Encontro judaico internacional histórico em Paris

Textos publicados no jornal francês Informações Operárias, nº 802 em 4 de abril de 2024.

No sábado, 30 de março, um grande encontro internacional de judeus contra a guerra colonial na Palestina, contra o antissemitismo e contra a repressão foi realizado na sede do POI, Partido Operário Independente, em Paris. O evento foi organizado pela Tsedek! (um coletivo judaico pró-descolonização criado em 2023 para lutar contra o racismo de estado na França e pelo fim do apartheid/ocupação em Israel-Palestina) e pela UJFP (União Judaica pela Paz), e reuniu cerca de 25 palestrantes de diferentes organizações da França e do mundo, em torno de quatro painéis, com várias centenas de participantes. O encontro, qualificado como “histórico” por muitos oradores, lotou o auditório.

Há uma efervescência na grande sala da sede do POI desde o início da primeira mesa, sobre o tema “A guerra genocida e a descolonização da Palestina”. Os organizadores abriram a reunião agradecendo ao POI e a seus membros por recebê-los em suas instalações e lembraram o papel de suas associações no “combate ao racismo em todas as suas formas”, destacando a importância da resistência e de “reatar com nosso passado revolucionário”.

Haïm Bresheeth-Zabner, membro da Rede Judaica para a Palestina na Inglaterra, saúda o que está acontecendo naquele momento em Londres: “a manifestação mais importante que já ocorreu em prol da Palestina”. Para ele, essa reunião é “o primeiro evento desse tipo e não será o último”. Como vários dos oradores, Haïm Bresheeth-Zabner fala sobre o papel dos governos ocidentais no apoio a Israel desde 1948, da barbárie do genocídio e do fato de o judaísmo ter sido “usurpado pelo sionismo: o coração humanista do judaísmo foi substituído pela visão bárbara sionista”. Ele insiste na necessidade de resistência política para “retornar à época em que os judeus trabalhavam juntos para mudar as coisas com forças progressistas, de recriar uma aliança internacional para derrotar o regime sionista”.

Na mesma mesa, Rima Hassan, jurista especializada em direito internacional e candidata na lista da LFI para as eleições europeias, foi ovacionada já na sua apresentação. Muito emocionada, ela relembra sua história, quando nasceu e cresceu em um campo de refugiados, com um pensamento para seus avós “que não viram o que estamos construindo aqui”. Ela insiste que a Nakba é “o único contexto no qual é possível compreender a questão palestina, pois não se trata apenas de um evento histórico, ele aponta ao que é realidade palestina, com 800 mil palestinos de uma população de 1,4 milhão expulsos de suas terras, 532 cidades arrasadas”. Na França, o tema da Palestina é sempre tratado sem considerar essa Nakba. “Eu nasci em meio à raiva, como refugiada. Comemoramos a Nakba todos os dias, pois se não mantivermos esse vínculo, poderemos desaparecer em nós mesmos”. Ela ressalta o caráter “político” desse acontecimento, pois a população de Gaza “é composta por 85% de refugiados”.

Após as intervenções de Ethan Bronstein Aparicio, do movimento De-Colonizer da Bélgica, e de Orly Noy, jornalista e militante da Inglaterra, Michèle Sibony, uma das organizadoras do encontro e membro da União Judaica pela Paz, concluiu esse primeiro painel de discussão refletindo sobre o “Impasse do colonialismo”. “Estamos publicamente associados aos crimes na Palestina. A França e Israel falam em nosso nome. A manifestação de 12 de novembro em Paris reintegrou o RN (Rassemblement National, de Le Pen) sob o pretexto do antissemitismo. Todos da extrema direita europeia foram encontrar Netanyahu”.

Na mesa seguinte, sobre o tema “Reinventar nossas diásporas”, Simon Assoun, organizador do encontro e membro da Tsedek!, também muito aplaudido, lembra que é preciso romper com as estruturas de opressão, “romper com o Estado de Israel, com a vergonha do exílio em que se baseia o sionismo”. Uma ruptura, e depois? “Muitos horizontes serão abertos: a reapropriação do nosso judaísmo, a saída de muitos judeus do isolamento; não temos outra coisa a propor além da luta revolucionária emancipatória, viva a luta do povo palestino!”.

Também estiveram presentes militantes e líderes de organizações como a N’mod, da Grã-Bretanha, a Judishe Stimme für Geretchen Frieden, da Alemanha, e o cineastas como Eyal Sivan.

Esse encontro também é uma oportunidade para muitos militantes trocarem ideias e se conhecerem, no pátio ou ao redor das mesas que oferecem uma grande variedade de livros e documentos. Todos sentiram a importância estar presente, de se reagrupar e reunir todas essas organizações.

A última mesa, intitulada “Unir forças contra a repressão e a virada autoritária na França”, reuniu parlamentares da LFI, militantes do QG Décolonial, uma militante do NPA, um militante da Boussole Palestine, uma estudante da universidade Sciences Po Paris e o filósofo Frédéric Lordon.

Yessa Belkhodja, da QG Décolonial, chama a participar da marcha contra o racismo e a islamofobia e pela proteção de todas as crianças no domingo, 21 de abril, em Paris: “uma marcha portadora de esperança”. Ela relembra o último ataque a um jovem pela polícia em Villiers-le-Bel, há alguns dias, e, de modo mais geral, a repressão aos jovens. “Na Palestina, nossos filhos são silenciados, com o medo de que, se falarem sobre o assunto, serão tachados de apologistas do terrorismo”.

No centro, Jérôme Legavre e Thomas Portes deputados da LFI, durante a reunião.

Uma estudante da universidade Sciences Po que estava presente concorda: “Quando falamos sobre a Palestina na França, nunca falamos realmente sobre a Palestina”. Ela fez parte de um grupo de estudantes que organizou uma manifestação em favor da Palestina na faculdade de Sciences Po em 12 de março, uma reunião que sofreu um ataque de ódio e mentiras por parte da mídia: “Queríamos ocupar um auditório para fazer o que a Sciences Po não estava fazendo: denunciar o genocídio em Gaza e pedir um cessar-fogo, que é o mínimo para uma universidade”. “Há resistência de companheiros em todos os lugares, no Canadá, em Israel. O mínimo que podemos fazer nas universidades francesas é lutar apesar da repressão”.

A militante pró descolonização Houria Boutheldja leu uma declaração conjunta de sua organização: “Fazer um bloco contra os sionistas de esquerda”. Ela citou várias organizações, como o coletivo Golem “cujo primeiro ato foi criticar a LFI por não participar da marcha de 12 de novembro, ou seja, os antirracistas deveriam se juntar a uma manifestação racista! Ela conclamou todos os militantes presentes a participarem da marcha de 21 de abril “contra o racismo, a islamofobia e pela proteção de todas as crianças (…) porque é no meio pró-palestino que os judeus estão mais seguros”.

Jérôme Legavre, deputado da LFI e membro do POI, saudou “o fato de o POI ter disponibilizado suas instalações para essa reunião” e saudou “a coragem de fazer o que vocês estão fazendo nessa atmosfera irrespirável que alguns estão impondo ao país”. Retornando após ter participado da manifestação pelo cessar-fogo em Paris naquela tarde, ele falou sobre a natureza autoritária e repressiva de Macron e seu governo, “que divide e coloca as pessoas umas contra as outras”, e disse que estava “muito orgulhoso de pertencer à única força política que, desde 7 de outubro, disse “Cessar-fogo, todas as vidas são iguais”, sob aplausos da sala. “Para nós, é uma necessidade imperiosa continuar a dizer cessar-fogo total e permanente”. O parlamentar da LFI Thomas Portes falou sobre o papel dos governos que “apoiam Israel, que apoiam o capitalismo e, em particular, o capitalismo israelense, com o comércio de armas. O governo francês não tomou nenhuma decisão para impedir o genocídio. A mobilização pode abrir caminho para mudar esta situação”.

Tamara Rossi 

A mesa redonda sobre Colonizados, colonizadores. guerra genocida e descolonização da Palestina. Orly Noy, TERCEIRA a partir da esquerda.

Orly Noy: “O genocídio em Gaza não tem nada a ver com proteção dos israelenses contra o Hamas, nem com libertação de reféns”.

Entrevista exclusiva com a jornalista israelense, que participou do encontro judaico internacional

Durante o encontro judaico internacional, conhecemos e entrevistamos Orly Noy, jornalista, editora e escritora da Local Call e da 972 Magazine, um site em hebraico. Ela também é presidenta do B’Tselem, o centro de informações israelense sobre direitos humanos nos territórios ocupados. Orly Noy, que vive em Jerusalém, fala em caráter pessoal.

Acho que estamos vivendo o momento mais sombrio, até onde qualquer um de nós pode se lembrar, dada a escala da violência, a perda total de qualquer limite moral por parte de Israel e o apoio de quase todo o público judeu israelense ao genocídio que está ocorrendo hoje em Gaza. Nenhum de nós pode compreender a dimensão da catástrofe que está ocorrendo em Gaza. Quando vemos o apoio do público judeu israelense, eu realmente me pergunto como conseguiremos nos reabilitar como um coletivo humano. Isso seria compreensível imediatamente após o horrível crime de 7 de outubro. Estávamos todos em choque. Mas o fato é que o genocídio que está ocorrendo hoje não tem nada a ver com proteger os israelenses do Hamas ou libertar os reféns. É apenas um massacre de vingança. O fato de que estamos matando de fome 2 milhões de pessoas hoje, de que as crianças em Gaza estejam morrendo de fome… Como podemos viver com nós mesmos quando isso está acontecendo a apenas alguns quilômetros de nossas casas, em nosso nome, por nosso governo?

