Por José Álvaro de Lima Cardoso.
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
(verso da música Deus lhe Pague, de Chico Buarque)
A PEC 6/2019, aprovada em primeiro turno no Senado na terça-feira 1 de outubro, na prática uma ação para desmontar a previdência social, significa antes de tudo, “negócios”. A Seguridade Social no Brasil movimenta R$ 740 bilhões todo ano. Os bancos não apoiaram o golpe por acaso, estão de olho nesse filão de oportunidades. O desmonte das estruturas públicas de atendimento a população (no caso da seguridade, uma espécie de espinha dorsal da estrutura social brasileira) está sendo realizado num momento em que o país constata uma explosão da desigualdade de renda, jamais vista.
Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado uma deterioração dos indicadores tão rápida. Sobre o assunto, vale a leitura do artigo do economista Márcio Pochmann (Brasil tem maior explosão da desigualdade desde 1960) que revela que a combinação, depois do golpe de 2016, de decréscimo econômico, com a desestruturação do mundo do trabalho, tem levado a uma piora inédita de todos os indicadores. O índice de Gini saltou de 0,49, em 2014, para 0,63, em 2019 e nesse período a economia decresceu 0,8% anualmente e o PIB per capita caiu em média de 1,5% ao ano. No mesmo período a taxa de pobreza cresceu ao ritmo de 10,4% ao ano, enquanto a taxa de desemprego aumentou 20,1% ao ano, na média dos anos de 2015 a 2019. A evolução dos dados, fato impressionante, nos dá uma pista (mas apenas uma pista) do sofrimento que os trabalhadores mais pobres têm passado nos últimos anos.
Uma proposta de política para a Previdência Social define que tipo de sociedade queremos edificar. Não se trata só da concessão de um benefício, mas de um “projeto de sociedade”. Sistemas de seguridade social são completamente incompatíveis com a hiper exploração dos trabalhadores. O sistema de Seguridade Social brasileiro foi obtido numa outra correlação de forças, no interior da qual os trabalhadores conseguiram impor essa conquista, indiscutivelmente importante. Tal correlação já não existe mais, a partir principalmente do golpe e da crise econômica atual. Os trabalhadores se encontram numa conjuntura de enorme resistência. Por isso o inimigo trabalha para desmontar o sistema, e demais direitos, com muito apetite.
A PEC da previdência não é algo isolado, vem na esteira de processo de destruição das estruturas públicas desde o golpe de Estado. A seguridade social tem valor estratégico no Brasil. É o principal instrumento que os brasileiros dispõem para enfrentar as situações de velhice, doença, desemprego, invalidez, etc. Os princípios definidos na Constituição permitiram construir nos últimos 30 anos políticas públicas que, pelo menos, foram capazes de promover alguns níveis de inclusão, permitindo que setores significativos da população escapassem da miséria e da fome.
Quando não há justiça e boas intenções nas ações públicas, o que pode prevalecer é a mentira. Um grupo de pesquisadores da Unicamp publicou um estudo inédito sobre os dados apresentados pelo governo para justificar a a contrarreforma intitulado: “A falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência Social”. O estudo aponta que os cálculos inflam o custo fiscal das aposentadorias atuais para justificar a reforma e exageram a economia fiscal e o impacto positivo da Nova Previdência sobre a desigualdade. O estudo mostra cinco principais mentiras, sempre sobre aspectos centrais da argumentação governista para desmontar o sistema atual de previdência. Não se trata de visões diferentes sobre temas cruciais relacionados com a previdência. São manipulações, dados falsos, informações propositalmente erradas. Dado o processo atual que vivemos, alguém poderia se surpreender com a constatação do estudo?
Desenhando o cenário de uma “tempestade perfeita” a aprovação da PEC coincide com o risco de grave crise financeira internacional, inclusive com risco de choques de oferta, como tem sido apontado por alguns economistas. Choques ligados principalmente às disputas comerciais, monetária, cambiais e militares entre Estados Unidos e China. Diferentemente da crise de 2009, desta vez o Brasil será pego totalmente no contrapé, com o pior governo da história.
Apesar da crise do golpe e da Lava Jato, ser a outra face da moeda do programa do Paulo Guedes, os golpistas vêm tentando separar essas duas questões. Em face das denúncias permanentes da Vaza Jato (e de outras fontes), ninguém dá mais um tostão furado por Sérgio Moro e pela Lava Jato. Mas o governo conseguiu passar a destruição da previdência na semana passada, em primeiro turno, no Senado Federal e tem encaminhado um conjunto de ataques contra direitos, conquistas sociais e soberania nacional. Mas a segregação entre o governo e a Lava Jato é uma manobra difícil de fazer porque a crise da Lava Jato significa a crise do governo Bolsonaro, na medida em que este é fruto da primeira.
O golpe e a operação Lava Jato tiveram como resultado o governo Bolsonaro, concretamente. Esse fato, em meio a uma brutal crise econômica e social, imprime ao cenário um enorme potencial de explosão. É importante considerar que a PEC que foi aprovada, assim como o conjunto dos ataques à civilização tem como objetivo jogar o ônus da crise nas costas dos trabalhadores. Desde que as crises se tornaram cíclicas, e inevitáveis, no sistema capitalista, sabe-se que elas têm a funcionalidade de destruir direitos e fazer a classe trabalhadora baixar a cabeça.
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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