Por Leandro Lanfredi.
Ibis Pereira, que ocupou o mais importante cargo da polícia militar fluminense entre novembro de 2014 e janeiro de 2015, foi recém filiado ao PSOL e deu uma entrevista escandalosa ao El País.
Ele diz: “A intervenção é uma tragédia, mas discordo daqueles que dizem que temos que fazer oposição a ela. Ela é fato, já está aí. (…) Diante disso, o que a gente vai fazer? Vamos cuidar da intervenção, vamos acompanhar para que nenhum abuso seja cometido e vamos verificar que tipo de legado pode surgir. Vamos transformar esse limão em uma limonada.”
Em um momento de comoção pelo assassinato de Marielle, onde aumentam os questionamentos à intervenção federal e se coloca a possibilidade de derrotá-la com a força das ruas, a crítica do ex-comandante a quem faz oposição à intervenção ecoa a voz do general Villas Boas, de Temer, de Rodrigo Maia e da Globo, e outros reacionários que vieram a reafirmar que a intervenção tem que continuar. Aprofundar a intervenção, ou colocar um fim à ela, é uma das principais disputas que estão em questão, pois os golpistas querem fazer algo absurdo: se apoiar no assassinato de Marielle para justificar ainda mais a intervenção federal, quando deveria ser mais um motivo para seu fim imediato.
Enquanto milhares ainda estão nas ruas, erguendo o grito que Marielle erguia contra a intervenção, cantando “Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!”, é lamentável que dentro das fileiras do PSOL haja este tipo de posição. Se o PSOL realmente é contra a intervenção federal, o mínimo seria combater energicamente posições deste calão que saem de dentro do partido.
Lutar contra a intervenção ou “cuidar da mesma”?
Como uma intervenção, que é mais um passo decidido da intervenção do exército na vida política nacional, mais uma medida que é continuidade do golpe institucional, que dá poderes acima da lei estadual para um general, que coloca milhares de soldados acima da lei, que impõe a civis que podem ser julgados por júri militar se forem acusados de desacato, pode ser “limonada”? Como isso pode ser algo que pode trazer um “legado” que não seja de mais repressão, de mais negros mortos, de mais impunidade de assassinos fardados?
Quais seriam os “abusos” que devem ser “cuidados” para preservar a intervenção e dela extrair um legado? Os esculachos e revistas de crianças, a prisão militar de civis por suposto desacato, a não cooperação do exército nas investigações sobre a chacina no Salgueiro?
A lógica do ex-comandante é que a intervenção pode servir de pretexto para um debate público, enquanto isso todo o salto em autoritarismo fardado é respaldado por ele.
Ibis Silva Pereira ingressou no PSOL há poucos meses junto de outros policiais civis e militares (para uma crítica a esta filiação e ao programa de segurança de Freixo leia o seguinte link) e já tinha sido um assessor de Freixo na campanha municipal de 2016 e assumiria a segurança da cidade se tivesse vencido.
Ibis Pereira expressa mesma lógica que expressou como comandante da PM, pois assumiu o posto enquanto ocorria a ocupação militar da Maré usando a Garantia da Lei e da Ordem. No fim das contas é o mesmo que sempre repetia o chefe da segurança de Cabral, Mariano Beltrame. Frases para “opinião pública” e avanço do autoritarismo morro adentro.
O problema da polícia é pedagógico ou se trata do caráter da instituição?
Enquanto segue impune o massacre policial nos morros e favelas, enquanto o crime da execução de Marielle segue sem solução e o governo tenta de todas as formas inventar histórias para procurar seu bode expiatório e continuar justificando a intervenção, Ibis Pereira tem o seguinte diagnóstico para o problema da instituição policial: “temos um problema conceitual que é uma questão central da polícia brasileira. Afinal, o que é segurança pública? O que é polícia? Qual é a função da polícia na democracia? (…) não temos estrutura de governança, não temos plano nenhum e temos um problema conceitual muito grave. No momento em que você precisa reproduzir uma instituição, que está toda hora recebendo gente aposentando gente, você precisa dizer para essa pessoa qual é função dela, você precisa formá-la.”