Como sabem, o deslocamento dos palestinos tem sido um projeto israelense desde 1948. Começou com a Nakba, que foi uma campanha maciça de expulsão dos palestinos de suas terras. E continua. Hoje, enquanto estamos aqui sentados, os palestinos comemoram o Dia da Terra, que é outro aspecto dessa guerra contra os palestinos em toda a Palestina histórica por meio da expulsão e da expropriação de terras. Na Cisjordânia, a limpeza étnica atinge níveis inimagináveis, com dezenas de comunidades palestinas tendo de deixar suas terras por causa da violência dos colonos e do exército. Sem dúvida, esse é outro aspecto dessa ilusão israelense de que encontraremos uma maneira de fazer milhões de palestinos desaparecerem, porque Israel nunca conseguiu administrar a existência de outro povo, de outra nação nesta terra. Ele nunca aceitou essa realidade. Israel sempre teve a ilusão de que, de alguma forma, conseguiríamos fazê-los desaparecer. Agora, Israel encontrou a oportunidade ideal para fazer isso em Gaza.

Tem sido muito, muito difícil por muitos anos. Isso não é novidade. Veja como Israel aterrorizou toda a resistência democrática palestina não violenta na Cisjordânia, a marcha do retorno em Gaza, que foi uma marcha pacífica, e como Israel reagiu a isso. Veja como Israel reage aos seus próprios cidadãos palestinos. Todas essas políticas se tornaram muito mais severas depois de 7 de outubro. E acho que se deve dar atenção especial à forma como Israel trata seus próprios cidadãos palestinos, porque quando falamos de apartheid, Israel sempre diz: “Que apartheid? Os palestinos israelenses são cidadãos plenos com direitos iguais”. Isso está longe de ser verdade e, desde 7 de outubro, os cidadãos palestinos têm sido alvo de extrema perseguição política, incluindo prisões de líderes políticos e cidadãos palestinos, prisões de membros do alto comitê de monitoramento e prisões de ex-membros do Knesset. Centenas de cidadãos palestinos foram presos por expressarem qualquer solidariedade ao povo de Gaza, e centenas de estudantes palestinos foram expulsos das universidades israelenses.

Sim. Deixe-me mostrar-lhe uma foto da minha filha, presa e algemada ontem, apenas por participar de uma manifestação contra a guerra. Eles são incrivelmente brutais com qualquer pessoa.

Não contra os judeus. Essa é outra escalada. É um estado supremacista judeu, então os judeus são mais protegidos.  Sempre fomos, e ainda somos, mais protegidos do que os palestinos. Mas agora, os judeus que se recusam a permanecer em silêncio enquanto o genocídio está ocorrendo, e que denunciam esse genocídio, também estão sujeitos a prisão e perseguição.

Sim, e cinco ou seis pessoas foram presas. Ela era uma delas.

A B’Tselem é uma das únicas organizações em que palestinos de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental trabalham juntos, lado a lado, há muitos anos, com judeus israelenses. Após o dia 7 de outubro, tornou-se incrivelmente difícil, simplesmente manter um ambiente seguro para que todos pudéssemos continuar juntos.  Então, é claro, tivemos algumas conversas internas muito difíceis. Mas onde outros israelenses e palestinos se encontraram para ter essas conversas?  Tenho muito orgulho da B’Tselem e dos trabalhadores da B’Tselem que conseguem continuar a trabalhar juntos pelos valores em que acreditamos, que são igualdade para todos, direitos humanos plenos para todos, fim da ocupação, fim do apartheid, fim da opressão. Continuamos a apoiar claramente todos esses valores. Isso não mudou desde 7 de outubro.

Em primeiro lugar, estou muito feliz por ela estar acontecendo, pois sei que no clima atual da França não é fácil organizar uma conferência como essa. Vocês sabem, quando entrei, havia manifestantes sionistas do lado de fora, conversei com uma delas e o que mais me impressionou foi o nível de ignorância. Ela simplesmente não tinha ideia do que está acontecendo em Gaza, o que está acontecendo na Cisjordânia, qual é a situação dos palestinos em Gaza e na Cisjordânia. Um nível de ignorância assustador. Então, eu espero que o resultado dessa conferência seja, em primeiro lugar, lutar contra essa ignorância para que as pessoas simplesmente conheçam os fatos. Isso é muito importante. Estamos na era das notícias falsas e é muito fácil manipular a mente das pessoas quando elas não têm informações suficientes. A primeira coisa que espero que esta conferência consiga, é que mais pessoas tenham informações confiáveis sobre o que está acontecendo e qual é a realidade em Gaza, para que possam tomar uma decisão esclarecida, sem depender de propaganda como a que está acontecendo no exterior.

Longe disso. Porque desde o primeiro dia da guerra, a mídia israelense se tornou como que outro ramo do governo, para não dizer do próprio exército. Os israelenses, se não consumirem outras mídias, como a Al Jazeera, por exemplo, não têm ideia. Pelo que sabem apenas da mídia israelense, eles não têm ideia. A mídia israelense não mostra o que está acontecendo, não mostra a catástrofe humanitária. Os israelenses não acreditam que haja fome de verdade em Gaza hoje. Eles negam completamente, porque é isso que a mídia israelense diz a eles.

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