Por Marsílea Gombata.
Manifestações raivosas, manobras no Legislativo e no Judiciário questionando o mandato da presidenta Dilma Rousseff reacendem no Brasil e na América Latina a controvérsia sobre a deposição de governos eleitos pelas urnas. O enredo não é novidade na região.
Exemplos recentes também fazem reviver o mal-estar da época da Guerra Fria, quando a América Latina foi palco de golpes militares com o objetivo de destituir presidentes não alinhados com o projeto dos Estados Unidos e das elites regionais.
É o caso de Honduras, em 2009, quando o então presidente hondurenho Manuel Zelaya foi tirado à força de sua casa e colocado em um avião que o levou para a Costa Rica. Ou do Paraguai, em 2012, quando em menos de 48 horas o Congresso Nacional votou peloimpeachment relâmpago de Fernando Lugo.
Em ambos os casos, semelhanças que remetem ao atual momento do Brasil: a movimentação pela deposição de um mandatário escolhido pelo voto popular, através de dispositivos legais instrumentalizados por parlamentares e juízes, quando não empresários do setor industrial ou do agronegócio.
Apesar de constituições estabelecerem que o poder emana do povo e, no caso brasileiro, que ele pode ser exercido indiretamente por representantes eleitos como deputados e senadores, é sabido o distanciamento entre o interesse popular e representantes legislativos. Uma relação débil e evidenciada nos processos hondurenho e paraguaio, quando veio à tona a ambição de grupos afastados da política por trás dos golpes em ambos os países.
Ainda de pijamas, Manuel Zelaya foi detido em sua residência em 28 de junho de 2009 por militares que o obrigaram a deixar o país.
Empresário e proprietário de terras, Zelaya comandou desde 2006 um governo marcado por tímidos avanços sociais com leve aumento do salário mínimo, a oposição ao escalonamento da “guerra às drogas” de Washington e, de modo geral, a continuidade de políticas neoliberais na economia.
A oposição a ele ficou evidente, no entanto, quando Honduras, duramente afetada pela crise de 2008, se alinhou à Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e à Venezuela que acenava com crédito, petróleo e insumos agrícolas a preços favoráveis.
Foi quando setores oligárquicos encabeçados pelos liberais passaram a articular com militares a destituição do presidente. O protesto, respaldado pela Suprema Corte, foi a intenção de Zelaya de realizar um referendo para decidir se dali a cinco meses, juntamente com as eleições gerais, caberia convocar uma Assembleia Constituinte.
Opositores viram na intenção uma manobra para ele se perpetuar no poder, e a acusação de inconstitucionalidade sobre a consulta popular foi elevada a crime de lesa-pátria. Zelaya foi prontamente substituído no poder por Roberto Micheletti, presidente do Congresso, que logo teve o apoio de setores conservadores, abrindo um racha no Partido Liberal, legenda de ambos.
Ramón Barrios, professor de Direito Constitucional em San Pedro Sula, em Honduras, lembra que, apesar de a Constituição hondurenha não permitir consultas populares, havia sido aprovada meses antes a Lei de Participação Cidadã, que possibilitaria a realização de um referendo.
“Só que existia uma clara ingerência do governo norte-americano no país, por meio de empresas privadas e suporte financeiro para manifestantes opositores”, lembra também o magistrado, cassado à época por se posicionar contra o golpe.
“O processo pelo qual passa o Brasil hoje tem semelhanças com os que viveram Honduras e Paraguai e com os que vivem Venezuela e Equador: governos que se mostram independentes dos EUA levam Washington a intervir.”
Assim, apesar de Zelaya ser oriundo de grupos oligárquicos, a atmosfera mudou quando ele passou a se voltar para interesses populares. “Em Honduras os setores mais poderosos são alérgicos a mudanças sociais”, observa Eugenio Sosa, sociólogo pesquisador da Universidade Nacional Autônoma de Honduras, para quem o golpe em 2009 foi diretamente articulado pelos EUA.
“Tanto que depois foram aprovadas diversas leis que favorecem ainda mais a intervenção do capital estrangeiro no país, ao beneficiar, por exemplo, o setor minerador.”
Três anos depois da queda de Zelaya, deu-se no Paraguai um golpe que lembra ainda mais o clima do Brasil de hoje. Por 39 votos a favor e 6 contrários, o Senado aprovou em 22 de junho de 2012 a remoção de Fernando Lugo do poder, abrindo espaço para o vice-presidente Frederico Franco, do Partido Liberal Radical Autêntico, um ano após romper a coligação com Lugo. A decisão coroava a aprovação na Câmara dos Deputados, com 73 votos a favor e 1 contrário, ao processo deimpeachment.
