Fazendeiros usam gado para invadir Terra Indígena homologada há 15 anos no Pará

Novo relatório da Hutukara Associação Yanomami expõe avanço da atividade garimpeira, recorde de casos da doença malária, aumento da desnutrição e exploração sexual em troca de alimentos. Entre 2014 e 2020, o número de enfermos por malária Falciparum cresceu 716 vezes

Garimpo no rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami. Via: InfoAmazônia

Via InfoAmazônia.

Uma explosão de casos de malária entre indígenas Yanomami que vivem em aldeias próximas a garimpos ilegais tem produzido altos índices de desnutrição.  É o que aponta o novo relatório da Hutukara Associação Yanomami publicado nesta segunda-feira (11).

O documento, “Yanomami sob ataque!”, alerta para relação entre o adoecimento das famílias pela malária e o agravamento do quadro da desnutrição infantil, uma vez que os adultos acometidos com a doença não conseguem prover alimentação. “A malária compromete não apenas a saúde individual do doente mas também a economia das comunidades que dependem da força de trabalho familiar para produzir sua subsistência”, destaca o texto do relatório.

Segundo Junior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) Yanomami, é cada vez mais comum encontrar aldeias inteiras doentes contaminadas com Malária. No ano passado, ele visitou a aldeia Parima na Terra Indígena Yanomami (TIY) e se deparou com uma situação dramática em que 95%, dos 790 moradores, apresentavam a doença parasitária.

“Os pais e as mães não conseguem caçar e trabalhar na roça. Para você construir uma roça tem que ter saúde. Como vai trabalhar com febre, calafrios, dores de cabeça e pelo corpo?”, questiona Hekurari. O conselheiro ressalta outros sintomas graves da doença como desmaios e convulsões.

Na TIY, os mosquitos se reproduzem na água parada das piscinas residuais deixadas pela atividade garimpeira. “Onde tem garimpo tem muitos buracos. Na água suja é onde o carapanã cria seus filhotes”, explica o presidente do CONDISI Yanomami. Ele  ressalta que nas comunidades onde o garimpo ainda não chegou, quase não são registrados casos da doença.

O desmatamento causado pelo garimpo e as piscinas de resíduos deixadas pela atividade alteram o ecossistema das regiões favorecendo o aumento do número de mosquitos. A própria presença ilegal de garimpeiros adoecidos na TIY também colabora para o crescimento  disseminação da  doença.

Mapa da TIY e pontos degradados por garimpo. Crédito: Hutukara Associação Yanomami

Se a desnutrição é um fenômeno multicausal, a malária ocupa um status importante entre essas origens no caso dos Yanomami, como explica o médico Paulo Cesar Basta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “O parasita da malária vai consumindo a pessoa lentamente, diminuindo a imunidade e deixando ela sujeita a outros problemas de saúde, como diarreia, pneumonia, Covid-19”.

Segundo o médico, a doença é ainda mais grave nos quadros de desnutrição infantil quando a criança adquire o parasita até os cinco anos de idade ou mesmo antes de nascer.

“Se a mulher está gestante e pega malária, isso prejudica a alimentação da criança no ventre, tem uma transmissão intergeracional, isso acontece muito na TIY. Mas se a criança pega malária quando é pequena ela também tem seu sistema imunológico comprometido e aí se somam problemas que deixam seu estado nutricional debilitado”, ressalta o médico.

Os casos de diarréia também têm se tornado mais comuns a partir do crescimento do garimpo. Junior Hekurari relaciona o quadro à contaminação da água por mercúrio utilizado para separar o ouro. “Os garimpeiros contaminam nossos rios, de onde bebemos água”. A disenteria é um dos principais causadores da desnutrição e desidratação entre crianças no país.

O impacto na nutrição das famílias Yanomami também se dá por consequências mais diretas da atividade garimpeira, não passando necessariamente pelo adoecimento. Cada vez mais, homens Yanomami são recrutados para trabalhar no garimpo, o que tem causado uma desestruturação da divisão do trabalho na terra indígena. “Na medida em que os homens se afastam das comunidades, eles deixam as famílias desassistidas e a mulher e os filhos passam a não ter acesso à proteína animal”, afirma Basta.

Abuso sexual em troca de comida

O relatório registra também graves denúncias de exploração sexual contra mulheres e crianças yanomami por parte de garimpeiros na região de Kayanau. Segundo o relatório da Associação Hutukara, os garimpeiros têm oferecido comida em troca do abuso sexual de meninas Yanomami.

A exploração é denunciada em um relato registrado por pesquisadores e traduzido da língua Yanomami.

“Eles falam assim para os Yanomami: “Se você tiver uma filha e der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará!”. Os [garimpeiros] dizem: “Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!”. Então, os Yanomami respondem: “É minha filha!”. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. “Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!”, assim os [garimpeiros] falam muito para os Yanomami”.

Na avaliação de Junior Hekurari, os garimpeiros se aproveitam da situação de vulnerabilidade social e da situação de desnutrição entre as famílias indígenas. “Eles falam que estão nos ajudando e quando as lideranças percebem a realidade já é muito tarde”, conta.

