Por Daniel Giovanaz.
Pessoas físicas e jurídicas estrangeiras controlam, formalmente, 17,3 mil hectares de unidades de conservação (UCs) no Brasil. O número, obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação, é referente à soma de 39 áreas, registradas em nome de 27 pessoas físicas e seis pessoas jurídicas diferentes.
Foram considerados apenas os territórios arrendados ou comprados. Ou seja, ficaram de fora áreas de UCs e parques estaduais e nacionais concedidos à iniciativa privada para exploração turística, por exemplo.
Para auxiliar na interpretação dos dados e do contexto em que eles se inserem, o Brasil de Fato entrevistou a advogada socioambiental e integrante da organização Grain para a América Latina, Larissa Packer.
A primeira ponderação dela é sobre eventuais manobras que fazem com que os casos sejam subnotificados.
“Esses números se referem a estrangeiros ou pessoas jurídicas brasileiras equiparadas que seguiram o trâmite exigido pela legislação, pediram autorização do Ministério da Agricultura, têm escritura pública”, explica.
Para efeito de comparação, ela lembra que uma área muito maior, cerca de 750 mil hectares, foi adquirida desde 2008 por um fundo de pensão privado de professores universitários dos Estados Unidos (TIAA-CREF, na sigla em inglês) e pelo fundo de investimentos da Universidade de Harvard.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reconheceu em maio de 2019 que, embora empresas brasileiras fossem usadas para efetivar a compra dos terrenos, eram os dois fundos estrangeiros que estavam por trás das negociações.
“Essas artimanhas fazem com que a aquisição de terras por estrangeiros seja muito subnotificada”, enfatiza.
Raio x
As UCs, segundo a Lei 9.985/2000, são “espaços territoriais e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo poder público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção da lei.”
Todas as áreas que integram o levantamento do Brasil de Fato permitem regularização de parcela individual e estão em conformidade com a legislação vigente.
Possibilidade de comercializar títulos sobre serviços ambientais e créditos de carbono para compensar emissão de poluentes atrai capital estrangeiro ao Brasil / Ideflor Bio/Fotos Publicas
Com 99,99% de capital estrangeiro, a Fiat Automóveis S.A. – subsidiária da montadora italiana – lidera a lista obtida junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A empresa possui 10.356 hectares adquiridos em Itacarambi (MG), em uma área denominada Fazenda Vargem Grande Pitanga.
Itacarambi é um dos três municípios que sediam o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, uma UC criada em 1999 com participação da Fiat.
À época, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público Federal (MPF) após ser multada por emitir poluentes fora dos padrões aceitáveis em uma linha de automóveis. Como forma de compensação ambiental, a Fiat se comprometeu a adquirir terras naquela área para implementação da reserva do Peruaçu, além de garantir as obras de infraestrutura do Parque.
O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de comunicação da Fiat Automóveis S.A., que não respondeu aos questionamentos sobre as atividades realizadas na UC em Minas Gerais e sobre os planos da empresa para aquela área.
As outras cinco pessoas jurídicas com um ou mais sócios estrangeiros que controlam oficialmente áreas de UCs no Brasil são:
Al-Wabra Empreendimentos e Participações Ltda, em Curaçá (BA): Fazenda Concórdia, com 2.380 hectares e 99,99% de capital estrangeiro (Catar).
Biosev Bioenergia S.A., em Colômbia (SP): Fazenda Perdizes, com 557,6 hectares e 95% de capital estrangeiro (Holanda).
Estaleiro Itajaí, em Itajaí (SC): com 282,8 hectares e 78,73% de capital estrangeiro (Espanha).
International Paper do Brasil, em Três Lagoas (MS): Fazenda Barra do Moeda, Gleba A, com 39,4 hectares; Fazenda Barra do Moeda Gleba B, com 21,3 hectares. 99,99% de capital estrangeiro (Estados Unidos).
Baden Baden Hotéis e Turismo Ltda, em Santo Amaro da Imperatriz (SC): Fazenda do Tabuleiro, com 7,7 hectares e 55% de capital estrangeiro (várias nacionalidades).
Motivações
Packer analisa os possíveis interesses de empresas estrangeiras ao adquirirem áreas de UCs no Brasil – formalmente ou por meio de artimanhas, como citado acima.
“Em primeiro lugar, o preço da terra, que é mais barato, em função das restrições de uso”, pontua. “Segundo, porque, com a Lei 13.465, da regularização fundiária, os serviços ambientais passam a ser considerados cultura efetiva.”
Em dezembro de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 5.028/19, que cria a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA).
Esse programa compensará financeiramente ações de manutenção, recuperação ou melhoria da cobertura vegetal em áreas consideradas prioritárias para a conservação.
