Enquanto houver BBB, não haverá mais nada

Foto: Divulgação – TV Globo

Por João Marcos Duarte

“Enquanto as pessoas estão vendo BBB, o Paulo Guedes está vendendo o BB”.
Resposta: “Paulo Guedes, desista, estou vendo Nouvelle Vague”.

Os tweets na epígrafe acima foram transcritos aqui com pequenas alterações para preservar a identidade dos que fizeram a proeza de postá-los. De um lado e de outro, o tom característico de nossa época dando mais uma vez e sempre o tom do debate. Ou o Big Brother Brasilreality show de maior sucesso no Brasil – que, para início de conversa, segundo uma de suas maiores estudiosas, curiosamente, hoje em dia em pouquíssimos lugares do mundo faz tanto sucesso quanto aqui – é um enlatado de entretenimento barato que funciona como uma cortina de fumaça para a realidade atroz do nosso país, ou a máxima de que o BBB é entretenimento mesmo, que levanta discussões interessantes e que, se você não gosta, “não encha o saco”. As duas assertivas dentro do senso comum paralisante.

Apesar de paralisante, por incrível que pareça, a afirmação que tem maior conteúdo de verdade é a do segundo tweet (que depois é deturpado pelo comodismo adesista daqueles que ficarão fomentando durante dois ou três meses a casa mais vigiada do Brasil, como se fosse algo mais do que isso, além de ser um jogo dirigido por uma das pessoas mais asquerosas desse país). Porque é isso mesmo: o BBB é um reality show, um produto a ser comercializado, vendido e consumido. E agora com a vibe da gourmetizacão,1 não temos só os produtos padrões, temos para todos os gostos, obviamente, a depender da temporada (segredo: se colocar tudo de uma vez, não sobra nada para a próxima e corre-se o risco de perder audiência, portanto, patrocínio, portanto, dinheiro, portanto, o dinheiro que paga todas as outras despesas da emissora ao longo do ano – mais uma vez o cinismo tem seu conteúdo de verdade: Tiago Leifert está redondamente correto ao afirmar que é o dinheiro arrecadado pelo BBB que paga todos os elencos de produtos de teledramaturgia da Rede Globo; ele sabe do que fala): variação de peso, altura, profissão, gênero, cor da pele, tipo de cabelo, rosto, partes íntimas, opinião política, sexualidade, ancestralidade, religião, status, notoriedade e todo o resto. Uma coisa, todavia, nunca muda: o paradigma da guerra de todos contra todos, no qual todos são o alvo e todos menos um serão cravejados por milhões de balas virtuais naquele que é o brinquedinho favorito dos fascistas contra seus inimigos – o paredão. Vai ficando cada vez mais claro o porquê da palavra (em seu significado real, não só no campo do signo linguístico) “genocídio” surtir cada vez menos efeito: uma vez por ano, durante três meses, semanalmente a maior expectativa é por descobrir quem será eliminado (de preferência aquele que quero ver sofrer ao sair da casa), essa a cereja do bolo do linchamento sofrido até a pá de cal que é o “adeus” ao confinamento.

Pegando carona na “Indústria Cultural” de Adorno e Horkheimer (mas não só), Silvia Viana em Rituais de sofrimento, uma das obras mais importantes para entender o Brasil e o mundo no século XXI, aprofunda-se no mundo dos reality shows e vai direto ao ponto do motivo pelo qual esse produto é tão cobiçado, dá tanto lucro, é tão visto e gera um fenômeno à sua volta: ele é uma reposição do mundo trabalho, tanto do ponto de vista dos que estão confinados quanto do público que está assistindo. Parêntese: às vezes passa despercebido, a análise da Indústria Cultural feita pela dupla alemã gira em torno dos dois polos do Ocidente (como não poderia deixar de ser), quais sejam, a propaganda nazifascista e Hollywood.

Por que reality show? Por que agora? Porque o mundo mudou. Nos anos dourados do pós-guerra, todo mundo achava que tudo ia dar certo, e estava dando. Por isso, fazia sentido uma comédia romântica água com açúcar ou um filme detetive no qual tudo acaba bem. Eram produtos de grande valia as sitcoms ou outros programas nos quais mesmo com peripécias ou intempéries, todos poderíamos ter uma boa noite de sono. Ainda valiam os filmes de terror nos quais os polos do bem e do mal fossem bem definidos. Hoje em dia as coisas mudaram. O relógio do fim do mundo está quase batendo meia noite e vivemos a sensação de que cada dia pode ser o último – alguns usam isso para ganhar dinheiro, outros para comprar os vários produtos oferecidos por essa indústria da emergência, desde bugigangas a psicoativos. O modo de produção social no qual vivemos se reestruturou e hoje em dia o espaço é cada dia menor. Todos sabemos disso. Não há alternativa. É só aí que faz sentido nascer e florescer o produto reality show.

“O inferno do mundo do trabalho contemporâneo” (VIANA, 2013, p. 31) é o que vemos e vivemos no BBB, pra ser mais exato: a competição e concorrência incessantes pelas migalhas que serão dispersas ao longo do programa e a vitória para o único que sobrar; agora a vitória não é pelo que o vencedor construiu, mas pelo que os outros fizeram de errado para serem eliminados; o que fizeram de errado os outros, bem como o que de certo fez o vencedor, ninguém sabe, só os que têm o poder de decidir quem sai e quem fica; “lute e vença a qualquer custo”, mesmo que pra isso você tenha que fingir gozar (ou não); a sensação de que a todo o momento estamos a um segundo do fim (o paredão só acontece uma vez por semana, mas o programa gira em torno dele); onde todo tempo é tempo de produzir (seja uma fofoca ou um networking); a necessidade constante de autovalorização (não se sabe nem pra quem nem o que se deve fazer) travestida de honestidade, idoneidade, autenticidade e qualquer outra coisa que o valha; o trabalho constante e ininterrupto sem nenhuma recompensa a título de construir o que no futuro (“com sorte”, esse final muitos esquecem de avisar) se irá desfrutar; a proatividade é tudo!; a capacidade de “aguentar a pressão”, pois é uma questão de sobrevivência; o jogo constante de seleção para a eliminação; onde (dentro dos limites colocados) se pode tudo (inclusive chorar e arrancar os cabelos pedindo pra sair) menos uma coisa: desistir. Isso vale para quem está sendo filmado e para quem está assistindo, “a voz de comando que ecoa de ambos os lados da tela é uma só e há um mesmo padrão de respostas, de ambos os lados da tela” (VIANA, 2013, p. 33). Que voz? A da empresa contemporânea com seus três jargões máximos: “confinamento, vigilância e eliminação” (VIANA, 2013, p. 87).

Do lado de dentro da tela já pontuamos o dia a dia da rotina de sofrimento que é a resposta de cada participante à abertura do programa: “o que você faria?” e “tem que ir até o final se quiser vencer”. E do lado de cá? Temos os “experts, esses juízes e executores do destino” (VIANA, 2013, p. 99) que estão tão confinados quanto os confinados, só que na vida vivida 24 horas por dia, sete dias por semana, e não só durante dois meses. E como se expressa sua adesão ao mundo vigente em termos de reality show? Através de seu colaboracionismo zeloso que executa o trabalho sujo da eliminação. Semana após semana se é impelido a fazer um trabalho de investigação profundo e imparcial de todos os atos de todos os jogadores para escolher quem será o infeliz que não cumpriu todos os critérios necessários para continuar confinado, seja nos bons ou nos maus quartos, bebendo à vontade, fazendo nada (se valorizando sempre, seja com fofoca ou networking). Isso, é claro, quando não se faz parte do fã-clube de um ou mais participantes – aí não importa o que aconteça, se eliminará aquele ou aquela se contrapõe ao “favorito”. Geralmente a segunda opção é a que faz a cabeça de 98% dos espectadores. Seja qual for a alternativa, ao serem perguntados, todas as justificativas mais razoáveis e com encadeamento dos argumentos são colocados na mesa. Se mesmo assim, nenhuma delas for suficiente: “não enche o saco, é entretenimento!”. Realmente, todos sabem o que estão fazendo. E fazem mesmo assim! Tanto para o reality show como para a vida real (vivida no reality show). Como bem observa Silvia Viana, porém, “todo distanciamento subjetivo diante da prática” – e aqui poderíamos colocar, a criação de memes, as falas lúcidas e os critérios para as decisões de eliminação, o aviso aos amigos nas redes sociais de que “aqui temos um fã de BBB e se você não é, vaza”, as assertivas dentro e fora da casa de que tudo não passa de um jogo –, “longe de enfraquecer o ritual [de sofrimento]” – seja ele a vida real ou o reality –, reforça-o. Não é o “jogo” que perde seu sentido, muito pelo contrário: é a crítica que se torna obsoleta. Essa crítica crítica, dos jogadores que sabem que jogam (dentro e fora da casa), “cumpre um novo papel, o avesso daquele pensado por Marx: trata-se de um reforço à maior ilusão de nossa sociedade, a ilusão segundo a qual por aqui ninguém mais é bobo” (VIANA, 2013, p. 27).

