Eleições 2022: Mulheres que caminham em média 90 dias por ano para buscar água no Semiárido vão votar por cisternas

Desaceleração do Programa Cisternas no Governo Bolsonaro penaliza mulheres e famílias que dependem da tecnologia para evitar a lata d’água na cabeça

Por Adriana Amâncio, para Gênero e Número.

Para as mulheres do Semiárido nordestino, as eleições de 2022 são decisivas. Nas urnas, elas querem que vença o voto pelo acesso à água e à cidadania, para colocar fim às caminhadas, debaixo do sol quente, com latas d’água na cabeça.

“Eu não vejo a hora de ganhar a minha cisterna! A vizinha do lado ganhou e a minha não veio. Tem dia que dá quatro horas e eu levanto, sem pensar, para buscar água. Porque se pensar, o corpo cansado não quer levantar”.

Este é o relato da agricultora Suzana Pereira, 37 anos, que mora no Sítio Serra do Urubu, no município de Mata Grande, semiárido alagoano. Diariamente, ela realiza sete viagens. Em cada uma, percorre quatro quilômetros até uma fonte, que fica no meio de uma serra.

A rotina começa às 4 horas da manhã e se estende até às 6h10. Em duas dessas três viagens, a agricultora conta com a ajuda das filhas. À tarde, quando as filhas vão para a escola, Suzana conta apenas com um jegue.

“Tem dias que eu tombo de tão cansada. Às vezes, eu fico olhando para o céu, esperando que chova e quando a chuva vem, eu corro e coloco um balde em cada goteira da casa para aparar água”. A espera de Suzana pela cisterna se tornou mais longa devido à redução de recursos e à paralisação do Programa Cisternas, principal política de acesso à água no Semiárido.

Em 2013, o Programa executou cerca de R$ 816 milhões e implementou 141.977 cisternas. Já em 2019, primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro, o orçamento dava o primeiro passo para o seu pior recorde: a execução de apenas R$ 76 milhões e a entrega de 30.583 cisternas. ??O cenário piorou. Em 2021, o recurso executado foi menos da metade, pouco mais de R$ 32 milhões, com 4.305 cisternas. Esse número chega a ser inferior ao total de tecnologias implementadas em meados de 2003, ano da criação do programa, que entregou 6.497 unidades.

Em 2017, o Programa Cisternas foi considerado a segunda política pública mais eficiente no combate à desertificação, sendo condecorado com o Prêmio Política para o Futuro. A iniciativa é da World Future Council e, na referida edição, ganhou a parceria da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD).

O coordenador do Programa Um Milhão de Cisternas para o Semiárido (P1MC), Rafael Neves, relembra essa conquista ao criticar a redução de orçamento. “É uma total falta de conhecimento da importância desta política reconhecida internacionalmente”, avalia.

O município de Mata Grande, em 2021, possuía uma demanda de mil cisternas, segundo cálculos da organização não governamental Cactus, membro da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Com a redução de recursos, foram entregues apenas 100 cisternas. Segundo a coordenadora do Centro Feminista Oito de Março, Conceição Dantas,

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“A retirada do direito às cisternas deixa as mulheres sem acesso à agua de qualidade, as esgota fisicamente e retira a sua autonomia financeira.”

Orçamento público: uma questão política
O orçamento do governo é político. Ele reflete a prioridade que a gestão dá a uma política pública. Além do montante aplicado, a proporção entre o que foi orçado (prometido) e empenhado (reservado para os gastos) revela o cuidado na gestão dos recursos. Em 2012, diferença foi de R$ 204 milhões. Já em 2013, a diferença foi de menos de R$ 7 milhoes, isto é, quase todo o orçamento foi executado.

Essa decisão, tomada na gestão da então presidenta Dilma Rousseff, teve impacto positivo na quantidade de cisternas implantadas. “Foi o primeiro passo para cumprir um compromisso de universalizar o acesso à água no Semiárido,”, relembra Rafael Neves.