É um problema “conceitual”: os policiais matam aos milhares, atiram nos corpos negros das favelas porque, segundo Ibis, ninguém disse ao policial que a função dele é proteger e não promover chacinas de negros, pobres e, agora, pelo que parece indicar as investigações, matar vereadores que os denunciem por isso. Ibis que foi o responsável da Academia da Polícia Militar por vários anos não consegue explicar porque sua abordagem “pedagógica” não mudou nada.
Como o comandante admite na entrevista a visão marxista sobre a polícia é radicalmente oposta à sua. Para os marxistas a polícia não é uma instituição que pode ser reformada e não define em nada a ideologia de cada policial individualmente, mas sim seu papel social como um órgão de opressão de uma classe sobre outra. Uma vez subordinada ao comando do Estado capitalista todo policial, nascido no morro que for, é uma arma da burguesia contra os trabalhadores.
Vale lembrar o que dizia o revolucionário russo Leon Trotski sobre as polícias, no contexto da Alemanha antes da tomada do poder pelo nazismo:
“O fato de que os agentes de polícia tenham sido recrutados em grande parte entre os operários social-democratas não quer dizer absolutamente nada. Aqui também a existência determina a consciência. O operário que se torna um policial a serviço do Estado capitalista é um policial burguês, não um operário. Durante esses últimos anos, esses policiais tiveram de lutar muito mais contra os operários revolucionários do que contra os estudantes nacional-socialistas. Uma escola desse tipo não pode não deixar marcas. Porém o mais importante é que cada policial sabe que os governos mudam, porém a polícia fica”.
As posições de Ibis Pereira mostram mais uma vez como o problema desta força repressiva do Estado não é ideológico, como defendem alguns que bastariam algumas “reformas”, que sob outra ótica o braço armado do Estado para garantir os interesses dos capitalistas contra a classe trabalhadora poderia se tornar outra coisa. Debaixo do manto de novos argumentos, Ibis Pereira reivindica o plano burguês que serve para reprimir os trabalhadores e a população do Rio, especialmente a intervenção federal.
Não há o que melhorar na intervenção federal, é preciso colocar fim imediato à ela
Em importantes cidades do país ocorreram manifestações contra os ataques dos golpistas além de manifestações contra esse brutal assassinato, como a reforma da previdência de Doria que é enfrentada pela greve dos professores e outros setores do funcionalismo. É urgente que a CUT e a CTB coloquem seu peso a serviço da mobilização, essa é maneira de lutar por justiça para Marielle. Precisamos organizar em cada local de estudo e trabalho assembleias e comitês que também estendem aos bairros a luta contra a intervenção e pela justiça para Marielle.
Não podemos confiar na polícia para investigar o crime contra Marielle, é necessário uma investigação independente, deixando de semear ilusões na polícia, nas forças armadas e na própria intervenção federal. No que diz respeito às investigações do crime, o Estado não vai assumir por si próprio sua clara responsabilidade nesta execução.
Lutando para colocar fim à intervenção federal e por uma comissão independente de investigação podemos ter força para conseguir avançar a maiores questionamentos contra o racista e assassino aparato repressivo do Estado brasileiro. Poderíamos avançar para um programa que possa garantir um mínimo de justiça por Marielle, Anderson e todos os assassinados pelo Estado em nome de um suposto combate ao reacionário crime organizado, que só poderemos debelar com um sujeito social independente nas ruas, como estamos batalhando agora, e não pelas mãos do próprio Estado, vinculado de mil formas com o crime organizado.
Poderíamos avançar para impor o fim da impunidade policial, garantindo o julgamento por júri popular de todos crimes policiais, e o fim de todas tropas especiais para repressão, assassinato e infiltração dos movimentos sociais como os “Serviços Reservados”, o BOPE, a CORE, a Força de Segurança Nacional e as UPPs, bem como lutar pela legalização das drogas para acabar com a guerra às drogas.