Em outras palavras, da mesma autora, os jogadores todos (confinados na casa ou no mundo sem alternativa, eliminando os que estão confinados na casa) são aqueles “que choram sobre o leite derramado e que, do mesmo modo, assumem a lei da gravidade” que os levou ao chão (VIANA, 2013, p. 49). De qualquer forma, uma impossibilidade de oposição à ordem vigente. O que se pode, no máximo e com muito custo (e não reclame porque não há tempo para pensar em outra coisa) é ajeitar o modo como as coisas estão caminhando para ficar menos difícil para o maior número de pessoas pelo maior tempo possível, mesmo que se saiba que se tem cada vez menos tempo. Do ponto de vista ideológico, o que nos sobra? A adesão via cinismo viril.2 Do ponto de vista do programa? Visibilidade e representatividade. E aí retornamos às linhas acima sobre o infernal mundo contemporâneo do trabalho.

Seja um confinado, seja um espectador, em seu colaboracionismo zeloso, a marca do trabalho contemporâneo desde os campos de concentração nazi, são todos “amparados pela justificação da necessidade” (VIANA, 2013, p. 165). Necessidade de que? Mais uma vez, de cumprir com as regras do jogo contemporâneo do inferno em que vivemos, regras essas reprisadas no Big Brother Brasil. Tudo pode ser feito, desde que chancelado por quem tem os direitos de produção do programa em questão. É essa camarilha de técnicos que decide tudo o que pode e o que não pode ser feito, seguindo apenas três axiomas: participação, eliminação, provas. O resto é decidido pela cúpula liderada por uma das mais infames figuras de que nosso país já teve notícia.

Uma última coisa a ser dita. Em um dos trechos menos comentados do ensaio sobre a Indústria Cultural, Adorno pontua que ela mesma realiza o que promete, realizando um eterno retorno do mesmo. Em si mesma (o ápice do em-si-e-para-si da razão instrumental investigada pelos ensaios da Dialética do Esclarecimento). Nas palavras exatas, “tanto o escape quanto o elopement estão de antemão destinados a reconduzir ao ponto de partida” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.117). Vamos à prova: Com o atual recrudescimento de opiniões, pensamentos, filosofias etc., e o número cada vez maior de factóides produzidos pelo programa – que não passam de jargões que também têm o fim em si mesmo, qual seja, o da lacração –  a Indústria Cultural (hoje em dia com o apoio das redes sociais, que podem ser lidas como um primo próximo dos reality show) age de duas maneiras. A primeira é com suas cenas de repreensão, de perdão, de contenda, discórdia, de “textão” do apresentador e estratagemas que tais. Não deu certo? A pessoa não aprendeu ou já foi rifada dentro e fora da casa? Eliminação. Aquela pessoa deixou de existir. É finito o mal que afetava o mundo. Envolvendo as duas soluções, uma enxurrada de memes, trechos de filmagens, textões, threads no Twitter, carroceis no Instagram com mensagens científicas, tratados de moral e tudo o mais; isso sem contar os que aderem à retorica do “é só um jogo e entretenimento” de tal maneira que só querem ver o circo pegar fogo e dar risada (talvez os mais honestos). Depois dessa dessublimação repressiva (para citar Marcuse)? A próxima eliminação.

Notas
1 Além dessa ligeira diferença em relação às primeiras edições, podemos colocar mais uma: com as redes sociais, mais pessoas ficam por mais tempo sendo conhecidas (como ex-bbb, sempre) e podem ganhar dinheiro por mais tempo. De uns tempos pra cá foi criada até uma nova carreira: a de “realiter”, aquele que vive de reality shows. Um figurão da edição passada (2021) do reality que estamos reprisando participou de três desses programas em um só ano.
2 As adesões são de diferentes matizes, todas elas cabem. A ver pela última boutade do lado dos participantes (escrevo em janeiro de 2022) já no início do programa – mesmo que se silencie temporariamente todos os seus amigos que comentam o famigerado reality show, sempre sobra um –, conseguiram transformar escravização em meritocracia. A respeito da fantasia racialista e colonial que está por trás desse essencialismo (tanto à direita quanto à esquerda) que é usado de várias maneiras e (quase todas elas) para afirmar a ordem, conferir, entre outros: BARROS, Douglas Rodrigues. Lugar de preto, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial. São Paulo: Hedra, 2019.

Referências bibliográficas
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
VIANA, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013.

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