[Por marco vasques e rubens da cunha, especial para Desacato.info.]
Monólogo das sombras – a peça-espelho.
Escrevo pra te dizer que, depois de mais de dois anos, voltei ao teatro. Aquela sensação de reencontrar um lugar muito conhecido, íntimo, que nunca tinha saído de mim, melhor, que eu nunca tinha saído dele. Vivemos tempos de ausência e de medo da presença; por isso, retornar foi um ato de coragem e de paixão. E retornei para ver Monólogo das Sombras, no Teatro Castro Alves. Esse teatro é um complexo cultural gigante, capaz de colocar vários eventos ao mesmo tempo, e era isso o que estava acontecendo no domingo à noite em que fui assistir à peça.
Na sala principal, o Balé Castro Alves se apresentava com o espetáculo Viramundo, em homenagem aos 80 anos de Gilberto Gil. Na Concha Acústica, espaço aberto para shows, Lulu Santos animava uma plateia lotada e, na Sala do Coro, não mais que 50 pessoas estavam ali para ter aquela experiência íntima, solidária, com ele, o Teatro. Apesar do gigantismo barulhento dos outros eventos à minha volta, foi de silêncio e ternura esse meu retorno.
Monólogo das Sombras é uma produção da Território Sirius Teatro, companhia que tem 22 anos de história e está aqui em Salvador fazendo e vivendo a arte teatral nestes perrengues e alegrias que conhecemos bem. A peça transita em complexos conceitos contemporâneos: escrita de si, autoficção, escrevivência. Fabio Vidal, autor, diretor e ator, parte de sua biografia para refletir sobre os processos de doença e cura, vida e morte, desespero e esperança e, sobretudo, o terrível encontro que devemos ter com as sombras que nos habitam. Há luto na peça, mas não há tristeza, porque a Território Sirius também estava tendo seu encontro íntimo com o Teatro, e Fabio estava tendo seu encontro íntimo consigo mesmo, com suas sombras e conosco, sombras na plateia.
No começo dos anos de 1990, quando tinha em torno de vinte anos, Fabio foi diagnosticado com Síndrome de Guillain-Barré (SGB), uma doença rara que ataca o sistema neurológico. Vamos acompanhando o processo de formação do jovem artista, até que ele para no hospital sem saber o que tem. A doença se agrava, há uma experiência de quase morte (a sombra! a sombra!), depois o diagnóstico, a lenta recuperação, e as sequelas que ficaram no corpo fizeram com que ele não apenas renascesse, mas se fizesse outro, se tornasse o ator flexível e vasto que é. Fabio retoma essa história 30 anos depois, a partir do recente falecimento de seu pai. A memória dos hospitais, dos medos, dos ditos e não ditos se repete por outro viés. A partir desses momentos, o que temos é uma biografia marcada pela superação, pelo entendimento dos limites ou deslimites do corpo, pelo acesso àquela tão julgada percepção extrassensorial que temos, mas dizem alguns doutos que não temos. Fabio nos leva por essa visita enquanto enfrenta seu fantasma-sombra e expõe os fantasmas-sombra da saúde pública, das violências de uma metrópole, do medo de não ser mais o mesmo, melhor, o medo de se tornar outro por causa das sequelas. Tudo se mistura numa encenação documental que comporta teatro de sombras, filmagem e transmissão ao vivo, posições de Yoga, conversa, delírio, metalinguagem e a ironia (informada logo no início) de que ele sabe como começar esse monólogo, mas não sabe como terminá-lo.
Não é fácil mesmo terminar esse monólogo das sombras, porque é uma dessas peças-espelho. Busco essa imagem, inspirado na água-viva Clarice Lispector, que dizia que o espelho não é uma coisa criada, e sim uma coisa nascida, que é o espaço mais fundo que existe e é algo que nunca se quebra, porque um pedaço mínimo de espelho é o espelho todo. Monólogo das sombras é assim: nascido e não criado. É um espelho porque nos coloca na frente de nós mesmos, faz-nos olhar nos olhos, aceitar ou rejeitar a Santosha, palavra em sânscrito para contentamento. Faz-nos ver em Fabio, em seu pai e mãe, em suas irmãs e amigos o que somos, o que podemos ser, o que desejamos trazer à tona ou esquecer. Faz-nos ir ao teatro ter um encontro íntimo com a dor, com a doença, mas também com o seu contrário: a cura.
