Por Mariana Castro.
Neste Dia Internacional dos Direitos Humanos (10), o Centro de Documentação da Comissão Pastoral da Terra (Cedoc/CPT) apresenta os dados parciais dos Conflitos no Campo referentes ao período de janeiro a agosto de 2021. O documento aponta uma disparada nos índices de violências contra ocupações e posses, assassinatos de sem-terras, além de mortes em consequências de conflitos.
De acordo com os dados parciais, 418 territórios foram vítimas das ações de destruição de casas e pertences, expulsão, grilagem, pistolagem e impedimento de acesso a áreas de uso coletivo nesse período. Desse total, 28% são territórios indígenas, 23% quilombolas, 14% de posseiros e 13% de sem-terras, entre outros.
Apesar de não se referirem a todo o ano de 2021, o documento alerta que os dados já superaram, em todos os aspectos, os índices de violência registrados durante todo o ano de 2020, que apontou quase 1 milhão de envolvidos em conflitos no campo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o coordenador nacional da CPT, Ronilson Costa, explica que isso é um reflexo da política que se tem adotado em relação aos povos do campo, das florestas, aos pescadores, comunidades tradicionais e povos indígenas no país.
“Há diversas iniciativas em discussão no Congresso que vão contra os modos de vida dessas comunidades e que incentivam, de uma certa forma, essa ofensiva violenta contra essas comunidades. Imagina quando, publicamente, se defende a atuação de garimpos ilegais? São muitas medidas, muitas discussões para defender uma pequena elite econômica ou política, em detrimento dos modos de vidas de centenas de comunidades tradicionais no nosso país.”
Entre janeiro e novembro de 2021, foram registrados 26 assassinatos em conflitos no campo, o que representa um aumento de 30% em relação a todo o ano anterior, quando foram registrados 20 assassinatos.
Das 26 vítimas de assassinatos, 8 eram indígenas, 6 sem-terra, 3 posseiros de terra, 3 quilombolas, 2 assentados, 2 pequenos proprietários e 2 quebradeiras de coco babaçu. Vale destacar que todos os quilombolas assassinados em 2021 são do estado do Maranhão.
Já as mortes em consequência de conflitos tiveram um aumento de 1.044%, novamente tendo como principais vítimas os povos indígenas. O índice passou de 9, registrado em todo o ano de 2020, para 103, registrados até o momento. Dessas 103 mortes registradas, 101 foram de indígenas Yanomami, vitimados pela fome, pela covid-19 e pela invasão de garimpo ilegal em suas terras, sob consentimento do governo Bolsonaro.
Os assassinatos no campo são aqueles decorrentes da ação direta de sujeitos, tais como jagunços, fazendeiros, garimpeiros, grileiros, entre outros. Já as mortes em consequência de conflitos, são aquelas em razão de conflitos em andamento, que em geral provoca a ruptura total do acesso a direitos básicos como educação e saúde, resultando em doenças e outras situações que levam à morte, como é o caso dos Yanomami.
Ronilson explica que nesses casos, as mortes se dão, muito mais, por consequência da ausência de políticas públicas e atuação do estado.
“As mortes por consequência de conflitos são, muito mais, por conta da ausência de políticas públicas diante de situações de ameaças e riscos que essas comunidades sofrem, que muitas vezes levam à situação de morte. Os povos indígenas Yanomami relataram um número de mais de cem indígenas, entre elas muitas crianças, morrendo por conta desse descuido”, explica.
Diante da situação dos Yanomami, por exemplo, foi necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), que mediante ação do partido Rede Sustentabilidade requereu a adoção de medidas necessárias e urgentes para a proteção à saúde e segurança dos povos originários.
Ronilson alerta que os agentes causadores das mortes se utilizam ainda de outros mecanismos para matar defensores de direitos humanos e de seus modos de vida, mortes essas que escapam das estatísticas e poderiam revelar uma situação ainda mais grave no país.
“Há outras formas de matar. O próprio discurso alimentado do ódio, que incide sobre comunidades quilombolas, sobre comunidades indígenas… quantas e quantas formas de mortes acontecem, como o atropelamento com as características de um mero acidente? São muitos casos nesse sentido que eu acredito que não conseguimos levantar todos. Certamente há muito mais do que aquilo que conseguimos levantar durante esse período”, lamenta Ronilson.
O coordenador da CPT condena o racismo estrutural, que invisibiliza a violência contra as comunidades tradicionais, acompanhado do desmonte de órgãos de fiscalização que poderiam atender às demandas desses povos.
“É o racismo estrutural, ambiental, que considera que esses povos não são sujeitos de direitos, deixando-os abandonados à própria sorte, é a ausência de um estado que consiga dialogar e promover justiça, que se mantenha vigilante em situações de ameaças. O que temos na história recente do nosso país é um verdadeiro desmonte de órgãos de fiscalização, que são responsáveis por atender às demandas dessas comunidades.”
