Por José Carlos Ruy.
Um dos pontos altos da falsificação da história da Revolução Russa que a direita faz pode ser lido em um editorial publicado neste domingo (8) pelo suplemento Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, assinado pelo dono do jornal, Otávio Frias Filho, sob o título de 100 anos do golpe.
Ele comenta dois livros recém-publicados, que surfam no centenário da revolução – Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa, organizado por Daniel Aarão Reis, e A Revolução Russa, de Sheila Fritzpatick.
Aquele editorial parte de uma definição aceitável do que seja revolução – a derrubada de um governo na seqüência de um levante popular e a troca das classes sociais à frente da sociedade.
Foi o que aconteceu na Rússia, em 1917. O povo se levantou por paz, terra e liberdade, como os bolcheviques registraram e defenderam. Na esteira, derrubaram o governo despótico do czar e, poucos meses depois, o próprio capitalismo na Rússia.
Anacronicamente, o editorial da FSP adere à tese da oposição menchevique na época. Na ocasião, Julius Martov, o dirigente menchevique, assim classificou a revolução: em sua avaliação, teria sido um golpe.
O editorial da FSP é um texto pobre, merecedor de figurar num panfleto político de má qualidade. Ele esbarra, sem aprofundar, numa questão que, para a revolução, foi fundamental e permitiu a consolidação do poder conquistado pelos bolcheviques. Aquilo que chamam de “golpe” foi a determinação de Lênin e dos bolcheviques de que a Constituinte deveria reconhecer o poder dos sovietes e as medidas já tomadas que asseguravam a terra aos camponeses.
Os proprietários não aceitaram, na época, e mesmo hoje a rejeitam, como o proprietário da FSP revela mais uma vez.
Ele diz, neste editorial que falsifica a história, que “os bolcheviques sabotaram uma revolução democrática no nascedouro.”
Defende uma política semelhante à adotada pela socialdemocracia naquela época, na Alemanha. Política que resultou, ao fim, no desastre que ensangüentou a história do século XX – o nazismo.
A Alemanha havia saído da Primeira Grande Guerra numa situação revolucionária, com conselhos de operários e soldados em todos os cantos. O kaiser foi deposto e teve início a chamada República de Weimar. Mas os revolucionários cujo propósito era aprofundar as mudanças enfrentaram a resistência dos dirigentes do SPD, o partido socialdemocrata que não aceitaram a revolução e esperavam organizar uma república com a nobreza latifundiária, a burguesia e setores reformistas da classe operária. A tal ponto que, ao se despedir do deposto príncipe herdeiro da Alemanha, o dirigente social democrata Friedrich Ebert assegurou-lhe odiar a revolução e que tudo faria para evitá-la.
Não evitou. A revolução é um processo social muito profundo, que não depende da vontade individual dos dirigentes. Se não tomam as providências para cumprir as tarefas postas pela história, os outros (adversários) tomam. A revolução não para, e a Alemanha foi um exemplo disso – os socialdemocratas tentaram paralisá-la. Não deu certo. A direita enfrentou as contradições da sociedade alemã da época e deu a elas sua própria resposta, autoritária e antidemocrática. Derrotou a esquerda e o resultado trágico é conhecido: depois de uma crise grave, os nazistas tomaram o poder e ensangüentaram a história do século XX.
Os bolcheviques, não – tiveram a ousadia de enfrentar os problemas de seu tempo, na Rússia, e construíram uma história que mudou a humanidade. Começaram a construção da mais prolongada experiência socialista que a história já conheceu.
Deixar de reconhecer isto, e dar o nome de “golpe” à revolução, é de uma pobreza intelectual que beira à indigência. Indigência reforçada na frase que fecha aquele editorial: os bolcheviques teriam agido por “uma doutrina que desculpava tudo em nome daquela utopia, passaram a agir como psicopatas”. Tal frase não tem amparo em nenhum historiador sério, mesmo contrários à revolução. Ela remete aquele editorial às piores diatribes e mentiras dos panfletos mais desqualificados da direita e se junta às mentiras dos fascistas e dos nazistas.
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José Carlos Ruy é jornalista e escritor.
Fonte: Vermelho.