É provável que, lá fora, Lulu Santos tenha cantado aquele seu sucesso chamado justamente de A cura: “Existirá, em todo porto se hasteará / a velha bandeira da vida. / Acenderá, todo farol iluminará / uma ponta de esperança. / E se virá, será quando menos se esperar, de onde ninguém imagina / demolirá toda certeza vã / não sobrará pedra sobre pedra.” Ali, naqueles escuros sombrios da Sala do Coro, eu soube que a velha bandeira da vida havia sido estendida e sombra, luz, espelho, medo, morte, vida e Vidal tinham acontecido. Já não era um monólogo; era um diálogo; mais: uma conversa, como há muito não se tinha. Escrevo-te para contar isso e saber de teus encontros por aí.
A Mulher do General e a Outra – as sombras sociais em nossas carnes
Caro amigo, por estes dias muitas incertezas têm se apossado da vida por aqui. São tantas, que não poderia narrar sem mergulhar nas sombras mais profundas que habitam nossas vidas, seja na individualidade ou na coletividade. A verdade é que Jung sabia bem das sombras, tanto que dedicou bom tempo se debruçando sobre o conceito. Folgo em saber que o teatro passa a ser uma realidade em nossas vidas, já que nossas carnes andam muito tatuadas pela viagem dos palcos, dos salões, das ruas, salas e ruínas. Depois de tanto tempo fora do claro-escuro do teatro, também volto, aos poucos, às vivências e aos desejos mais altos do coração. Aliás, foi o poeta Augusto dos Anjos quem disse que, em seu coração, habitam catedrais imensas. Assim me sinto sempre que entro no teatro: como se múltiplas catedrais me invadissem com seus coros, anjos, demônios, luzes, sombras, vitrais, orações, vozes e corpos em suas mais diversas e variadas formas.
Digo isso para confessar que tenho chorado quando adentro o teatro. Estes dias, ouvindo a Conceição Evaristo falar que muitas vezes escreve chorando, fiquei mais confortável, porque tem sido fácil encontrar as lágrimas em minha face no teatro. Curioso, pois, no mesmo sábado em que você retorna para compartilhar com Fabio Vidal a experiência da cena, também estive sentado no Teatro da Ubro, que você tanto conhece. Muitas vezes tivemos, lado a lado, nesse pequeno teatrinho no centro de Florianópolis, para nos abraçar com os olhares certos de incertezas. No meu caso, fui assistir ao novo trabalho do Grupo de Teatro O Dromedário Loquaz, escrito e dirigido pela Sulanger Bavaresco a partir de um texto do nosso amigo Iur Gomes. Da parceria entre ambos, nasceu A Mulher do General e a Outra, que continua em cartaz. Se Fabio Vidal vai às sombras interiores para iluminar a cena, Sulanger rastreia a vida social de uma cidade interiorana. A peça pode ser ambientada em Lages ou em Dionísio Cerqueira, e o grupo faz questão de fincar a ficção-realidade que encenam num ambiente comido pela brutalidade, mas também assoberbado de força libertadora e crivado de coragem, pois, do pequeno cosmos criado pela música, pelo cenário, pelo figurino, pelo corpo e pela voz dos atores, chegamos aos mesmos problemas que pululam nas chamadas metrópoles ou na cidade grande.
