
Por Rodrigo Guéron*
I
Há um problema na fala da esquerda quando ela insiste que “a extrema-direita produz um discurso de ódio”, qual seja, o de não perceber e/ou deslegitimar o sentimento social e, consequentemente, a desejabilidade social de onde emerge esse ódio, partindo do pressuposto que a extrema-direita produz algo a partir do nada. É nesse sentido que a lógica de “opor o amor ao ódio”, ainda que em certas circunstâncias específicas da luta política possa fazer algum sentido, quando assume o caráter central de uma estratégia política, tende a se tornar apenas uma estratégia conservadora, ou seja, uma estratégia pela estabilização de uma situação dada. E esse é um problema central do governo Lula, que aparece, em primeiro lugar, na sua estratégia econômica e política: a toda pressão social ele opõe o discurso da estabilidade – “estabilizar a economia”, “reconstruir o Estado” … — sem considerar que pode haver uma indignação legítima por traz desta pressão. É por isso que ele aparece, algumas vezes de fato age, como conservador.
Esta é uma estratégia política que desconsidera completamente algo que vem da experiência real das pessoas: dos trabalhadores, dos empobrecidos, dos que vivem vidas subalternizadas, precárias, trabalhando tantas vezes de forma extenuante. Me refiro a algo como uma sensação mais ou menos difusa, mas ao mesmo tempo fortemente presente, de que existe um poder dominante que expolia as pessoas, o fruto de seus trabalhos, seus direitos e suas vidas de uma forma geral, e até mesmo – ou talvez “sobretudo”, no contexto atual do capitalismo – seus desejos, afetos e criações. Há um sentimento evidente, e legítimo, de que se tem uma boa parte da vida roubada: sugada, extraída; o que nada mais é do que a percepção da ação do processo de extração de mais-valia típico do capitalismo. O que de fato se quer estabilizar? Uma das sociedades mais desiguais e injustas do mundo – senão a mais – entre as nações industrializadas? O que significa, por exemplo, o governo se orgulhar que o desemprego está baixo? Está certo que esse pode ser um exemplo de boa gestão macroeconômica, mas para a esmagadora maioria da classe trabalhadora empregada isso apenas significa que ela está trabalhando de forma extenuante e ganhando salários baixos, muitas vezes miseráveis, para manter aquecida uma produção social e econômica organizada de uma maneira que tira dela muito e não lhe devolve nada, ou muito pouco.
O fato é que tanto no que se convencionou chamar de “fascismo histórico”, quanto no de hoje, a extrema-direita mobiliza uma energia social de revolta de fonte absolutamente legítima e real; parte importante de sua força política vem daí, ainda que não apenas. O fascismo entra no meio da relação entre necessidade e desejo, atuando no limiar, ou na passagem, de uma para o outro. E assim ele captura as experiências-limite vividas pela grande maioria da população, transformando a positividade desejante da revolta no paradoxo do desejo de morte; o que não tem nada a ver – e aqui me torno um pouco acadêmico – com algum tipo de “pulsão de morte” naturalizada como uma suposta instância essencial do desejo, como concebeu a psicanálise, e sim com o desejo de morte como algo socialmente produzido.
Pode-se dizer que o fascismo tem aí um mecanismo de captura da raiva social e de transformação desta em ódio, que ele de fato intensifica e dissemina; ou ainda que ele distorce a revolta na direção de um bode expiatório até o limite do discurso – e principalmente do sentimento – que é preciso travar uma guerra contra algum inimigo que se não for destruído, nos destruirá. Mas, insistimos ainda mais uma vez: não se trata de uma força social criada do nada.
II
Pois bem, o equívoco do enunciado “a direita produz discurso de ódio” está muito próximo do de outro “o problema do governo Lula é a comunicação”. Ambos são casos de uma confusão entre o sintoma de um problema, e o problema todo, além de estarem relacionados entre si. Se o primeiro é falta de sensibilidade e escuta para um sentimento social legítimo, o segundo é a dificuldade de entender que se este sentimento não tiver como resposta a construção de uma ação política partir dele, o governo tende a se tornar impopular e ser derrotado. De fato, não é falso que, até aqui, a estratégia de comunicação do governo Lula tem sido ruim, mas ela não mudará muita coisa se não for pensada antes como um problema político.
É claro que não dá para analisar esta questão em termos simétricos: é verdade que o governo Lula enfrenta uma situação absolutamente desigual. É o que vemos, seja numa análise política mais clássica, pela situação no congresso, pelo poder do mercado financeiro, pelo modo como as empresas de comunicação repetem quase unanimemente os enunciados deste último; seja pelo poder da extrema direita colado a um dos centros da produção capitalista contemporânea de uma forma geral: as chamadas big techs que, na verdade, se tornaram determinantes para todo o jogo de forças da política convencional, se instalando no centro da produção econômico-política, fazendo convergir para elas até mesmo a dimensão financeira e especulativa, típica do capitalismo. Quer dizer, não é totalmente falso o discurso do petismo mais orgânico de uma “conjuntura desfavorável”, o problema é o tom de naturalização com que ele tem sido anunciado e, consequentemente, o imobilismo que ele tem produzido.