Segundo o argumento oficial, Lugo era retirado do poder pelo “fraco desempenho de suas funções”.
Ex-bispo católico ligado a movimentos sociais de esquerda, Lugo mantinha um histórico de atuação com os sem-terra paraguaios. Ele fora eleito com a promessa frustrada de reforma agrária em uma aliança de conveniência com o Partido Liberal, responsável pelo fim ao reinado de mais de 60 anos do Partido Colorado, legenda no poder desde a ditadura de Alfredo Stroessner, entre 1954 e 1989. após um confronto violento com trabalhadores sem-terra na região de Curuguaty, leste do país, onde 11 sem-terra e 6 policiais haviam morrido uma semana antes. Lugo, em um primeiro momento apático, logo acusou o empresário Horácio Cartes (atual presidente do Paraguai) de estar por trás da tentativa de golpe.
Sem aliados no Congresso e com a proximidade das eleições presidenciais em abril de 2013, Lugo era cada vez mais pressionado (ele enfrentou mais de 20 ameaças deimpeachment ao longo do mandato) e não via alternativa senão ceder à chantagem permanente. Os liberais ganharam, então, uma fugaz Presidência com Franco. Os colorados, por sua vez, conquistaram de volta o poder, com Cartes eleito meses depois.
“Lugo nada teve a ver com as mortes no campo. Essa foi uma manobra com objetivo claríssimo: criar uma crise política, na qual a disputa de força ficou evidente”, observa José Carlos Rodríguez, pesquisador do Instituto Desarrollo, em Assunção, e membro consultivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. “O que aconteceu nem pode ser considerado um processo jurídico de fato, pois não houve tempo hábil para Lugo se defender nem provas. Creio que o Brasil vive algo parecido nesse sentido.”
Para Fabio Luis Barbosa dos Santos, professor de Relações Internacionais da Unifesp, deu-se tanto em Honduras quanto no Paraguai que o Congresso forjasse acusações sem respaldo jurídico, apenas como pretexto político para depor os presidentes.
“Nesses países, o Legislativo não tem prerrogativa de abreviar um mandato por divergência política, apenas se for comprovada a atuação ilegal do mandatário. Não é como na Venezuela e na Bolívia, por exemplo, que o Congresso tem poder de convocar um referendo revogatório e pedir uma espécie de recall do presidente”, observa o especialista que realizou estudos no Paraguai para o Ipea à época.
Em 2009, a OEA logo tratou de expulsar Honduras da organização, enquanto o Brasil concedeu asilo a Zelaya em sua embaixada em Tegucigalpa por quatro meses. Em 2012, tanto o Mercosul quanto a Unasul suspenderam o Paraguai do bloco. Recentemente, Ernesto Samper, secretário-geral da Unasul, deixou claro que o órgão pode acionar a cláusula democrática caso a presidenta Dilma seja cassada pelo Congresso sem estar diretamente envolvida em um crime.
As manobras em Honduras e no Paraguai, lembra Santos, não foram apenas ilegais, como também ilegítimas, pois não contaram com apoio da maioria da população. “Em ambos os países, a destituição foi arbitrária e impopular. Os desdobramentos mostraram que, por trás de um discurso de defesa do interesse nacional, a motivação dos que lideraram os processos foi a retomada do poder político. Em Honduras retornaram os liberais, e no Paraguai, os colorados.”
Ao analisar os casos de Honduras e Paraguai e traçar um paralelo com o momento político atual do Brasil, Sosa observa que os golpes hoje são executados no marco das instituições tidas como democráticas. “São golpes do século XXI, com uma roupagem constitucional, mais midiáticos e sem ter os militares como protagonistas.”
Mais do que heranças do passado ditatorial que amargou a América Latina nas décadas passadas, os golpes em Honduras e no Paraguai, e a tentativa em curso no Brasil hoje, representam uma ameaça não apenas às conquistas feitas, mas também ao futuro da região.
“São movimentos contrários também à consolidação de uma América Latina mais autônoma”, afirma Rodríguez, ao ressaltar que não se trata apenas de analisar o passado, mas também pensar o futuro. “E o Brasil, por sua importância regional, simboliza essa maior autonomia do nosso continente. Portanto, tudo o que acontecer com ele será um problema para todos nós.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 895 de CartaCapital, com o título “Motivos de inspiração”
Fonte: Carta Capital