Em outro testemunho presente no relatório, junto aos alimentos, garimpeiros ofereceram bebidas alcóolicas e um “pó branco” aos Yanomami moradores da região do Aracaça. “Eles ficaram viciados, alterados e violentos, resultando em muitos episódios de violência”.

Segundo Paulo Basta, a inserção de alimentos ultraprocessados e com poucos nutrientes, bebidas alcóolicas e drogas entre os Yanomami é um método comum do garimpo e tem efeitos totalmente insalubres. “O primeiro efeito negativo no estado nutricional é que quando recebem o alimento das mãos dos garimpeiros há um impacto no interesse na manutenção das roças, deixando a população sem os alimentos tradicionais que são ricos em nutrientes, sais minerais e vitaminas”, explica.

O segundo impacto negativo da situação é a alteração nos hábitos alimentares que causa uma “dupla carga de desnutrição”. “As crianças ficam desnutridas, com baixo peso e estatura para a idade. Há relatos de obesidade e doenças crônicas, que não eram comuns na TIY, como hipertensão arterial. É uma mudança de padrão alimentar, um desvio nutricional”.

A corrida por ouro

A malária é uma doença endêmica na Amazônia e é causada por um parasita chamado plasmodium. Ele se instala nos mosquitos do gênero Anopheles, também conhecido como mosquito-prego, e passam para o corpo humano no momento da picada. Há diferentes espécies de Plasmodium. A mais comum é conhecida como Vivax, e causa sintomas mais leves. A espécie Falciparum, por sua vez, é mais letal.

Segundo Paulo Basta, o garimpo é historicamente responsável pelo aumento de infecção por Plasmodium Falciparum no Brasil. Se no final da década de 1950, quando começou o monitoramento da malária no Brasil, havia cerca de 100 mil casos por ano no país, a partir da década de 1970, com a corrida do ouro estimulada pela ditadura militar a partir da colonização da Amazônia brasileira, os casos passaram para 600 mil por ano. “Isso se manteve até o início dos anos 2000, quando o Ministério da Saúde instituiu o Plano de Controle da Malária”, comenta Basta.

Em maio, a demarcação da TIY vai completar 30 anos. Entre a década de 1980 e de 1990, o processo demarcatório ganhou atenção internacional justamente pelo drama vivido, já naquela época, pelas investidas garimpeiras no território indígena. Na época, mais de 45 mil garimpeiros invadiram a região e cerca de 20% da população Yanomami morreu em decorrência de doenças trazidas pelo garimpo.

A partir de  2015, os registros de malária voltaram ao patamar de 100 mil casos por ano, mas a partir de 2018, com a expansão do garimpo na Amazônia, esses números recrudesceram para 200 mil casos por ano. “A doença é cíclica. A partir do momento que você desmata uma área, que o tratamento deixa de ser incorporado na rotina de serviços de saúde e que os territórios indígenas são invadidos, a malária se descontrola de novo”, explica o médico.

Segundo Basta, em outras regiões afetadas pelo garimpo, como na cidade de Jacareacanga (PA), os casos de malária entre moradores também acompanham a extração de ouro. Em Jacareacanga ocorrem intensos conflitos entre garimpeiros e indígenas Munduruku, cujo território fica dentro dos limites do município. Entre 2019 e 2021, o garimpo na Terra Indígena Munduruku cresceu 363%. Em paralelo, dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Malária apontam que os registros da doença em Jacareacanga saltaram de 873 casos em 2017 para 6.465 em 2020.

Entre 2014 e 2020, os casos de malária Falciparum cresceram 716 vezes na TIY, indo de 5 casos em 2014 para 3.585 casos em 2020. No relatório da Associação Hutukara, é possível verificar a relação entre o avanço do garimpo e o crescimento no número de registros da doença. Os dados são contabilizados a partir do  atendimento dos polos base de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI).

Ao todo são 37 polos em toda a TIY, dos quais 18 possuem registro de desmatamento relacionado ao garimpo verificável por meio de imagens de satélite.

Em 2021, o garimpo ilegal na TIY avançou 46% em relação ao ano anterior.  Considerando o intervalo entre 2016 e 2020, o crescimento é de 3.350%. Atualmente, 273 das 364 aldeias dentro da TIY, e pelo menos 16 mil pessoas(56% da população total) estão afetadas pelo garimpo.

A região do polo de saúde Waikás, que fica na bacia do rio Uraricoera, é a mais afetada pelo garimpo ilegal na TIY. Lá, os 1.169 hectares degradados em dezembro de 2020 saltaram para 1.466, em dezembro de 2021, um aumento de 25%. Não havia registro algum de malária na região entre 2003 e 2017.

Já a região do polo de Palimiu, também no Uraricoera, que sofreu um aumento de 228% na área afetada pelo garimpo ilegal entre dezembro de 2020 e dezembro de 2021, os registros de malária, que entre 2003 e 2018 ficavam em uma média anual de 200 casos, saltaram para mais de 1.800 casos em 2020.

 

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