Entenda como abolição mal feita da escravidão perpetua as desigualdades e a falta de direitos

Lei Áurea completa 135 anos, mas legislação brasileira ainda não conseguiu romper racismo estrutural

Pintura de Victor Meirelles retrata a promulgação da Lei Áurea com a princesa Isabel ao centro, cercada pela elite brasileira e sem a presença de negros e negras – WikiCommons

Por Nara Lacerda, Brasil de Fato.

Possivelmente um dos atos mais romantizados da história da legislação brasileira, a lei que proibiu a escravidão em território nacional completa 135 anos neste sábado (13). No entanto, embora o regime tenha sido extinto oficialmente por uma norma legal, o ordenamento jurídico do país falhou e ainda falha em garantir reparação e direitos básicos para a população negra.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador Bruno Lima, do Instituto Max Planck – organização internacional que estuda a história legal há mais de 50 anos – afirma que, do ponto de vista do direito a inconclusão da abolição é evidente.

“Temos muitos elementos para afirmar isso, toda a sorte de estatística, informação normativa, dados sociológicos. Podemos escolher o que quisermos para trazer ao debate, que os legados nefastos da escravidão estão aí pulsando nas ruas e na carne do Brasil. Vejamos o judiciário, encontra-se de tudo desse legado, da composição do judiciário a como se julga a população preta do Brasil. Não só nos processos criminais, nos cíveis também e até mesmo nos processos administrativos.”

A Lei Áurea foi sancionada pela princesa Isabel em 1888. Ela ocupava o trono porque o pai, Dom Pedro II, estava em viagem na Europa. A monarquia passava por uma crise que veio a derrubar a coroa e transformou o Brasil em uma república. Vendida até os dias de hoje como um ato de benevolência, a lei na verdade foi uma resposta a tensões populares que se intensificavam cada vez mais.

“Não foi um processo pacífico, conduzido unilateralmente pelas elites brasileiras. Houve resistência, contestação à escravidão vindo de diferentes setores da sociedade brasileira, em especial dos negros escravizados”, pontua a advogada da Coordenação Nacional do Movimento Brasil Popular e da Escola Nacional Paulo Freire, Thays Carvalho.

Segundo ela, a ideia da elite brasileira era uma abolição progressiva, com indenização aos latifundiários. Os movimento abolicionistas condenavam a ideia e lutavam pelo fim da escravidão e das estruturas que davam sustentação ao regime. No fim das contas, não houve pagamento às famílias proprietárias de pessoas escravizadas, mas as estruturas escravistas continuaram a fazer parte da sociedade brasileira.

“A abolição acabou com o trabalho escravo, mas não com o latifúndio, tampouco construiu condições de reparação ou de igualdade para negros e negras. O Estado capitalista atuou desde o principio na criminalização da população negra e na naturalização da desigualdade social, ordenando socialmente a população brasileira poliétnica de modo a criar, como dizia Clóvis Moura,  mecanismos específicos de resistência à mobilidade social vertical massiva. O resultado é que a precarização, a segregação, a desigualdade tem cor no Brasil e é majoritamente negra.”

Antes da abolição, a monarquia já havia instituído a Lei do Ventre Livre (de 1871) e a Lei dos Sexagenários (de 1885). Ambas foram propagandeadas como acenos à liberdade, mas na verdade traziam benesses para famílias proprietárias e, na prática, não garantiam o fim da servidão.

A primeira delas definia que nenhum escravizado nasceria em solo brasileiro e que filhos e filhas de mulheres negras deixariam de ser propriedade. No entanto, as crianças deveriam viver em cativeiro, com as mães, até os oitos anos de idade. Até os 21 anos, elas só podiam ser libertadas por decisão dos donos e donas e, mesmo assim, ficariam sob tutela do estado.

Já a Lei dos Sexagenários definia que pessoas com mais de 60 anos seriam livres, mas não poderiam deixar o local de cativeiro até os 65 anos. O texto também determinava uma indenização às famílias proprietárias, que seria paga com três anos de trabalho da pessoa escravizada.

As duas normas foram uma tentativa de acalmar os ânimos dos movimentos abolicionistas, mas não funcionaram. No livro Brasil: Uma Biografia, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling contam que a abolição ganhava cada vez mais legitimidade popular, mas que o período também foi marcado por muita violência.

