no seu espaço. “Tive que ativar minha inteligência cênica e criticamos o presidente sem citar o nome dele”, conta. “É desgastante ser o tempo inteiro o negro pedagógico, porque se você for o negro raivoso, não entra nesses lugares. Eu tento ser estratégico e não vejo isso como falsidade, tem hora que tem fazer o discurso que eles querem ouvir, mas sem ser falso. Esse é o desafio, como ser palatável para a branquitude sem ser mentiroso, sem deixar de falar o que eu acredito.”
Para Jé, o negro brasileiro precisa dar o passo seguinte em diversos setores. “Estamos sempre na posição da legítima defesa e isso é foda, precisamos avançar, estamos o tempo todo no básico. A nossa arte também está presa no básico, a gente não consegue avançar”. Para tanto, o dramaturgo considera fundamental que se “consolide uma classe média negra. Avançamos um pouco com o Lula, mas ainda há muito o que fazer. A esquerda não ajuda muito também, nossas bandeiras estão sempre esquecidas pela esquerda, mesmo no teatro. O ‘Teatro do Oprimido’ do [Augusto] Boal é branco. O Teatro de Arena era, o “Arena Canta Zumbi” era a esquerda branca copiando a metáfora de Palmares para falar da ditadura militar.”
O historiador e multiartista Salloma Salomão, que divide o palco com Jé em “Gota D’Água [Preta]”, entrega ao jovem dramaturgo um assento na posteridade. “Ele transformou a obra de Paulo Pontes e Chico Buarque, vertida para uma perspectiva cultural negra, em um marco do teatro brasileiro. O que se está assistindo é uma inovação daquilo que foi proposto em 1920 por Lima Barreto, uma dramaturgia, no caso Gota D´água é reescrita pelas mãos de Jé Oliveira, e um teatro com assinatura étnica.”