Há cerca de duas semanas, a norte-americana Elisa Larkin Nascimento, 64, desembarcou em Salvador. Chegou à capital baiana para participar de atividades do Fórum Social Mundial, realizado entre 13 e 17 de março, sobre temáticas étnico-raciais e o legado do professor, jornalista, artista plástico, ativista e ex-senador da República Abdias Nascimento (foto) (1914-2011), com quem foi casada durante mais de três décadas. Na ocasião, houve o lançamento da nova edição do livro O Genocídio do Povo Negro (Ed. Perspectiva), de Abdias (foto), lançado originalmente em 1977, referência dos estudos raciais no país. Elisa escreveu o posfácio desta edição, intitulado O Genocídio no Terceiro Milênio. Formada em ciências sociais e com doutorado em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela Universidade de São Paulo, ela atualmente é diretora-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), localizado no Rio de Janeiro, e permanece ativa na militância. Ainda abalada com o assassinato, no dia 14, da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), Elisa concedeu entrevista a Muito e falou da situação da população negra no país, dos avanços e retrocessos, de violência e racismo, da relação de Abdias com a Bahia e do contexto político atual. Também não deixou de comentar a discussão que teve, no final do ano passado, com o antropólogo baiano Antonio Risério sobre os conceitos de raça e miscigenação.
Por Daniel Oliveira, do A Tarde
A luta pela igualdade étnico-racial tem ganhado força e visibilidade no Brasil nos últimos anos. Tal fato vem acompanhado de conquistas, como leis (nº 10.639, cotas) e espaços de empoderamento. Por outro lado, ainda há um intenso extermínio da população negra, sobretudo da juventude. Na sua opinião, quais são os principais avanços e limites da luta étnico-racial?
A voz do movimento negro tem se feito ouvir e tem havido resultados em políticas públicas, legislação. Entretanto, os limites dessa legislação estão certamente embutidos na sua própria implementação. Com relação à Lei 10.639 (inclusão obrigatória no currículo oficial da temática história e cultura afro-brasileira e indígena), nós temos o seguinte quadro: ao mesmo tempo que existem iniciativas de educadores, elas têm sido muito limitadas, pois, em geral, se resumem a atividades no dia 13 de maio ou no dia 20 de novembro. Ou seja, não tem sido sistemático, institucional. Não é integrado na grade curricular. Isso tem a ver com o fato de que muitos interpretam a lei considerando que ela diz respeito apenas ao ensino fundamental. E, antes, é necessário formar os educadores. A universidade é o locus onde essa política precisa ter primazia. Quanto às cotas, nos deparamos com outra situação. As leis foram bem estruturadas e cuidadas, mas agora temos um quadro de fraude, que se baseia na mesma manutenção de privilégios da elite branca que mantém a sua atitude de poder de definição sobre quem pode e quem não pode.
A violência contra a população negra continua sendo um problema grave no Brasil. Dados do Mapa da Violência, divulgados em 2016, apontam que na Bahia, em 2014, morreram 3.999 pessoas negras e 289 brancas, vítimas de homicídio. Ontem ocorreu o caso da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, uma mulher negra assassinada. O que é necessário ser feito para mudar isso?
Uma revisão da política de segurança que atualmente coloca na mão dos agentes policiais esse mesmo poder do qual falava. E o poder também de atuação clandestina, praticamente sem questionamentos. Os Amarildos desaparecidos, as Claudias que são arrastadas pelas ruas. Grande parte dessa violência pode ser atribuída, sem dúvida, à abordagem policial nas comunidades faveladas. E muitos desses assassinatos nem estão nas estatísticas, exatamente pelo poder da polícia de atuar clandestinamente. O caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes, ocorre no momento em que ela iria assumir uma comissão que acompanharia a violência perpetrada na ocupação militar do Rio de Janeiro e denunciava esse fenômeno na favela de Acari. Essa dimensão racial precisa ser vista de uma forma direta. Há a necessidade de sensibilizar a sociedade civil brasileira no sentido de desmontar a fonte de insensibilidade em relação a essas mortes, que é fundamentada pela ideologia que prevalece até hoje e faz com que as pessoas acreditem piamente que no Brasil não existe racismo porque temos a mestiçagem.