É preciso admitir que a extrema-direita parece ter compreendido muito bem que uma “questão de comunicação” em política irá sempre encontrar, mais cedo ou mais tarde, o seu limite imposto pela realidade social; por imposição política, portanto. Por isso ela faz, em primeiro lugar, uma agitação social e política permanente, indo muito mais longe do que uma “estratégia de comunicação”. Um dos aspectos que é mais mobilizado nessa agitação política é exatamente o sentimento de revolta social, de raiva legítima de que falávamos há pouco. É interessante observar, no entanto, que a extrema-direita faz isso não apenas quando está na oposição, mas também, e sobretudo, quando está no governo.
Evidentemente não é apenas esta indignação, esta raiva e revolta social, que vão constituir uma espécie de regime afetivo – para além de uma ideologia – típico do fascismo. A extrema-direita se caracteriza não apenas pela uma captura deste fluxo social de revolta, mas também pela maneira como faz este confluir para alguns outros fluxos sociais que enumeramos no nosso livro sobre o bolsonarismo como um tipo fascismo: as dores, sofrimentos e humilhações que se inscrevem no corpo das multidões na luta pela sobrevivência; os medos sociais típicos da burguesia e da pequena burguesia; a força social e econômica que ganham grupos intermediários que se constituíram nas instituições e estruturas de repressão e segurança (os “capatazes”); a violência da classe dominante e do Estado no capitalismo, e assim por diante. Mas é interessante observar como antes de ganhar maior organicidade e força – como o bolsonarismo mesmo ganha, disputando e ocupando o Estado – esses grupos se organizam como núcleos de ativismo político. Aqui, é claro, mais uma vez a lógica e o poder dos algoritmos das big-techs não podem ser desconsiderados: uma diferença, mas também uma semelhança em relação ao chamado “fascismo histórico”, uma vez que antes, como hoje, o fascismo cresce no movimento mesmo em que ele age como inventor e transformador da comunicação como tecnologia do poder. É no coração desta operação que antes, como hoje, segue sendo uma característica da extrema-direita manter um clima de agitação e tensão social permanente que, como vimos, tanto a fortalece quando ela está fora do governo, quanto no período que o ocupa.
E assim se cria mais do que um discurso, mas sobretudo um afeto de guerra permanente – de guerra infinita – contra um inimigo que pode estar em qualquer lugar, e em toda parte. Nessa lógica, existiriam supostamente sempre uma ou algumas forças fora do governo, poderosas, articuladas entre si, algo como um “sistema” que o sabotaria o tempo todo, impedindo, ou no mínimo dificultando muito, a realização do supostamente perfeito, imaculado e redentor projeto “patriótico” para o país. Observemos que a experiência de ser espoliado que, como sublinhamos no início do texto, é realmente vivida pela população, é sempre atribuída as estas forças, supostamente responsáveis inclusive pela ruína econômica — misturada a uma ruina moral – da sociedade. Assim, um governo de extrema-direita estaria sempre lutando bravamente contra esse “sistema”, e a sua agitação política permanente seria uma forma importante para mobilizar os cidadãos para esta “guerra”, numa lógica da sacrifício e compensação. Uma guerra que é, inclusive, uma guerra pela economia: “a economia é a pátria”, palavra de ordem decisiva do governo Bolsonaro, sobretudo durante a pandemia, e agora central também para o governo Milei, na Argentina. Trata-se de um encontro perfeito entre a mistificação do Capital típica do liberalismo e da economia-política, e a antiga mistificação do Estado, ponto de interseção entre neoliberalismo e fascismo, o que só é surpreendente para quem nunca se dedicou a fazer a genealogia de ambos.
É verdade que aqui o problema da assimetria se evidencia mais uma vez, vindo, na verdade, de um segundo aspecto da “estratégia de comunicação” da extrema-direita que, como vimos, é antes uma estratégia e uma ação política, mesmo que dissemine o sentimento da antipolítica. Pois bem, neste segundo aspecto fica evidente que esta ação política acontece de forma colada à produção social e aos centros de controle dessa produção no capitalismo contemporâneo: de novo, as big techs. Tentemos explicar melhor.
