Militantes e ativistas lamentam exagero da PM em ação contra sem-teto em São Paulo e avaliam que objetivo foi dar um recado a movimentos, com repressão que não terá fim graças a ‘cheque em branco’
Por Rodrigo Gomes.*
São Paulo – As cenas de violência desmedida ocorridas 16/09, durante reintegração de posse do antigo Hotel Aquarius, na avenida São João, centro da capital paulista, são resultado da ausência de controle institucional – e de certa conveniência – de outros órgãos do Estado sobre a atuação da Polícia Militar (PM) paulista, segundo o coordenador do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos, Rafael Custódio, e o jurista Renan Quinalha. Para eles, é preciso olhar para além da polícia e cobrar atuação do Ministério Público e mudanças em todo o Poder Judiciário.
“O problema é que você tem um cheque em branco. As instituições que deveriam servir de contraponto não exercem o seu papel. O Ministério Público não age. A Corregedoria é corporativista e pune mais o soldado pego fumando maconha do que o que mata. As ouvidorias não têm a autonomia necessária para atuar”, avalia Custódio.
Na manhã de ontem, ignorando a presença de idosos e crianças no local, a Tropa de Choque da PM passou a atirar bomba de gás lacrimogêneo dentro da ocupação, em resposta à negativa dos moradores de deixarem o local. Os sem-teto reagiram atirando carcaças de coco, objetos, móveis e tinta nos policiais. Eles afirmaram que tinham um acordo – feito com o 7º Batalhão da PM – de que 40 caminhões e 120 ajudantes estariam no local para retirada dos pertences das famílias. Porém, apenas 13 caminhões foram enviados ao local.
A PM invadiu o local e deteve 70 pessoas, inclusive crianças e idosos, que foram levados para o 3º Distrito Policial, na rua Aurora também no centro. Eles permaneceram em um cerco de policiais da Tropa de Choque, na calçada de um posto de gasolina, sob o sol. Todos foram fichados e liberados.
À tarde, a polícia investiu contra pessoas que observavam a retirada dos pertences das famílias, com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, sem que qualquer provocação ou ação dos sem-teto tenho ocorrido. A polícia agia com grande organização, embora não houvesse um oponente a enfrentar.
Após uma breve pausa, iniciou novamente o bombardeio, indiferente a se eram passantes, curiosos, sem-teto ou jornalistas. Viaturas passaram a circular em alta velocidade, assim como veículos do Batalhão de Choque. Algumas pessoas passaram mal e outras corriam gritando que estavam só saindo do trabalho. Depois disso, surgiram manifestantes, alguns mascarados, que passaram a enfrentar a PM.
Custódio ressalta ainda o respaldo político que se segue a esse tipo de situação, dado tanto pelo secretário da Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, quanto pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, (PSDB). “Se eu sou um soldado ou comandante de tropa, eu sei que estou completamente livre para fazer isso amanhã de novo, sem nenhum problema”, completou.
Na manhã de hoje, o secretário Fernando Grella afirmou que a polícia agiu de maneira correta, para garantir a ordem pública.
O jurista Renan Quinalha concorda que o sistema de Justiça acaba dando sinal verde para que ações como essa ocorram. E defendeu que outras esferas de governo precisam se posicionar quanto a isso. “Tem uma conivência de várias instituições. A maior responsabilidade é do governo estadual, mas os níveis federal e municipal poderiam ter interferido para evitar o desastre”, avalia.
Em entrevista à RBA em Julho, Quinalha já frisava que há uma articulação entre polícia, Justiça, Ministério Público e governos para consumar as ações repressivas contra a sociedade civil organizada, e que este é o grande risco para a democracia brasileira hoje.
O jurista avaliou que as ocupações – habitacionais ou culturais – vinham ganhando legitimidade, assim como as manifestações. Com isso, estava se abrindo um espaço na democracia brasileira para discutir a moradia, debater a cidade. Mas ao promover uma repressão dessa magnitude sobre os sem-teto, aliada ao discurso da mídia tradicional de que é preciso combater os vândalos, joga-se um balde de água fria nos movimentos.
“A meu ver foi bem planejado e intencional. Houve um fenômeno de espetacularização da violência. Não é à toa que a polícia vai fazer aquele espetáculo no centro de São Paulo, em um dia de semana, com grande visibilidade, muita gente circulando”, observa.
A defensora pública Luíza Lins destaca que a PM cometeu diversas ilegalidades e não permitiu a entrada da Defensoria Pública no prédio até que se iniciou a retirada das famílias. “Houve uma série de violações. As famílias foram obrigadas a ir para a delegacia. Não havia necessidade disso. Não havia acusação formal. Levaram mulheres grávidas, crianças, idosos. A repressão foi exagerada”, disse, acrescentando que esse tipo de situação é recorrente na atuação do 7º Batalhão da PM.
Luíza afirma que a Defensoria já enviou recomendação à Secretaria da Segurança Pública, a menos de um mês, para garantir que haja transporte e apoio às famílias durante despejos. E também que a força policial destacada tenha algum treinamento para lidar com a situação sem violência. “Mas nada adiantou”, completa.
Algumas pessoas relataram, inclusive, terem sido agredidas durante a saída do edifício. Os policias teriam formado um corredor polonês nas escadas. E quando os homens saíram eles chutaram, bateram com o cassetete, xingaram. “Tudo foi feito aos gritos, com muita violência”, denuncia o vendedor Rafael Macedo, de 19 anos, morador da ocupação.
O advogado do centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Benedito Barbosa, o Dito, que também atua com a Central de Movimentos Populares (CMP), avalia que o objetivo da ação era intimidar os movimentos de moradia e as ocupações existentes na região central. “Para o povo ver e pensar: ‘Vai acontecer com a gente também’”.
Dito ressalta que no período da tarde a FLM não tomou nenhuma atitude para reocupar o prédio ou investir contra os policiais. Para ele, a polícia paulista não tem comando.
Para a militante do Movimento Passe Livre (MPL) Nina Capelo, não há novidade na atuação da PM. Ela denuncia que a corporação fez uma limpa no centro da cidade durante a noite. “Eles estavam prendendo qualquer um. Se você fosse negro ou ‘parecesse’ sem-teto, eles detiam. Um militante do movimento foi detido para averiguação sem ter feito nada”, conta.
Nina não acredita que os policiais ajam sem ordem do comando. “A PM deu um recado: não vai admitir resistência da população. Essa é a resposta do governo estadual para as demandas sociais”, diz.
A Central Única dos Trabalhadores em São Paulo repudiou, em nota, a violência cometida pela Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo contra os sem-teto. “A aentral critica a falta de diálogo e a criminalização dos movimentos sociais pelo governo do PSDB de São Paulo, que agiu com truculência em uma ocupação onde havia, inclusive, crianças de colo e idosos”, diz um trecho da nota. Os dirigentes sindicais acreditam que não é o uso desproporcional da força que resolverá questões cruciais que afetam a população, como é caso da moradia.
Em resposta aos recorrentes excessos da polícia contra movimentos sociais, militantes de vários movimentos vão se reunir na próxima quarta-feira (24), no Auditório da Fundação Rosa Luxemburgo, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, para discutir a “criminalização nas cidades”, com o objetivo de avaliar a situação e pensar em formas de resistir a esta prática, que vem se tornando cada vez mais comum.
* Da RBA
Foto: Mario Ângelo / Sigmapress / Folhapress
Fonte: Rede Brasil Atual