Feita por estudantes do RS, 1ª calcinha absorvente do Brasil desafia tabus sobre menstruação

“Feito à mão, com amor”, avisa o pacote onde as calcinhas são embaladas e enviadas. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Por Giovana Fleck.

Você, mulher, gosta de menstruar? Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) em parceria com a indústria farmacêutica Bayer, mostrou que 55% das mais de 2.000 entrevistadas em oito capitais brasileiras não se sentem bem durante do período menstrual. O levantamento mostra que um terço das mulheres afirmou que gostaria de nunca menstruar. Irritabilidade, sangramento em excesso e impactos importantes na rotina foram citados como as principais causas de desconforto.

“A menstruação carrega, em si, um tabu que foi acatado pelo mercado”, afirma a estudante de engenharia química Raíssa Kist. “Eu não me sentia representada pela indústria de absorventes”. Em busca de um projeto inovador, Raíssa decidiu agir na indústria de absorventes menstruais defendendo uma forma sustentável e agradável de menstruar. “Dá, sim, pra ficar ansiosa pra menstruar”, afirma.

Do final do século XVIII até a metade do século XX, pequenos pedaços de tecido dobrados eram utilizados pelas mulheres para absorver o fluxo menstrual. As chamadas “toalhas higiênicas” eram costuradas pelas próprias usuárias e, após o uso, lavadas e reutilizadas. O primeiro absorvente íntimo descartável chegou ao Brasil em 1930, mas foi na década de 50 que começou a se popularizar. Representando maior conforto e praticidade, a novidade foi estampada em várias propagandas relacionando as mulheres que usavam os absorventes à ideia de modernidade.

Hoje, as mulheres contam com uma grande variedade de absorventes descartáveis industrializados, adaptados a diferentes necessidades e preferências. Estima-se que a mulher faz uso de cerca de dez absorventes descartáveis em cada ciclo menstrual, e de dez mil a 15 mil da puberdade até a menopausa. Como no Brasil não existe reciclagem para esse tipo de resíduo, esses absorventes acabam indo parar em lixões e aterros sanitários, causando um problema ambiental.

Além disso, são caros. O imposto sobre absorventes é uma taxa que será cobrada de mulheres, em média, dos 12 aos 51 anos de vida. Segundo dados do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), supondo valores médios de um ciclo menstrual de 28 dias, com a menstruação durando 5 dias e com o uso de 4 absorventes por dia, o total de imposto que cada cidadã paga ao governo durante a vida irá variar de R$ 852 a R$ 4.849, dependendo do preço e modelo do produto.

“Dela para ela mesma”

Em pouco menos de um ano de formação, uma empresa composta por três mulheres decidiu introduzir uma nova alternativa para quem busca conforto na menstruação. Chamada “calcinha menstrual”, o modelo é composto por três camadas absorventes que garantem conforto e segurança para mulheres com fluxos leves ou intensos.

As criadoras da marca: Raíssa Kist (esq.), Nicole Zagonel (centro) e Francieli Bittencourt (dir.). Foto: Arquivo/Herself

“Todo mundo merece acesso a uma menstruação mais natural e confortável”, afirma a co-fundadora do projeto, Nicole Zagonel. Ela e Raíssa participavam de um curso de capacitação em negócios socioambientais quando optaram por um produto que impactasse tanto na forma de consumir quanto em um problema social. Assim, a estudante de história – com foco em gênero – Francieli Bittencourt passou a compor o time.

O processo de desenvolvimento do produto se deu através da aquisição de conhecimento sobre a manufatura. Primeiro, foi preciso definir como seriam os moldes de cada calcinha. “Nós somos da engenharia química, não sabemos fazer moldes, então a gente foi atrás de parceiros na moda que pudessem nos ensinar”, conta Nicole. As fundadoras foram responsáveis por todas as etapas do processo. “A gente fez um curso de modelagem com aulas livres, em que a gente trabalhava só calcinhas”. Foi assim que começaram a pensar no desenvolvimento do design do produto – leve, com um corte que valorizasse o corpo e “que fosse o mais normal possível, sem o aspecto de fralda”, como define Francieli.

Depois de ter os primeiros protótipos, precisavam definir quais seriam os tecidos finais e, especialmente, como desenvolver uma camada absorvente confortável. Foram em busca de matéria-prima local: algodão, poliamida e elastano. “Quanto mais próximo, melhor”, afirma Nicole. O mais longe que se vai para conseguir fabricar tecidos para a Herself é Brusque – a 539 km de Porto Alegre.