A proposta, que aguarda sanção presidencial, “autoriza a emissão de títulos sobre serviços ambientais, inclusive sequestro de carbono, e sua possível comercialização em mercados internacionais”, alerta a advogada socioambiental.
Especulação
Em dezembro de 2020, o Senado aprovou o PL 2.963/2019, que flexibiliza as regras para aquisição de terras por estrangeiros. Entre outras medidas, a proposta que segue para votação na Câmara dos Deputados autoriza a compra, por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, de até 25% da área dos municípios brasileiros.
O autor da proposta é o senador Irajá Abreu (PSD-TO), que integra a bancada ruralista e é filho da senadora e ex-ministra Katia Abreu (PDT-TO).
A legislação atual, de 1971, só permite a aquisição de terras em caso de estrangeiros residentes no Brasil, empresas já autorizadas a funcionar no país ou empresas brasileiras cuja maior parte do capital social pertença a estrangeiro.
Embora o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tenha sinalizado pelas redes sociais que é contra o projeto de flexibilização, isso não significa que o Brasil esteja barrando as investidas de transnacionais sobre as terras brasileiras. Afinal, a sanção do PL 5028/19, mencionado acima, garantiria “acesso indireto” à terra pelo capital estrangeiro.
“Com o PL de serviços ambientais, não será preciso adquirir nem arrendar: com um contrato de pagamento de serviços ambientais [aos brasileiros que hoje detém a terra], uma empresa transnacional tem acesso indireto à terra por um período de 30, até 50 anos, burlando de novo a lei de aquisição de terras por estrangeiros”, completa.
O Código Florestal já autoriza a possibilidade de comercializar, dentro do mercado de serviços ambientais, créditos de carbono e biodiversidade. “Isso não infringe mais a função socioambiental da terra, já que prestar serviços ambientais, mesmo que sem nenhuma produtividade, faz parte do conteúdo de cultura efetiva. E a terra parada favorece a especulação”, alerta a advogada.
Como Bolsonaro enxerga o tema
Larissa Packer analisa que a postura de Bolsonaro contra o PL da flexibilização converge com o posicionamento histórico das Forças Armadas. Por outro lado, a especialista vê o presidente tensionado pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) a permitir a mercantilização e financeirização da natureza.
Na interpretação dela, há duas tendências diferentes no agronegócio brasileiro: a primeira, mais vinculada à União Democrática Ruralista (UDR), seria a face mais truculenta, que aposta na renda da terra a partir de grilagem e desmatamento; a segunda, mais “moderna”, representada pela FPA, acolhe a exigência de certa adequação ambiental do produto das cadeias globais de valor, o que leva o sistema financeiro a defender algumas salvaguardas socioambientais.
“Desde 2009, em torno da Convenção sobre Mudanças Climáticas, temos tentativas de mecanismos financeiros que tornem viável economicamente – e paguem o custo de oportunidade – para os produtores deixarem de avançar com commodities agrícolas sobre as florestas. Então, a floresta em pé tem que incorporar valor econômico”, explica.
“Bolsonaro toma posse desconhecendo completamente essas estruturas de mercado sobre florestas. Hoje, ele já entende mais. Por isso, o governo insiste que o Brasil já tem unidades de conservação suficientes. Ou seja, não vamos aumentar a área de conservação: temos nosso ativo ambiental e vamos colocar valor, introduzir isso no mercado internacional”, completa Packer.
Isso significa que reservas legais, áreas de proteção permanente (APP) e UCs que já existem seriam autorizadas a gerar crédito de carbono, e essas áreas passam a atrair transnacionais que precisam “compensar” suas emissões de poluentes em outros lugares do planeta.
Esse será um dos temas em debate na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021, também conhecida como COP26, que será realizada no Reino Unido em novembro. O Brasil, contrariando a posição histórica do Itamaraty, defende hoje mecanismos de financeirização das florestas como alternativa à destruição e à escassez.
Nos EUA, por exemplo, após uma sequência de queimadas devastadoras no estado da Califórnia, títulos de água começam a ser comercializados no mercado financeiro. A mesma tendência poderia ser aplicada nos biomas brasileiros.
“Se as grandes queimadas que aconteceram no Pantanal em 2020 se repetirem, maior o valor do metro cúbico de água, da tonelada de carbono e da cota de reserva ambiental (CRAs), que representa um hectare de vegetação nativa. Porque, hoje, metade do Pantanal não existe”, finaliza a advogada.
Oficialmente, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 3,98 milhões de hectares de terras agrícolas brasileiras pertencem a pessoas de outras nacionalidades, empresas estrangeiras ou empresas brasileiras constituídas ou controladas por estrangeiros. A maior parte delas estão concentradas em Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso.
Leia mais: