Eglê, o filme. Por Viegas Fernandes da Costa.

Eglê foi a intelectual orgânica do Grupo Sul, e também uma mulher que enfrentou as barreiras impostas pela falocracia catarinense. Filha de Rita da Costa Ávila Malheiros e Odílio Cunha Malheiros

Eglê Malheiros. Foto: Arquivo pessoal

Por Viegas Fernandes da Costa.

Em 1947 um grupo de jovens artistas e intelectuais criou, na Ilha de Santa Catarina, o Círculo de Arte Moderna. Nosso modernismo tardio, chegado pelos sopros do pós-guerra e mais tarde conhecido pelo nome da revista por eles fundada e em torno da qual constituíram a identidade que atravessou os limites insulares e se tornou movimento: o Grupo Sul. Estes jovens montaram peças de teatro, produziram o primeiro longa-metragem de ficção catarinense, editaram a Revista Sul, ilustraram, escreveram e publicaram livros, pintaram quadros, fundaram o Museu de Artes de Santa Catarina, exercitaram a crítica literária, teatral e artística e, fundamentalmente, atuaram como agentes políticos da mudança.

O Grupo Sul, entretanto, era majoritariamente masculino em uma sociedade extremamente provinciana e conservadora, e a historiografia do movimento costuma destacar este protagonismo. Entretanto, as mulheres estavam presentes, e uma delas foi, possivelmente, seu principal motor e consciência crítica: Eglê Malheiros.

Eglê foi a intelectual orgânica do Grupo Sul, e também uma mulher que enfrentou as barreiras impostas pela falocracia catarinense. Filha de Rita da Costa Ávila Malheiros e Odílio Cunha Malheiros, Eglê nasceu na cidade de Tubarão em 1928 e perdeu o pai assassinado em um crime de motivação política em Lages, momento em que a família se transferiu para a Ilha de Santa Catarina. A mãe era comunista filiada ao PCB, partido pelo qual se candidatou à deputada. Eglê seguiu os passos maternos, militou no Partido Comunista e construiu sólida carreira intelectual. Foi a primeira mulher a se bacharelar em Direito em Florianópolis, exerceu o jornalismo e o magistério como professora de História, traduziu e escreveu livros, roteirizou com Salim Miguel, seu esposo, o filme “O Preço da Ilusão”, publicou poemas, contos e ensaios, foi presa pela Ditadura Militar, participou do Conselho Editorial da Ficção, revista literária que marcou época na imprensa cultural brasileira e, haja fôlego, é mãe! Sim, Eglê vive hoje em Brasília, mas apesar da sua participação fundamental na história cultural brasileira desde a década de 1940, sua biografia ainda é pouco conhecida pelo público, em parte porque a imprensa e a historiografia colocaram-na sob a sombra do marido, o escritor Salim Miguel, morto em 2016. Eglê, entretanto, sempre teve luz própria.

Prova disto é o documentário dirigido pela cineasta e jornalista Adriane Canan, intitulado “Eglê”, que está em fase de finalização.

Eglê – o documentário, apresenta uma narrativa caleidoscópica, indiciária, onde a mulher Eglê Malheiros vai se revelando em suas múltiplas e complexas dimensões a partir dos fragmentos da sua história. O filme está sendo construído desde 2018, foi filmado principalmente durante a pandemia do Covid-19 e no contexto do catastrófico e criminoso governo de Jair Bolsonaro, e aproveita esta conjuntura para dialogar com a própria história de Eglê, também de resistência e de combate contra o autoritarismo e as injustiças sociais.

Fragmentos de memórias, documentos escavados nos arquivos familiares, fotografias que revelam rostos silenciados, antigas entrevistas, textos literários, a Eglê que primeiro se apresenta é a poeta, e esta então vai se desdobrando em verdadeiro exercício arqueológico cuja arquitetura também é revelada. Diretora e toda equipe de mulheres da produção assumem seu protagonismo na narrativa construída a partir de uma intencionalidade política: são mulheres cineastas contando a história de uma mulher que por muito tempo apareceu, quando muito, como coadjuvante no discurso produzido pelos olhares masculinos. Na medida em que vamos nos surpreendendo com as revelações da biografia de Eglê, somos apresentados às dificuldades estruturais de se produzir um filme sobre uma mulher, por mulheres, a partir das margens e no contexto de um Estado autoritário e de desmonte das políticas públicas para a cultura. Escrevo isto para que observemos sutilezas que a diretora inscreve no filme, como quando apresenta Eglê discursando em nome do marido Salim Miguel na Academia Brasileira de Letras. Ler o discurso do marido, porque este perdera a visão, foi um gesto de amor e respeito pelo companheiro, mas ao inserir este fragmento no documentário Adriane Canan parece querer nos lembrar que Eglê nunca foi sombra, embora este foi o lugar onde a colocaram e que o filme agora propõe desconstruir.

“Eglê” é um filme importante, bonito, que produz estranhamentos e ao mesmo tempo afetos. Aproxima-nos de Eglê Malheiros e nos dá a dimensão do quanto ainda a desconhecemos, e do quanto desconhecemos a história política e intelectual das mulheres, especialmente no contexto catarinense. Caleidoscópio, arquitetura e poema, Eglê é filme e tudo isto.

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