No final do ano passado, a senhora escreveu um texto que foi publicado no jornal Folha de S.Paulo em resposta ao antropólogo Antonio Risério. Na ocasião, ele criticou o movimento negro contemporâneo e acusou Abdias Nascimento de preconceituoso por conta das críticas à miscigenação. Como pensa as discussões sobre raça e miscigenação hoje no país?
Infelizmente, prevalece o ponto de vista externado pelo Antonio Risério. E isso é um dos maiores fatores da insensibilidade que existe em relação a essa matança. As pessoas têm a ideia que não existe racismo no Brasil, porque existe miscigenação. Essa convicção é tão enraizada que faz com que não haja uma sensibilidade para o aspecto racista desse genocídio. É irônico o fato de que os intelectuais que adotam essas posições, ao mesmo tempo que dizem que não existe raça – e cientificamente essa categoria já foi desmentida –, atribuem ao fenômeno raça uma conotação genética. Adoram apontar por análises genéticas e dizer que o Pelé ou o Neguinho da Beija Flor têm uma porcentagem de ascendência europeia. Quando vemos a fraude nas cotas, percebemos precisamente que esse raciocínio é aplicado. A questão que o movimento social identifica como racismo não é baseada na genética, na ascendência geracional. É baseada no fenótipo socialmente interpretado.
O movimento negro já passou por fases variadas. Hoje as manifestações atravessam mais fortemente outros temas identitários. De que maneira a luta antirracista está articulada com essas outras dimensões?
Quando Abdias volta do exílio, em 1978, é capa do jornal Lampião da Esquina, do movimento homossexual daquela época. Não tinha o nome atual. Essa aliança já existia de forma orgânica e estava embutida, nessa época. O que me parece que acontece hoje é que temos uma pluralidade de vozes. Com o avanço das redes sociais, nós temos uma maior proliferação de vozes com suas alianças. E há uma questão em comum que aconteceu com o movimento feminista e outros movimento de defesa dos direitos civis. Aqueles que defendiam a luta de classes diziam que a questão racial era menor ou complementar a esse que seria o ponto mais importante de luta. É importante ainda hoje realçar a necessidade de os outros setores entenderem a complexidade do racismo da sociedade brasileira.
Como foi a sua inserção, como mulher branca, em espaços do movimento negro?
Antes de conhecer o Abdias, como norte-americana, eu tinha um engajamento no movimento contra a Guerra do Vietnã e fazia muita discussão com a esquerda marxista que não enxergava a importância da questão colonial. Depois, na luta contra o apartheid, fazia pesquisas sobre o investimento da universidade, da qual eu era estudante, na África do Sul e me deparava com os mesmos marxistas que achavam que a questão racial era subordinada às questões de classe. E depois fiquei impactada, de maneira muito forte, com um massacre na repressão de uma rebelião numa penitenciária do Estado de Nova York, perto de minha cidade natal, Buffalo. Quarenta e duas pessoas assassinadas e todas as mortes foram atribuídas aos presos negros, indígenas e latinos. Então, me engajei na defesa jurídica e política desses acusados. E novamente a gente se deparou com os advogados, esquerdistas brancos. Não conseguia entender como não enxergar as questões racial e colonial como estruturantes. Via o impacto disso sobre essas populações.
Atualmente, o lugar de fala é muito reivindicado pelos movimentos sociais, enquanto alguém reconhecido por ter mais conhecimento de causa e propriedade para falar sobre um assunto, o que sempre existiu, mas não de maneira tão direta e explícita. Qual a função que o lugar de fala cumpre no movimento negro contemporâneo?
Interpreto essa questão de lugar de fala como uma nova forma de elaborar o conceito de centralidade, que vem com a teoria da afrocentricidade. Os intelectuais do próprio Teatro Experimental do Negro diziam que a melhor maneira para se entender a questão do negro é a sua própria perspectiva de negro. O lugar de fala, portanto, é o direito de fala daquele que tem a experiência daquilo que está falando. Cumpre então a função de resguardar o protagonismo, a atuação daqueles que são sujeitos da questão abordada. Na tradição do racismo brasileiro, uma das coisas que prevaleceram, um dos seus marcos, é a apropriação do lugar de fala. É o intelectual branco que assume a autoridade de falar em nome daquela população e se apropria do poder de definição. Essa é uma das dimensões mais nefastas e efetivas do domínio racial.
