Por Suyane Ynaya.
Estou sentindo uma dor imensa. É uma dor que eu já conheço, todo negro conhece, mas desta vez ela está doendo muito mais.
Acho que carrego essa dor desde o momento em que minha mãe se encontrava me parindo dentro de um hospital nas redondezas da Zona Sul de São Paulo. Era dia 02/12/1989 quando vim ao mundo. Preta, pobre e com aquele futuro de semi-alfabetizada e marginalizada já se desenhando pra mim.
Fui crescendo sem saber o que queria de verdade pois a rua me oferecia somente o que eu queria viver: drogas, bebidas, “amigos”, rolês. O de sempre.
Mas teve um instante, entre me perder nos becos da periferia e cavar uma outra história pra mim, que lembrei das palavras da dona Sandra Goretti, minha mãe: “Se um filho meu virar bandido(a), eu mato mas não deixo.”
Sei que essa frase pode parecer forte, mas as mães periféricas pretas precisam ser fortes. De outra forma, seus filhos viram estatística. Mas naquela bifurcação a frase veio como uma proteção. Decepcionar minha mãe nunca foi uma opção.
E com muito grito, conversa, tapa e abraço consegui mudar o rumo da tão conhecida história das meninas de comunidade. Aos 29 já sou mãe de dois, verdade, mas sou também diretora de arte. Sou pobre (ainda), mas sustento minha família com o trabalho como stylist para marcas bacanas. Sou semialfabetizada (escola na periferia é castigo), mas textos como esse a gente escreve é com a alma.
Mesmo tendo desviado do rumo historicamente traçado pra mim, é doido ver como o mundo insiste em me colocar de volta naquele contexto do qual eu fugi. E eu não to falando da periferia, porque essa levo comigo com orgulho. Saibam: ali não é tudo sofrimento e tristeza. Eu tô falando é da dor de ver no outro o desprezo, o racismo, o preconceito.
E hoje doeu como naquela 2 de dezembro de 1989. Eu errei, eu sei. Não me orgulho disso. Me desentendi com uma mulher na rua e nós brigamos. Até aí, o.k.: estresse, cabeça quente, indignação. Eu não aguento ver gente batendo em criança.
Mas a moça violenta é loira. E depois de vir pra cima de mim e do quiproquó formado vieram os berros que me cortaram ao meio. Ela me acusou de roubo. Roubo? Imagina se a minha mãe ouve isso, ela me mata! Imagina se a polícia ouve isso? Na melhor das hipóteses, ela me prende. Acha exagero? Então se lembre dos cinco jovens negros que foram mortos pela polícia com 111 tiros quando iam comprar um lanche para comemorar o primeiro salário de um deles no Rio de Janeiro.
Preto não pode brigar. Preto não pode correr. Preto não pode sair de casa mal vestido. Porque no Brasil, preto é sempre bandido. E se não é, vira rapidinho.
Exemplos não faltam. A dançarina Bárbara Querino foi acusada de um crime que não cometeu, até porque na data, nem estava na cidade do crime. Está presa mesmo assim. Mesmo depois de pedir ajuda aos seguranças do terminal, ator Diogo Cintra foi colocado pra fora e entregue ao espancamento dos verdadeiros bandidos. Negro é bandido até quando pede ajuda.
Hoje estou sofrendo todas essas dores. Hoje eu sou a ladra. Isso se chama racismo e é duro ver que ele me acompanha onde quer que eu vá.
A guerra é diária e sempre tem um vencedor não é? Mas eu não vou baixar a cabeça. Eu tô nessa vida para ganhar. Hoje levantei com uma cicatriz a mais, mas também mais forte pra seguir firme levando os meus junto comigo. Porque como diz Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” Sigamos!