Por Mariana Tessitore.
Brasília, 31 de agosto de 2016. Em votação no Senado, a presidenta Dilma Rousseff é deposta de seu segundo mandato em um processo de impeachment que polariza a nação. Em meio às comemorações, gritos de “não vai ter golpe” e deputados louvando a Deus, um grupo de cineastas ocupa as ruas, o Congresso e o Palácio da Alvorada. Com suas câmeras, testemunham um dos momentos mais críticos da história do País. Diretoras consagradas, Anna Muylaert e Petra Costa fazem parte de um time de realizadores que se tornou presença frequente nas ruas de Brasília. Além delas, os diretores Maria Augusta Ramos, Douglas Duarte e Adirley Queiroz produzem filmes sobre o processo que culminou na derrocada de Dilma.
Mesmo com enfoques bastante distintos – a seis mãos, com o diretor uruguaio Cesar Charlone e Lô Politi, Anna realiza um documentário centrado na figura da ex-presidenta, enquanto Petra se concentra nas disputas políticas –, as cineastas desenvolvem obras que abordam os recentes acontecimentos a partir de perspectivas diferentes da narrativa da grande imprensa. “Quero fazer um filme distinto do jornalismo. A mídia está atrás da notícia, mas quero mostrar os personagens e os ambientes que eles frequentam”, diz Petra.
Coautor do filme de Anna, Charlone defende que eles não têm pressa de lançar o documentário. “Deixar o tempo passar ajuda a ter uma visão mais artística, diferente do noticiário”, afirma. Ainda sem título – como o filme de Petra –, o documentário foi idealizado por Lô Politi, cineasta que trabalhou na campanha de Dilma em 2014. Quando vier à tona, o filme promete uma imersão na rotina da ex-presidenta durante os 180 dias que antecederam seu afastamento definitivo do Palácio da Alvorada. “Ela foi muito corajosa em concordar que estivéssemos ali. Afinal, era uma exposição muito grande, em um momento tão tenso. Não foi um processo fácil para ela. Ninguém fica tranquilo com uma câmera apontada para si o tempo todo”, conta Lô.
A produção reúne cerca de 200 horas de gravação com esse mesmo caráter íntimo. “Não filmamos a história política do impeachment, mas a tensão crescente que se manifestava tanto na própria Dilma quanto nas pessoas do seu entorno, desde os políticos até os garçons e o motorista”, explica Lô.
Charlone destaca momentos especialmente marcantes para ele, como o dia em que Dilma ficou sabendo da renúncia de Eduardo Cunha da presidência da Câmara, ou a convivência da ex-presidenta com a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO). Para Anna, o filme será uma forma de as pessoas conhecerem Dilma de um ponto de vista diferente daquele divulgado pela imprensa. A cineasta descreve a petista como “uma mulher muito séria, que não é de fazer conchavo” e que essa característica “provavelmente foi uma das causas do seu impeachment, mas é também sua força”.
Conhecida pelos filmes Elena e Olmo e a Gaivota, a mineira Petra Costa fala sobre a gênese de seu documentário. “A ideia veio quando comecei a ver as manifestações contra e pró-impeachment, e percebi que a sociedade brasileira estava mais dividida do que eu jamais havia visto. Tive o desejo de entender de onde veio essa polarização, de mergulhar nessa história. Comecei filmando as manifestações e depois acompanhei todo o processo na Câmara dos Deputados, onde a mesma polarização se refletia, para depois filmar no Senado.”
Petra realizou mais de 50 entrevistas com parlamentares de diferentes tendências. A experiência de filmar o longa-metragem, com estreia prevista para 2017, a fez refletir sobre os significados do fazer político: “Eu tinha uma visão muito superficial de como o Congresso funcionava. Não fazia ideia de como as coisas se davam naquele terreno. Percebi como a política é humana e o quanto as pessoas decidem votos por se sentirem amadas ou desamadas, ou por serem filiadas a um grupo. As coisas me pareceram bem menos ideológicas do que eu imaginava que fossem”.
Durante as filmagens, muitos políticos, especialmente os do Senado, diz Petra, estranhavam sua presença por não estarem acostumados a conviver com documentaristas naquele espaço. A cineasta diz ter enfrentado também problemas gerados por factoides. “Algumas notícias nos associavam a partidos. Essa mentira foi se disseminando até se transformar em algo muito surreal. Chegou a ponto de um colunista falar que a presidenta e o ex-presidente Lula só iam ao Senado por causa do nosso filme. Até o Cunha citou o documentário, afirmando que era o único recurso que tinha sobrado para a Dilma”, fala rindo.
Consciência histórica
Presenciar o que considera um momento de ruptura foi uma experiência vertiginosa, diz Anna Muylaert. “Foi muito tenso ver tudo aquilo acontecer. Teve um dia que cheguei a passar mal. O futuro de um País inteiro estava sendo decidido ali. Eu nem sabia direito o que estava sentindo, mas minha angústia era tamanha que de repente pensei: acho que tem urubus aqui dentro.”
Para Charlone, o impeachment de Dilma tem o simbolismo de fechamento de um ciclo de progressismo na América Latina. “Teve o golpe que tirou o Fernando Lugo do Paraguai, a eleição do Mauricio Macri na Argentina, a morte do Fidel, o plebiscito na Colômbia e o avanço da direita no mundo todo. ‘A cereja do bolo’ é a eleição do Trump. Por isso foi tão importante estarmos lá, porque sabíamos que era um momento de queda de um projeto de milhares de pessoas que, na década de 1960, lutaram por um mundo melhor”, diz.
Petra reitera a impressão de Charlone. “Tive a sensação de ver a história não só passando pela minha frente, mas me atropelando diariamente. Um tsunami de eventos históricos”. Para ela, o impacto foi ainda mais forte no dia da votação final no Senado, uma “mistura de Carnaval e guerra”. Petra brinca que as negociações no Congresso renderiam um bom roteiro de ficção: “A riqueza dramatúrgica do que estava acontecendo ali tem muitos níveis. São camadas narrativas ocorrendo ao mesmo tempo: a população, o Judiciário, o Congresso, a Presidência. É uma série escrita que levaria anos para roteiristas chegarem ao mesmo nível de envolvimento dramatúrgico. O fato de vários cineastas abordarem o tema é muito bom, porque não há muitos documentários históricos no Brasil. Por exemplo, não há filmes sobre o impeachment do Collor. É ótimo que as próximas gerações possam contar com essa pluralidade de vozes”.
Lô Politi também ressalta a importância dessa diversidade: “Esses filmes são testemunhos de seu tempo. Tenho certeza de que serão olhares totalmente diferentes e muito benéficos para o País. É raro que o Brasil seja retratado politicamente pelo cinema. E de repente há vários filmes sendo feitos sobre esse mesmo assunto. O cinema pode ajudar o País a digerir esse momento tão específico e difícil que estamos vivendo”, conclui.
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Fonte: Brasileiros.