Outro dado que chama a atenção é o aumento do número de famílias em ocupações e retomadas, que em meio à pandemia de covid-19 teve um aumento de 558,57%, passando de 519 para 3.418, o que já corresponde a mais que o dobro do número total de famílias registrado em todo o ano de 2020, que foi de 1.391.
De acordo com o relatório da CPT, “isso mostra que mesmo com o receio de contaminação pela covid-19, essas famílias precisaram resistir para manter-se vivas e nos territórios tradicionalmente ocupados. A ofensiva contra os povos do campo, das águas e das florestas não entrou em quarentena”.
É o que reforça Ronilson ao afirmar que “há um aumento significativo de desempregados, de desesperançados. O estado brasileiro não aponta perspectivas, não consegue alimentar a esperança de ninguém, a não ser dos grandes empresários. Os pobres estão cada vez mais pobres e há, certamente, uma situação de retorno de famílias que foram expulsas, seja em um passado mais distante ou mais recente.
Justamente, o problema estrutural de acesso à moradia não é recente no Brasil, mas ganhou muito mais força durante o enfrentamento à pandemia da covid-19, quando as pessoas foram instruídas a “ficarem em casa”, quando não tinham uma casa para ficar.
O aumento no número de desempregados, no valor de aluguéis e na cesta básica se tornaram barreiras ainda mais firmes que separam o direito à moradia, das famílias brasileiras de baixa renda – ou sem qualquer tipo de renda.
Com esse conjunto de agravantes que dificulta o acesso à moradia, durante o atual governo foram intensificadas as ações que a CPT chama de Violências contra a ocupação e posse, que são os mecanismos de defesa e sobrevivência encontrados pelas famílias para se manterem sob um teto.
Entre esse tipo de violência, o impedimento de acesso às áreas de uso coletivo foi a que apresentou maior aumento em comparação ao ano passado. O índice aumentou 1.057%, seguido por expulsão, com aumento de 153%, pistolagem (118%), grilagem (113%), destruição de pertences (104%) e destruição de casas, com aumento de 94%.
Em relação aos responsáveis pelas violências contra a ocupação e posse, o relatório aponta que a categoria fazendeiros apresentou um aumento de 23%, seguidos por empresários (18%), governo federal (14%), grileiros (13%) e garimpeiros (6%).
Campanha Despejo Zero
Os dados divulgados pela CPT contrastam com o relatório da Campanha Despejo Zero (CDZ), plataforma criada no início da pandemia em defesa da vida no campo e na cidade, formada por diversos movimento sociais, entidades e militantes que coletam e disseminam informações, e atuam na defesa ativa em processos judiciais e administrativos envolvendo conflitos fundiários, bem como em práticas de incidência política e institucional nos órgãos públicos.
A CDZ alerta ameaças ativas de perda de moradia para 123.153 famílias brasileiras até outubro de 2021, enquanto mais de 23.500 famílias foram removidas de suas moradias no período de agosto de 2020 até outubro de 2021.
Os altos índices poderiam ser ainda maiores, caso não houvesse a atuação da plataforma em defesa da moradia, que garantiu a suspensão de 80 casos de despejo desde o início da campanha, evitando que 11.280 famílias perdessem sua moradia desde o início da pandemia.
Resposta
No caso do Maranhão, estado com o maior número de assassinatos no campo registrados até o momento, o Secretário de Direitos Humanos e Participação Popular, Francisco Gonçalves, garante que os dados são reflexo de um avanço nacional do agronegócio e do garimpo ilegal, inflamado especialmente sob o discurso de ódio do presidente da república.
Ele aponta também alguns fatores agravantes, como a localização estratégica e menor valor de terras para o avanço de fronteiras agrícolas.
“No caso específico do Maranhão hoje, há um avanço do agronegócio em diferentes regiões, que se devem à qualidade das terras, mas também ao preço de mercado da terra em relação a outras áreas do país. Fazemos parte de uma área chamada de Matopiba, que faz parte de uma estratégia de ocupação das últimas fronteiras agrícolas do país”, explica o secretário.
:: Quatro casos demonstram na prática a relação entre grilagem e desmatamento no Matopiba ::
Questionado sobre as medidas de prevenção e resolução de conflitos, ele destaca a criação e atuação da Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), no ano de 2015.
“Vale lembrar que antes da criação da COECV não havia qualquer estratégia estadual para tratamento de conflitos agrários do Maranhão, bem como não havia definição clara quanto ao papel da Polícia Militar frente a tais conflitos. A força do estado era toda voltada para servir aos que se diziam donos das propriedades”, ressalta.