E aí nasce o primeiro ponto importante do espetáculo, pois após o encontro de Jussara, prostituta, com Dalva, a mulher do general morto, o que vem à tona é a igualdade entre duas mulheres que se pensam ou se percebem donas de mundos particulares. Todas as atrocidades do patriarcado e suas consequências mais nefastas aparecem aos poucos e, numa espécie de esconde e mostra, muito próximo dos quadros de teatro de revista, o público é levado a se encarar de frente, a encarar nossas sombras sociais, que, infelizmente, vêm sendo cultuadas por todos os cantos desta nossa pátria distraída.
Como você bem sabe, a Sulanger é uma mulher de coletividades. No trabalho, ela apresenta 11 atores, e, como o foco é debater a condição da exploração da mulher pelo universo masculino e de sua submissão a ele, o grupo de atores homens, de forma muito orgânica, oferece suas atuações para as mulheres crescerem. Com isso não quero dizer que estão acanhados em cena; pelo contrário, se doam às parceiras mulheres. Andrea Busato, Diana Adada Padilha e Nenê Borges são atrizes já conhecidas nos palcos catarinenses; já ver Julia Bavaresco, filha da Sulanger, e Giovana Coppola cantando com a força dos pássaros em arrebóis incontroláveis foi uma iluminada surpresa.
Há algo muito importante no teatro apresentado em A Mulher do General, isto é, ele é de uma grande honestidade cênica, pois apresenta ao público exatamente aquilo que foi calculado e prometido. Em tempos de linguagens híbridas, Sulanger propõe um teatro que conta histórias a partir do ethos de uma comunidade e, com isso, revela muitas sombras sociais: a misoginia galopante, o machismo nefasto, a hipocrisia religiosa, os perigos do autoritarismo e do militarismo e, o que penso ser o mais impactante, a noção de sentido de comunidade artística. Uma comunidade que defende a liberdade a partir de personagens presos em suas desrazões.
Todos os atores, conduzidos pela execução musical, ao vivo, de Eugênio Menegaz, se olham em cena com tal ternura, ternura esta tão ausente nos dias atuais, que tudo emana uma força viva, mordaz, embora borrada pelas sombras, de luminosidades necessárias. Amigo, como é de seu conhecimento, temos perdido muita gente nestes anos. Em Florianópolis, o Sérgio Bellozupko, a Carmen Fossari, o Toni Edson, o Frank Maia, a Luiza Lorenz, o Sylvio Mantovani, enfim, são muitos artistas nos deixando logo num momento em vivemos sob o signo da morte pela pandemia; mais que isso, vivemos sob o elogio da morte todos os dias. E Sulanger e sua trupe fazem questão de trazer a memória desses artistas para a cena, o que faz com que nós, pessoas de teatro, sejamos tocados no cantinho mais quente da alma. Amigo, não conseguirei entrar em todos os detalhes emanados em A Mulher do General e a Outra, pois isso exigiria algo menos epistolar. O fato é que saí do teatro com os interiores mexidos, muito mexidos, por sinal. Há que se ressaltar, também, o trabalho vocal feito pela Luiza Montovani e geografia corporal feita pela Geovana de Oliveira.
Ainda sobre teatro, quero narrar brevemente o lançamento dos nossos dois livros, Fazer o Teatro – volumes 1 e 2, em Joinville. No dia 26 de junho, no Teatro da Associação Joinvilense de Teatro (AJOTE), tivemos uma noite muito especial. Mais uma vez as lágrimas me dominaram, pois o momento foi permeado de amores. Fiz uma mesa-redonda com as atrizes Angela Finardi e Clarice Steil Siewert, em que acentuamos a nossa necessidade de nos vermos como comunidade. Os músicos Vinicius José Ferreira, Prika Lourenço e Andréia Malena Rocha cantaram canções autorais. Silvestre Ferreira, Robson Benta, Juciara Nascimento, Iraci Seefeldt, Amarildo de Almeida, Denize Gonzaga, enfim, muita gente de teatro e das artes apreciando nossos livros. Digo isso para acentuar que faltou você na festa, mas fiz questão de falar de todo o amor que envolve nossas escritas. Despeço-me já ansioso por notícias outras.