Por Míriam Santini de Abreu, no Folha da Cidade.
No auge da quarentena, o ruído mais característico nas principais ruas e avenidas de Florianópolis foi o das motocicletas de entregadores. A entrega em casa foi considerada atividade essencial na pandemia de covid-19 e os aplicativos e startups de entrega viram a procura inflar de março para cá. Agora, as redes sociais trazem a notícia: a primeira greve nacional de entregadores de aplicativos será no dia 1º de julho. Nas últimas semanas, vídeos com depoimentos sobre o cotidiano desses trabalhadores proliferam na internet, como o do MOV.doc.
As reivindicações são aumento do valor das corridas e pacotes e do valor mínimo por entrega, fim dos bloqueios e desligamentos indevidos pelas empresas, seguro de roubo, acidente e vida, fim do sistema de pontuação e mais auxílio durante a pandemia. Com a hastag #1DiaSemAPP, os entregadores contam com os clientes para repercutir o boicote aos aplicativos. Entre as lideranças há um grupo chamado “Entregadores Antifascistas”, que tem participado de manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro.
Uma pesquisa divulgada em junho com 298 trabalhadores em 29 cidades, intitulada “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”, revela aumento do tempo de trabalho e queda da remuneração. Outro resultado: a grande maioria dos entrevistados afirmou adotar uma ou mais medidas de proteção, custeando equipamentos de proteção individual, os EPIs, enquanto as medidas adotadas pelas empresas concentram-se principalmente na prestação de orientações.
Segundo a pesquisa, mais de 57% dos respondentes afirmaram trabalhar em faixas acima das nove horas diárias, percentual que subiu para 62% durante a pandemia. A maioria dos entrevistados, 58,9%, relatou queda remuneratória. Nesse período, a parcela de entregadores com remuneração inferior a R$ 260,00 semanais praticamente dobrou, passando a compor o cotidiano de 34,4% dos entrevistados.
O economista do DIEESE-SC Maurício Mulinari observa que as empresas vão se aproveitar da massa de trabalhadores desempregados para rebaixar ainda mais as condições de trabalho. Ele menciona o exemplo do iFood, empresa que divulgou ter cadastrado 185 mil entregadores em março, contra 75 mil em fevereiro.
Em Florianópolis, no mês de abril, desapareceram 6.415 postos de trabalho segundo o Cadastro Geral de Emprego e Desemprego (CAGED). A queda do emprego ocorre em praticamente todos os setores, mas concentra-se no setor de Alojamento e Alimentação (-1.758 postos de trabalho) e no Comércio (-1.561). Somado aos 3.163 vínculos de emprego perdidos em março, já são quase 10 mil novos desempregados em apenas dois meses.
Mulinari observa que os trabalhadores do setor de turismo e serviços – em que Florianópolis se destaca – são os mais vulneráveis, não tendo contratos de trabalho estáveis e sendo facilmente demitidos. “Por isso mesmo, a cidade, antes mesmo da pandemia, já tinha 48% de sua força de trabalho vivendo na informalidade, que nem ao menos é captada pela estatística e deve estar em condições ainda piores”, alerta o economista. É nesta realidade que cresce a procura pelo cadastro nos aplicativos. Com a ampliação da oferta, essas empresas, que foram se organizando em monopólios globais, reduzem ainda mais as condições de assalariamento. A luta contra a precarização, afirma Mulinari, passa pela organização dos trabalhadores, como mostra a história do movimento operário. Um bom exemplo é a greve dos ferroviários em 1923, graças à qual a categoria foi a precursora do direito a um pagamento mensal na velhice, originando a atual Previdência.
A paralisação convocada pelos entregadores, analisa o economista, é uma forma embrionária de organização, com pequenos grupos se articulando e agora usando as novas tecnologias para se comunicar. No desenrolar da crise, essa organização pode se ampliar, à medida que a categoria perceber o engodo da ideologia que vende a ideia ilusória do trabalhador patrão de si mesmo e de suas condições de trabalho. Nesse processo, avalia Mulinari, é importante evitar cair na burocratização, que capturou muitos sindicatos hoje restritos à negociação da retirada de direitos e afastados das bases que representam. “O caminho é acreditar que o horizonte a seguir não é a negociação, e sim a revolução social”, conclui.
Adesão ao MEI
A relação que os entregadores têm com as empresas é apenas um dos vínculos possíveis. Na dissertação de mestrado intitulada “Na correria: a adesão de motoboys de Florianópolis ao MEI”, defendida em 2019, o pesquisador Arland Tassio de Bruchard Costa, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), investiga as causas e os impactos da adesão de motoboys, categoria composta por 900 mil trabalhadores no Brasil, à modalidade de CNPJ criada pelo governo federal em dezembro de 2008 com o alegado objetivo de diminuir a informalidade no mercado de trabalho brasileiro, o chamado Microempreendedor Individual (MEI).
A lei que regulamenta o exercício da profissão é de julho de 2009, mas a atividade vem se expandindo desde os anos 1980 graças à força de trabalho relativamente barata e à velocidade das entregas com motos, vantajosa em relação aos automóveis nas grandes capitais. Na pesquisa de campo com oito motoboys de Florianópolis, Costa concluiu que o ideário do empreendedorismo, em especial a culpa individual por eventuais fracassos e a necessidade de adaptação ao mercado, é absorvido e reproduzido pelos trabalhadores mais precarizados, ainda que tal adaptação exija grandes sacrifícios dos motoboys. Em palestra virtual sobre a pesquisa no dia 17 de junho, Costa detalhou a dura rotina desses trabalhadores que têm o salário vinculado à produtividade: “Agora, em função dos aplicativos, isso é ainda mais brutal”.
A chamada para a paralisação já está rodando em Florianópolis nos grupos de WhatsApp. Fernando Israel dos Santos, do Sindimoto, que representa a categoria com vínculo empregatício formal em Florianópolis e região, diz que o movimento está se construindo paralelo à movimentação de grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro. Ele explica que há receio porque, diante da crise econômica, o ganho com os aplicativos é o único para muitos trabalhadores.
Apesar das promessas sedutoras das empresas quando iniciaram os aplicativos, os entregadores estão trabalhando mais, colocando a vida em risco e ganhando menos. Serviço que rendia R$ 2 mil por semana agora rende isso por mês. E, apesar da existência da lei para o exercício da profissão, a realidade, constata Israel, é a atividade se precarizar ainda mais e ser vista como um quebra-galho. Soma-se a isso o duro golpe da Reforma Trabalhista, aprovada em 2017, na gestão de Michel Temer, que derrubou direitos até então garantidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e ampliou a terceirização. Para Israel, há um duro caminho para a profissionalização garantida em lei a quem, na pandemia, virou herói, mas nunca se viu como vilão: “Afinal, a gente não pega chuva e frio porque gosta, e sim porque precisa”, conclui.
O recado desses trabalhadores então é esse: dia 1º boicote os aplicativos!
Fonte: Folha da Cidade.