A vida das mulheres ficou ainda mais complicada com a pandemia. O orçamento do Programa Cisternas seguiu em queda brusca, com a execução de apenas R$ 71,8 milhões. As mais de 3 mil organizações que compõem a ASA são responsáveis por 80% de todas as implementações de cisternas no Semiárido. Em abril de 2021, a rede construiu 61 cisternas de 16 mil litros, referente a um contrato de 2017, cujo orçamento estava bastante defasado. Desde então, nenhuma outra tecnologia foi implementada.

A cisterna de 16 mil litros, também conhecida como cisterna de primeira água ou de placas, é destinada ao armazenamento de água para o consumo humano, ou seja, para beber e cozinhar. Trata-se da tecnologia que assegura água para a necessidade primária: matar a sede. Segundo relatos das próprias mulheres, o acesso a essa água, quase sempre, determina a possibilidade de sobreviver na região. A segunda água mais importante é destinada à produção de alimentos e para matar a sede dos animais.

No Semiárido, acesso a água e alimentação caminham juntos. Com água, a possibilidade de produzir alimentos se amplia, uma vez que muitas mulheres relatam que o tempo economizado com as caminhadas passa a ser investido no cultivo.

aspa“Na situação de fome e inflação na qual o Brasil está, que afeta principalmente as mulheres, é importante investir em políticas sociais de acesso à água e à segurança alimentar. Em um governo que não reconhece o papel social da mulher, essas políticas não têm prioridade”, analisa Neves.

A coordenadora do CF8, Conceição Dantas, conta que o desmonte do Programa Cisternas teve início em 2016, quando as políticas sociais perderam espaço no Governo Federal. “O Programa Cisternas faz parte de uma nova concepção do Semiárido, que foi absorvida pelos governos progressistas. Por outro lado, com o golpe [no governo de Dilma Rousseff], com um governo neoliberal e reacionário do ponto de vista do diálogo com a sociedade civil, esse direito foi retirado da população”, diz.

Sufoco, cansaço e uma pitada de esperança

“Eu pego água no açude, em uma lata de água. Para beber, eu pego emprestado com a minha cunhada. Tem vez que ela não quer me dá, aí, eu pego no açude mesmo”, conta a agricultora Francisca Oliveira, de 55 anos, que mora na comunidade Sombra, município de Angico (RN).

Quando a reportagem perguntou se a agricultora já tinha bebido a água do açude, em algumas das vezes nas quais a cunhada não lhe emprestou água da cisterna, Dona Chica, como é conhecida, responde conformada: “Bebi, fazer o que, né?! É o jeito!”. A água do açude de Sombra não é potável para o consumo humano.

Normalmente, a agricultora realiza cinco viagens diárias, nos períodos da manhã e à tarde, que consomem seis horas do seu dia. A água do açude serve para lavar louça e tomar banho. Idosa, com câncer de pele e hérnia de disco, a agricultura enfrenta as caminhadas, tendo que suportar o peso da lata e o desgaste causados pelo sol forte.

Apesar do cansaço, Chica diz que a esperança em relação às eleições mantém-se viva. “Eu vou votar, vai mudar de presidente, eu vou ter a minha cisterna. Tem que ter muita cisterna e emprego, que o povo está precisando”, afirma a agricultora com a voz rouca, mas vibrante.

Tanto dona Chica quanto Suzana dedicam, em média, seis horas por dia à busca da água. As seis horas multiplicadas por 30 dias, equivale a 180 horas, ou sete dias e meio gastos por mês. Isto é, ou 90 dias por ano.

As mulheres passam um quarto do ano caminhando em busca de água. Esse é um período suficiente para realizar um curso rápido de artesanato, de produção de canteiro econômico e cumprir um terço do módulo inicial de alfabetização na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

“Praticamente, neste governo, a gente não viu nada de projeto. Só pioraram as coisas! Eu pretendo votar por água, alimento, por projetos que melhorem a nossa vida”. A afirmação é da agricultora Daniela Santos, que mora no município de Casinhas, no Semiárido de Pernambuco e tem uma jornada diária extensa que envolve o cuidado com três filhos, a casa e o marido e a busca pela água.