A senhora escreveu a biografia de Abdias Nascimento, parte da série Grandes Vultos do Senado. Como alguns autores já disseram, fazer uma autobiografia é um desafio difícil, complexo, quase sempre doloroso. No seu caso, a vida narrada é a do seu próprio marido. Como foi essa experiência?
Foi mobilizador e gratificante, no sentido de que, como diretora do Ipeafro, que guarda o acervo documental e museológico do Abdias, tive a oportunidade e recursos para documentar e registrar. Isso a partir do próprio mérito dele, que tinha a política de guardar e registrar as coisas. Tive um privilégio enorme de conviver com ele de uma forma muito próxima durante um período de sua vida. E escrever era quase como viver uma época que não pude presenciar. Soube, através dele, de tantas personalidades, de fatos históricos, em uma intimidade que é diferente de um livro de história. E isso sempre foi fonte de grande prazer.
E como era a ligação afetiva de Abdias Nascimento com a Bahia?
Ele adorava a Bahia. Recebeu o título de Cidadão Baiano e Soteropolitano, além de diversos prêmios. Isso tudo foi fonte de grande alegria. Abdias tinha uma ligação forte com mestre Didi, filho de mãe Senhora. Frequentava a casa, era amigo dos dois. Também era muito ligado ao terreiro da Casa Branca. Não chegou a ser iniciado no candomblé, inclusive por conselho da própria mãe Senhora. Ele, jovem, com aquela ansiedade e ela disse: “Meu filho, você tem uma missão a cumprir, não do lado de dentro, mas do lado de fora”. E ele cumpriu essa missão. Não só na pintura, mas também na atuação política, porque viu a importância da cultura e da tradição. A tradição religiosa africana não se restringe. É uma filosofia, um modo de vida. Ele viu como essa matriz cultural e filosófica é parte e tem uma dimensão política fundamental na defesa dos direitos e na vivência de uma população.
Em uma entrevista recente, Mano Brown, do Racionais MC’s, afirmou que a consciência do jovem negro morador da periferia mudou muito. Se nos anos 1980 o jovem buscava apenas sobreviver, hoje os seus horizontes são mais amplos e ele tem uma autoestima mais elevada. De que maneira você vê o potencial das expressões artísticas contemporâneas contra o racismo como o rap e o funk?
Não posso me pretender uma autoridade para falar desses fenômenos, especificamente. Mas o que posso dizer, porque fui testemunha de um momento histórico, é que a juventude negra, lá atrás, buscava esses referenciais através do movimento Black Soul, Black Rio. E esse momento foi muito importante para a juventude dos subúrbios, das favelas.
Há uma continuidade histórica…
Me parece que existe um esteio de busca dessas referências. Por isso, não digo que a consciência do jovem antes era menor e agora cresceu. Há uma continuidade de referenciais, uma evolução que vem fortalecendo a expressividade e os meios disponíveis para a expressão dessa consciência. O funk e o rap são evoluções diferenciadas de uma mesma ânsia de consciência e luta contra o racismo.
Como o atual contexto político e econômico, em que existe uma forte discussão sobre a democracia, incide sobre a questão racial no Brasil?
Diria que grande parte dos retrocessos que estamos testemunhando tem uma dimensão, na sua própria origem, racista. Os avanços que foram conquistados pelo movimento negro, políticas públicas, leis e outras medidas, estão produzindo cenários que o racismo não tolera. Então, grande parte dessa reação da direita vem exatamente da matriz do racismo que não aceita ver os avanços da população negra, indígena, quilombola. Tudo isso, para eles, é abominável. Estão vendo os privilégios ameaçados. Talvez seja a principal causa da reação conservadora a que estamos assistindo, cuja consequência cai sobre os ombros da população negra, favelada, sobretudo das mulheres que carregam o peso dessa opressão.
Imagem: EBC