Há mais de uma década, indústria em Sumaré (SP) é controlada por trabalhadores, que precisam pagar a dívida deixada por patrões e querem estatizar a fábrica
Por Paloma Rodrigues.
Em Sumaré (SP), região metropolitana de Campinas, funciona a única fábrica administrada por trabalhadores do Brasil. Ameaçada de ser fechada em 2003 devido à falência do grupo que a administrava, a Flaskô, que produz tambores plásticos, seguiu sendo tocada por seus antigos funcionários e hoje tenta se manter ativa mesmo com as dívidas herdadas da antiga gestão. A nova batalha é pela estatização da empresa, que tramita no Senado há mais de dois anos.
Até 2003, o controle da fábrica era da Holding Brasil (ou apenas HB), um braço da gigante Tigre. O grupo entrou em uma forte derrocada nos anos 1990, acumulando dívidas e aumentando demissões. “Foram cerca de 40 empresas que quebraram, graças à abertura econômica e também à má gestão”, explica o advogado da Flaskô, Alexandre Mandl. “A Cipla e a Interfribra, em Joinville, e a Flaskô, aqui em Sumaré, retomam a produção e elas vão ser o tripé do movimento das fábricas ocupadas”, explica ele. Nas duas fábricas de Santa Catarina, entretanto, um interventor judicial, Rainoldo Uessler, foi nomeado para assumir o comando das empresas em 2007. A Flaskô também sofreu intervenção, que cortou a energia da fábrica por 42 dias e fez boa parte do seu quadro de funcionários buscar outros empregos, mas retomou as atividades depois do período.
Adélia, de 23 anos, acompanhou todo esse processo de perto. Filha de funcionários da Flaskô, ela viveu a mudança da gestão dos patrões para a gestão também comandada por seus pais. “Meu pai e minha mãe trabalharam aqui, ainda na época patronal. Com o início dos problemas, minha mãe também foi levada embora na leva de demissões, mas meu pai ficou e já deve fazer 20 anos que ele trabalha aqui.” Hoje, Adélia é uma das mulheres que compõe o quadro de funcionários da fabricante de tambores plásticos no setor de compras e financeiro.
Nos últimos 11 anos, Adélia acompanhou o pai em todos os atos e passeatas pela estatização da Flaskô. “Eu sempre fui junto às passeatas em Brasília, que aconteciam todos os anos”, afirma. Há três anos trabalhando na fábrica, Adélia diz que o trabalho em uma fábrica ocupada é “totalmente diferente”. “Aqui você não está sob pressão, você faz com tranquilidade e consegue resolver seus problemas”, diz ela. Mas o preconceito ainda é grande: “Quando você fala “trabalho em uma fábrica ocupada, sob o controle dos trabalhadores, as pessoas já falam ‘Nossa, mas essa empresa ainda funciona’, ‘Ai é falida’. Quando você explica a situação, elas ficam curiosas e veem que não é bem assim”, conta. “Aqui é como uma empresa normal, só não tem o patrão, o que é a vantagem”, diz a jovem.
Adélia é uma dos 70 trabalhadores da Flaskô. São 60 homens e 10 mulheres, sem que nenhum tenha o cargo ou se reconheça como chefia ou “patrão”. O ritmo de trabalho é definido por assembleias, gerais e de turnos. A jornada de trabalho foi reduzida de 44 para 30 horas semanais, sem redução de salários; também foi realizado um achatamento da diferença salarial – as funções mais bem remuneradas passaram a ganhar menos e as pior remuneradas passaram a ser maiores.
Além dos avanços em relação às leis trabalhistas, os funcionários também acreditavam que a Flaskô deveria se envolver com a comunidade em que está inserida. Isso levou à criação da Fábrica de Cultura e Esportes, que desenvolve diversos eventos e ações culturais: sessões de cinema semanais, aulas de balé, capoeira, oficina de quadrinhos e uma pista de skate (e campeonatos regulares que agitam completamente o dia-a-dia da fábrica). Alunos da Unicamp tocam ainda o Educação para Jovens e Adultos, projeto de extensão para a comunidade.
No espaço da Fábrica de Cultura e Esportes, companhias de teatro também realizam ensaios e apresentações. A iniciativa é importante para manter grupos da região, como pode ser visto no depoimento do vídeo, produzido pela própria Flaskô, do ator da Honesta Companhia de Teatro. “Na região de Campinas e Sumaré, nenhum grupo de teatro, cultura e música tem espaço para sediar suas atividades. E a Flaskô é um dos poucos espaços nessa região toda que se coloca abrindo as portas oferecendo lugar não só para ensaio, mas apoios para apresentação de qualquer tipo”, declara o ator.
