Por Murilo Pajolla
Edição Nicolau Soares
Quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral desembarcou em 1500 no litoral do Monte Pascoal, atual sul da Bahia, Pero Vaz de Caminha avistou indígenas e os descreveu em uma carta ao rei de Portugal: “eram pardos, todos nus”.
524 anos depois, fazendeiros estão usando a recém-promulgada lei do marco temporal para reivindicar as mesmas terras. Eles foram ao Supremo Tribunal Federal (STF) tentar interromper o processo de ampliação da Terra Indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal de 8 mil para 50 mil hectares.
Os pedidos judiciais, obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato, partiram de quatro grandes proprietários de terras de famílias ricas e influentes na região. O processo é relatado pelo ministro Cristiano Zanin, que se posicionou contra o marco temporal no julgamento do Supremo que derrubou a tese jurídica.
“Nossos ancestrais foram atacados, e hoje não é diferente. É um conflito que vem desde a invasão dos portugueses. Eles falam que nós somos invasores, mas invasores são eles”, diz Erilza Pataxó, vice-cacica da TI Barra Velha.
O marco temporal será julgado novamente pelo Supremo neste ano, em ações que pedem a declaração da inconstitucionalidade da lei. Até lá, a vigência do critério de demarcação deverá continuar estimulando conflitos, dizem advogados e indigenistas.
Disputa não é só jurídica: “corremos risco de morte”
Segundo a líder Pataxó, 14 aldeias que protagonizam um processo de autodemarcação podem desaparecer, caso os fazendeiros obtenham vitória na Justiça. Pelo marco temporal, indígenas só têm direito às terras que ocupavam em 8 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição.
Erilza teme que a ofensiva jurídica ruralista alimente a crescente onda de violência que deixou dois jovens indígenas mortos há um ano – segundo as lideranças, vítimas de policiais e pistoleiros, que tentam impedir as retomadas indígenas sem ordem judicial.
“Hoje nós corremos risco de morte. Na semana passada vieram dois caras encapuzados me procurar para me matar. Perguntaram para os meus parentes quem era a vice-cacica que liderava o movimento de autodemarcação”, contou Erilza ao Brasil de Fato.
Situação se repetirá pelo país, diz advogada do Cimi
Sob repúdio de praticamente todas as organizações indígenas, indigenistas e da sociedade civil, a lei do marco temporal foi promulgada pelo Congresso em 3 de janeiro de 2024, após um cabo de guerra entre Lula e os parlamentares.
O presidente quis excluir da lei a proibição de ampliação de terras indígenas e o critério temporal para demarcações – trechos agora usado pelos fazendeiros para reivindicar a Terra Indígena Monte Pascoal – mas os vetos foram derrubados pelos parlamentares.
Além de ignorar que povos tenham sido expulsos de suas terras com violência, a nova lei proíbe a ampliação de áreas que já tenham sido destinadas para os indígenas, como é o caso da Barra Velha do Monte Pascoal.
Com base nos trechos da lei vetados por Lula e restaurados pelo Congresso, os proprietários de terras fizeram novas petições judiciais ao ministro Cristiano Zanin do STF no dia 11 de janeiro, oito dias após a promulgação.
“Certamente pedidos da mesma natureza ocorrerão em outras ações que tratam da matéria, tanto nos Tribunais Superiores, como nas instâncias inferiores, exigindo do Poder Judiciário a estabilização deste cenário de insegurança jurídica por meio da proteção dos direitos constitucionais dos povos indígenas”, avaliou Paloma Gomes, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Quem são e o que alegam os fazendeiros
Os novos pedidos ao STF feitos com base na lei do marco temporal foram protocolados por quatro proprietários de terras: Adilson Braz Bosi, Creuza Antônio Chicon, Ordelino Campo Dall’Orto e Lindomar Antônio Lembranci.
O Brasil de Fato conversou com o advogado deles, Flávio Roberto dos Santos. Ele afirmou que o pleito de seus clientes é legítimo, pois não há decisão judicial anulando o processo anterior de demarcação em 8 mil hectares. Além disso, disse que o laudo antropológico de ampliação é parcial a favor do indígenas.
“Claro, todo conflito é reprovável e a solução harmônica sempre deve ser buscada. No entanto, temos um acirramento, considerando que no final de 2022 e início de 2023 tivemos um avanço significativo dessas invasões por parte dos indígenas reivindicando suas terras. Eles invadem as propriedades e isso gera conflito”, afirmou o representante legal dos fazendeiros.
Até hoje pelo menos sete indígenas Pataxó já morreram em disputas relacionadas à Terra Indígena Barra Velha, incluindo um adolescente de 14 anos. Não há registros de mortes de fazendeiros.
Fazendeiros. Os que produzem derramando sangue. Não são judeus. Mas tbm são ladrões de terra.