Famílias proprietárias aumentavam o trabalho e os castigos, “prevendo o fim do regime, e tendo boa parte de seu capital imobilizado em escravos”. Do outro lado, cresciam as fugas, revoltas, ataques e protestos por parte da população escravizada.

“O peso da legitimidade popular à causa abolicionista crescia e, pela primeira vez na história do país, esse peso materializava uma estratégia de luta política para o cativo dentro da sociedade do Império”, diz a obra. A mudança legal veio em meio a temores de uma convulsão social que sugeria desgoverno e a pressões da sociedade brasileira e internacionais.

Em uma frase a Lei Áurea declarava imediatamente extinta a escravidão no Brasil. No entanto, ela não previa nenhum mecanismo de inserção das pessoas libertas à sociedade. Pelos 100 anos seguinte, o país não tentou reverter as desigualdades econômicas, educacionais, de acesso à terra e ao trabalho impostas à população negra.

“Juridicamente falando, o 13 de maio é uma transição de um regime servil para um regime de trabalho livre. Mas como você coloca 4 milhões de pessoas saídas da escravidão, descendentes da escravidão nesse regime, se você não dá erra ou nenhuma oportunidade de trabalho na cidade ou no campo?”, questiona o pesquisador Bruno Lima.

Ele pontua que, mesmo que a liberdade tenha sido reafirmada em legislações posteriores, ela não estava embasada em direitos sociais e de igualdade, o que causa repercussões até os dias de hoje.

“Era um contexto muito difícil para se organizar a luta popular, cobrando, exigindo e fazendo valer direitos e igualdades. Estamos falando de um cenário de migração de massa, com gente sendo despejada nas estradas e tendo sua força de trabalho tutelada por nada. Um regime de fato de escravidão. A obra do estado brasileiro, de transitar de um regime jurídico para outro, dissimulando de maneira inédita custou muito tempo, muitas gerações.”

O Brasil só criou uma lei antirracismo na década de 1950. Apenas a partir da década de 1990 passaram a ser estabelecidas cotas raciais em universidades e a política só se tornou federal em 2012. Dois anos antes, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, mais de 120 anos após a abolição. São normas que causaram e ainda causam impactos históricos, mas continuam esbarrando no racismo estrutural, consolidado e reforçado no Brasil, mesmo após a proibição da escravidão.

A advogada Thays Carvalho ressalta que o racismo até hoje dinamiza as estruturas de dominação e tem peso importante no valor da força de trabalho no Brasil. “De um lado, naturaliza que uma parte da classe trabalhadora tem que viver precarizada e sem direitos e de outro tendo esse contingente de reserva imensa pressiona pelo rebaixamento dos salários da classe trabalhadora com um todo. A precarização do trabalho é estrutural do capitalismo dependente brasileiro e o racismo contribui para essa determinação.”

O pesquisador Bruno Lima é responsável por organizar as obras completas de Luiz Gama, advogado abolicionista negro, que viveu entre 1830 e 1882. Considerado o Patrono da Abolição, ele foi escravizado, aprendeu a ler aos 17 anos, exerceu o direito e conseguiu judicialmente a própria liberdade, assim como a de centenas de outras pessoas.

No apagamento da figura de Luiz Gama, que só agora começa a se tornar um personagem histórico mais conhecido, o pesquisador enxerga um exemplo que de como o racismo atuou nos anos seguintes à abolição.

“Umas das coisas que a elite dirigente brasileira fez nessa transição do regime escravista para um regime de liberdade formal, vamos chamar assim, foi soterrar a obra de Luiz Gama. Era um incômodo e eles, de caso muito pensado – podemos pensar assim se entendemos bem o Brasil – resolveram que Gama não poderia ser lido pela geração seguinte. O discurso abolicionista radical não passou para a geração seguinte, que dirá para as próximas. A obra do Luiz gama não foi só silenciada ou apagada, ela foi enterrada e salgaram a terra.”

Thays Carvalho ressalta que a violência contra a população negra não é isolada no Brasil, mas sim um elemento estrutural. “O racismo brasileiro age construindo uma universalidade que invisibiliza a contribuição negra na cultura e na identidade nacional baseado no mito da democracia racial. E por fim, as classes dominantes agem sistematicamente para atualizar esses mecanismos que impedem uma mobilidade social massiva. Por isso a reação da burguesia às cotas, as ações afirmativas de modo geral.”

Edição: Rodrigo Durão Coelho

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.