Mandl, o advogado da fábrica ocupada, explica que os trabalhos realizados evidenciam o caráter social da Flaskô. “A gente usa dois galpões da fábrica para projetos culturais, em vez de especular esse espaço. E, além disso, três quartos da propriedade da fábrica, que poderia ser utilizada para a geração de lucro, é destinada para uma ocupação de moradia chamada Vila Operária”, afirma ele.
O terreno foi ocupado em 2005, inicialmente por cerca de 300 famílias. No momento, Mandl afirma que a ocupação já atingiu o número de 564 famílias. “Nossa reivindicação parte desse tripé: trabalho, pela Fábrica de Cultura e Esporte e pelo direito à moradia”.
Dívidas
Apesar das vitórias trabalhistas, a vida dos funcionários da não é de todo tranquila: a Flaskô sofre a ameaça de fechar a qualquer momento. Nos últimos 11 anos de ocupação (em 12 de junho a fábrica completa mais um ano sob gestão operária) foram diversos pedidos de leilões de máquinas e penhora de bens. A dívida já ultrapassa os 120 milhões de reais.
O imbróglio é grande: os dirigentes da Flaskô acreditam que a dívida deveria ser cobrada de quem a gerou, ou seja, a antiga gestão da HB. “Nosso entendimento é que quem criou a dívida que pague”, afirma Mandl. “Mas o CNPJ da Flaskô é o mesmo, então seguimos responsáveis pelas dívidas geradas por este CNPJ”, diz. Apesar da gestão operária ser cobrada pelas dívidas, a propriedade da fábrica não está sob poder dos funcionários. “Hoje, temos a gestão operária, mas não temos a propriedade, que continua dos antigos patrões”, afirma.
A situação provoca indignação dos novos administradores da Flaskô. Eles alegam que a gestão patronal ficou 20 anos sem pagar esses tributos e o sistema tributário não conseguiu cumprir a função de reaver o dinheiro. “Agora nós temos oficial de justiça na casa de trabalhadores, querendo penhorar seus bens”, diz. Mandl acredita, entretanto, que a melhor maneira de resolver a questão seria comprometer uma porcentagem dos rendimentos da fábrica para pagar as dívidas. “Seria semelhante ao acordo que temos com o Ministério do Trabalho. Hoje, 1% do nosso faturamento vai pra pagar dívidas dos antigos patrões com os trabalhadores.” O rendimento mensal da Flaskô fica entre 500 e 600 mil reais.
O que os trabalhadores esperam conseguir com a estatização é o abatimento dos valores dos bens da Flaskô da dívida da fábrica. Com isso, esperam acabar com o drama representado pelas ameaças de leilões judiciais. De 2003 para cá, afirma Mandl, foram mais de 200. “Em todos os leilões levamos uma faixa ‘se arrematar, não vai levar’, porque existem outras formas de se resolver isso. E, hoje, a Flaskô não tem condições de perder nenhuma de suas máquinas, porque se isso acontecer ela vai a falência.”
No pátio da fábrica, são seis máquinas que realizam a confecção dos tambores plásticos. Na gestão da HB eram mais de 40, que foram sendo retiradas conforme a falência do grupo. No próximo dia 9 de junho, mais uma série de leilões está marcada e os funcionários prometem realizar um ato de protesto a ação.
Campanha
Para pressionar os senadores a discutirem a questão da empresa, a Flaskô busca 10 mil assinaturas, para que uma audiência pública seja convocada para discutir o Projeto de Lei 257/2012. A coleta de assinaturas é feita online. O pedido do PL é para a Declaração de Interesse Social da empresa, um primeiro passo para a estatização, ou seja, torná-la uma propriedade do Estado.
O pedido se baseia em uma lei de 1962, que define os casos de desapropriação por interesse social. O artigo 1º da lei dispõe que “A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social”.
O projeto já foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH), em uma audiência pública realizada em 5 de julho de 2011. De lá, seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça, onde segue parada. A Flaskô espera que, com a desapropriação, a indenização dos bens móveis e imóveis seja abatida dos impostos devedores, e os trabalhadores administrando a fábrica por uma forma de concessão.
Fotos: Yghor Boy
Fonte: Carta Capital