Essa última atividade lhe consome mais de duas horas diárias, tempo que leva para realizar oito viagens por dia até o barreiro mais próximo. Com isso, consegue garantir a água para lavar pratos e tomar banho. Com as viagens que faz até a cisterna do vizinho, coleta a água para beber e cozinhar. “Ah, às vezes dá muita dor nas costas e na cabeça, por causa do peso do balde. Se tivesse uma cisterna em casa, era bem mais fácil. É difícil, mas tem que fazer! Sem a água, a gente não pode fazer nada”, afirma a agricultora.

Acesso à água é política de gênero
Como política pública, as cisternas começaram a ser construídas em maior escala em meados de 2003, no governo Lula, com recursos do então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. A ação foi inspirada no Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), projeto de mais de 3 mil organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

Os critérios adotados para garantir o acesso à tecnologia reconheciam que a questão hídrica refletia a desigualdade de gênero. Na década de 1970, as viúvas da seca apresentaram ao mundo o fardo de abastecer a casa com água.

Viúvas da seca é o nome dado às mulheres que ficam distantes dos maridos nos meses de estiagem. Quando a chuva para de cair, eles viajam para Sul e Sudeste em busca de trabalho. Sozinhas, as mulheres assumem o trabalho doméstico, o cuidado com os filhos, a roça e o abastecimento hídrico da casa.

Reconhecendo essa realidade, o Programa Cisternas dá prioridade às mulheres chefes de família, com crianças de zero a seis anos, pessoas com deficiência e idosas. Os números confirmam o impacto do programa. Até abril de 2021, a Associação Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), instituição jurídica que faz a gestão dos projetos sociais da ASA, havia implementado cerca de 628 mil cisternas de 16 mil litros. Aproximadamente 68% dessas tecnologias pertencem às mulheres. “Com a chegada do P1MC, a realidade das mulheres foi mudando. As caminhadas com latas na cabeça acabaram. Por isso, as mulheres têm tanto cuidado com a água da cisterna”, explica Conceição Dantas.

Rafael Neves relembra a empolgação delas na hora de receber a tecnologia. “Quando perguntávamos se as mulheres queriam a cisterna, elas diziam: ‘pode construir! Nem que eu mesma tenha que cavar o buraco!’. A chegada da cisterna envolve um processo político e pedagógico. A definição das pessoas beneficiadas é realizada por meio de uma comissão municipal. Essa instância envolve organizações e lideranças comunitárias.

Uma vez contempladas com a tecnologia, as mulheres passam por uma capacitação em Gestão de Recursos Hídricos. O curso aborda conceitos como cidadania, políticas públicas e orienta a forma correta de fazer a gestão da água para garantir a durabilidade do recurso durante o período de estiagem.  “Nós temos vários exemplos de como o programa levou não só autonomia hídrica, mas também financeira e política às mulheres. O programa as estimulou a estudarem, a ocuparem cargos políticos e a se auto organizarem”, pontua Conceição Dantas.

A hora da virada

A socióloga da Sempre Viva Organização Feminista (SOF) Tica Moreno analisa o impacto do governo Bolsonaro em políticas públicas que têm impacto nas mulheres: “Quando a gente pensa nas mulheres, podemos resumir em duas palavras: desmonte e ataque. Desmonte das políticas que estavam em curso e ataque à cidadania das mulheres por parte não só dele, mas também dos seus ministros e ministras”.

“Hoje, o problema se reflete no sucateamento das políticas públicas sociais de educação, saneamento, moradia, todas impactam a vida das mulheres. Viemos de seis anos de profundo desmonte, que, hoje, se revela no agravamento da fome, que atinge mais as mulheres”, completa.

O debate sobre políticas públicas de cuidado e sobrecarga de trabalho proposto por lideranças feministas prepara o campo para que as mulheres eleitas tenham um direcionamento ao votarem a Lei de Diretrizes Orçamentárias: “É muito importante elegermos pessoas que tenham como prioridade a ampliação das políticas de cuidado. São creches, políticas de atenção à pessoa idosa, políticas de alimentação. Tudo significa economizar tempo de trabalho doméstico das mulheres. Falar de política de cuidado significa falar de água, de tudo que interessa à sociedade” conclui Tica.

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