O meu colega filósofo Rodrigo Nunes observou, por exemplo, que “ser bolsonarista” se tornou um empreendimento para muita gente, isto é, uma forma de ganhar dinheiro que até enriqueceu alguns chamados “influencers”. Esse é um caso que já indica um lugar de imanência entre a produção política e a produção econômica, indicando a centralidade e o protagonismo que esta ocupa. Nesse sentido, uma figura como Elon Musk faz muito mais do que mobilizar as suas empresas para um “apoio ideológico”, seja a Donald Trump — de cujo governo ele se tornou membro –, seja para toda a extrema-direita mundial. Esse apoio político é, ao mesmo tempo, o seu próprio negócio, isto é, o fascismo é também a própria produção econômica de Musk: onde ele obtém altas doses de mais-valia e lucros estratosféricos. Mas essa imanência entre a produção econômica e a política tem um terceiro aspecto: ela é também uma produção de um determinado regime afetivo – uma produção de ordem libidinal – que, como muito bem observou Paul Preciado, joga na intensa montanha russa psicossomática que nos sujeita: a busca de uma satisfação tanto mais rápida e intensa quanto possível, imediatamente seguida de uma inexorável e igualmente intensa frustração. Vivemos em um capitalismo que nos vicia e nos adoece: “nos adicta”, e a extrema-direita opera nessa onda, nessa frequência.
E assim, nós que queríamos apenas pensar uma questão política conjuntural do governo Lula no Brasil, contestando o enunciado de que ele teria “um problema de comunicação”, chegamos a um lugar, e a uma sensação, recorrente no debate político atual: a impressão de estarmos diante de um delírio que nos arrasta de forma incontrolável e violenta, nos empurrando por uma situação que mistura horror e passividade diante da política. Dito de outro modo, uma sensação ao mesmo tempo de loucura e de impotência.
Pedindo perdão para o breve tom “motivacional” do texto, tentar não sucumbir a essa situação é a primeira coisa a se fazer. Em seguida, creio, deveríamos tentar recuperar a positividade da intensidade dos sentimentos sociais. É preciso fluir politicamente junto à indignação e a revolta que circula socialmente, visto que é dela que se impõe a seguinte situação: ou fazemos agitação e disputa política, ou seremos derrotados. Evidentemente que aqui esse texto encontra seus limites, uma vez que se propôs a analisar o governo Lula, partindo do pressuposto que a derrota dele representaria a volta da extrema-direita ao poder. Porém, muitas das questões que levantamos ultrapassam estes limites, e a própria questão da mobilização política deve ser vista para muito além de uma questão de governo e dos problemas por ele enfrentado. A propósito, a naturalização da situação politicamente desfavorável na qual vivemos, produzindo um imobilismo, que muitas vezes expressa um lugar social de conforto, privilégio e medo de uma pequena burguesia que se define como “de esquerda”, não é algo que contamina só o governo e o PT. No entanto, a luta política está aí diante de nós, mais do que apenas potencialmente, como a resistência da vida em meio a uma máquina social tão cheia de sofrimentos, violências e morte: o movimento contra a jornada 6 x 1, e a adesão popular que ele ganhou, não é o único exemplo, mas é seguramente um dos mais pujantes dos últimos anos. O PT e o governo têm a chance de assumi-lo, de transformá-lo em proposta de governo, de chamar a mobilização. Mesmo dentro dos limites de gastos que o governo se auto impõe, principalmente porque cede à pressão do mercado financeiro, existe disputa política e mobilização social a ser feita: a proposta de isenção do IR até 5 mil reais por mês, junto à taxação acima dos 50 mil, é um exemplo.
Por outro lado, aqueles que dizem que não é papel de um governo fazer agitação política e disputa na sociedade, a resposta é a prática da extrema-direita de agitação social permanente que expomos acima: ou o governo Lula faz isso e parte para a disputa política, ou sucumbe. Mesmo se for derrotado em alguns destes movimentos, eles ao menos servirão para deixar claro quem se opõem a estas mudanças: quem quer manter o absurdo da jornada 6 x 1 e quem vai ser contra a taxação dos ultra ricos para viabilizar a isenção de impostos até 5 mil reais. Lembremos que sem mobilização política Lula não teria ganho a eleição de 2022; mesmo que tenhamos tido poucos “grandes comícios”, tivemos uma imensa mobilização social disseminada nas redes, nos bairros, nos grupos de amigos, nos locais de trabalho, com milhões de cidadãos e cidadãs e incontáveis núcleos que foram quase que de pessoa a pessoa, de porta em porta, de celular em celular, buscando votos. Mas agora já não estamos falando de uma nova mobilização de caráter apenas eleitoral: se a população não sentir que o governo Lula lutou para retomar as mudanças sociais que iniciou no Brasil nos seus mandatos anteriores, no lugar de preferir somente manter a “estabilidade”, não o apoiará de novo.
*Rodrigo Géron é autor de “Capitalismo, Desejo e Política. Deleuze e Guattari leem Marx” e “A Vingança dos Capatazes. O bolsonarismo como fascismo”. Ambos pela Nau Editora. Também é filósofo e professor associado na UERJ.
A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.
Descubra mais sobre Desacato
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.