Linha de calcinhas da Herself em processo de costura. Foto: Arquivo/Herself

Para Raíssa, isso é importante por fazer parte de um processo que envolve não só produtores locais, mas a comunidade em si.  Assim, seguiram para a cocriação. Elas elaboraram um formulário de inscrição onde voluntárias poderiam se candidatar para participar de testes. As participantes foram selecionadas com base nas datas de início de seus ciclos. Os feedbacks eram registrados de forma individual. As gurias nunca esperaram tanto pra menstruar”, recorda Nicole, com um sorriso no rosto. Dessa fase de cocriação, surgiu a ideia de transformar a marca em uma comunidade. “É muito mais do que um único produto”, explica Francieli. “Queremos que as pessoas falem sobre menstruação, que deixe de ser um receio”, completa.

O produto foi finalizado em, ao todo, quatro meses – entre dezembro de 2016 e março de 2017. O preço foi fixado em R$ 75 por cada unidade de dois modelos diferentes: um para os fluxos leves e outra para os intensos. O valor cobre os custos com matéria-prima, fabricação manual, transporte, embalagens e entrega. As calcinhas podem ser lavadas a mão ou na máquina e sua durabilidade pode atingir anos, conforme o nível de cuidado.

Através de uma campanha de financiamento coletivo, a marca ganhou nome: Herself. Por quê? “Porque é dela para ela mesma”, define Raíssa. “É uma marca que defende a abertura de diálogo, pra que as mulheres falem e se empoderem sobre o que precisam ou não”.

Entre o saudável e o aceitável 

Além do vazio no mercado, as criadoras da marca notaram um vácuo histórico em que não se fala sobre menstruação. “Ou, quando se fala, é sempre visto como algo ruim. O sangue é algo feio, intocado e há uma grande mística que envolve tanto ele quanto o período menstrual em si.”, afirma Francieli. Ela lembra de, no colégio, esconder o absorvente descartável na manga da jaqueta. Ri. “É isso ou levar a mochila inteira e todo mundo achar que tu vai embora”.

Segundo Francieli, o cenário familiar ainda preserva diversos preconceitos sobre a menstruação. “Quando a menina menstrua pela primeira vez, é introduzida ao assunto pela mãe; geralmente, o pai tem maior resistência em se envolver”. Para ela, isso revela pequenas bolhas de exclusão que, somadas, ilustram preconceitos de toda sociedade em torno do tema. “Só que isso só prejudica as mulheres”.

“A Herself é um produto que está sempre em um processo de crescimento, para ouvir e se adequar o melhor possível a todas as mulheres”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em propagandas de marcas de absorvente, um fluido azul tradicionalmente representa quanto sangue menstrual o produto consegue absorver sem vazar. Porém, não se vê sangue ou qualquer item vermelho que remeta à menstruação. Segundo as criadoras da Herself, esconder o fluxo é um problema social que envolve a falta de aceitação com o natural e o saudável; artificializado a menstruação. Para elas, o impacto do tabu sobre a saúde ginecológica das mulheres se reflete, principalmente, na falta de diálogo. Ter acesso à informação e trocar experiências é fundamental para saber diferenciar sangramentos saudáveis de sangramentos anormais, causados por doenças como endometriose e câncer de colo de útero. “Queremos que a Herself incentive a troca de experiências e o diálogo em torno da menstruação, para promover sempre a saúde e o conforto das mulheres”, enfatiza Raíssa.

No momento, a empresa está realizando a entrega do primeiro lote de vendas. Em alguns casos, de porta-em-porta. “Queremos saber o que elas acharam já na hora de receber”, explica Francieli. Cada calcinha é embalada em um pequeno saco de algodão que enfatiza o caráter manual e único de cada peça. Elas são empacotadas junto com uma carta escrita à mão contando sobre o produto.

Quando pensam sobre o futuro, as três empresárias trocam olhares e sorrisos. A ideia é, além das mulheres, poder se comunicar melhor com as adolescentes – em especial, com quem está no primeiro ano de menstruação. Além disso, pensam em outros produtos: sutiãs para amamentação, biquínis…”Mas tudo no seu tempo”, afirma Nicole. “A Herself é um produto que está sempre em um processo de crescimento, para ouvir e se adequar o melhor possível a todas as mulheres”, resume.

Fonte: Sul21,

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.