Por Elissandro dos Santos Santana, Porto Seguro, para Desacato.info.
Alguns cientistas já afirmam que o Planeta está no limite, que resta pouco tempo para uma guinada sustentável e que se as mudanças necessárias para uma terra mais equilibrada ambientalmente não forem efetuadas agora, será impossível reverter o quadro da crise climática planetária. Outros pontuam que já estamos vivendo a crédito e que a cultura da afluência – desencadeadora do consumo – corrobora que para a manutenção dos padrões atuais do “suposto desenvolvimento” das nações é necessário bem mais que um planeta.
A Terra está doente e a consciência da crise socioambiental já existe até mesmo entre os humanos menos sensíveis – aqueles alicerçados sob a égide do modus operandi do capital nas formas de ser, sentir e agir, ou seja, o homo economicus.
Boff, no livro “Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da Mãe Terra.” afirma que a consciência da crise ganhou expressão em 1972, com o relatório do famoso Clube de Roma, uma articulação mundial de indústrias, políticos, altos funcionários estatais e cientistas de várias áreas para estudarem as interdependências entre as nações, a complexidade das sociedades contemporâneas e a natureza, com o objetivo de desenvolverem uma visão sistêmica dos problemas, bem como novos meios de ação política para enfrentá-la.
Concordo com essa noção boffiana de que a consciência da crise ganhou expressão em 1972, pois esse é o marco para as primeiras discussões mundiais de grandes proporções em torno do tema ambiental. A partir da referida data, cada vez mais, as sociedades passaram a racionalizar que os modelos de produção de sistemas como o Capitalismo e, até mesmo, como o Socialismo, falharam na forma de relação com a Terra.
Como nem sempre a racionalização é sensível, mesmo diante de tantas discussões acerca das questões ambientais no mundo hodierno, a consciência cai no vazio inoperante, nas barreiras da lógica desenvolvimentista de que para um país crescer necessita aumentar o PIB interno e, para isso, há que se explorar o capital natural a todo custo. Essa tem sido a lógica dominante em vários países do mundo, inclusive, ainda que em menor grau, mas em algum nível, em muitas economias em estádios/estágios verdes, pois, em muitas dessas, em seus sistemas de produção e de “desenvolvimento”, no percurso, ainda existem marcas simbólicas e concretas das economias de carbono que só se apagarão quando a arquitetura de produção se tornar sustentável, de fato, nos alicerces do pensamento, isto é, diante de designs mentais ecológicos.
O crescimento do Produto Interno Bruto das nações tem sido um balizador para rechaçar, ou não, a diversos governos ao redor do Globo. Os servos da Economia Clássica Tradicional só veem futuro no crescimento contínuo e essa premissa já consubstanciou até golpes de Estado, como o caso do Brasil, com algo em curso nesse sentido. O fato é que crescimentos nulos (ou melhor, não crescimentos) e até negativizações em PIBs têm derrubado governos em muitas partes do Globo. É evidente que por trás desses golpes suaves, disfarçados de democráticos, em muitos países em todo o Planeta, ao longo da história, há questões bem mais profundas e complexas e, dentre elas, está, com certeza, a questão da opressão de grupos controladores de economias locais que não permitem justiça social e reparação histórica a minorias subjugadas pela política neoliberal a-ecológica na qual se sustentam.
Mas, voltando à consciência da crise socioambiental que já existe no Brasil e no mundo e, diante do fato de que sempre o macho esteve nas rédeas do Planeta, controlando muitas sociedades e nações, com a depredação da vida e da diversidade em campos múltiplos, torna-se necessário pensar outro modo de operação, para se chegar a outros resultados, inovadores, de esperança. Este modo deverá ser feminino no agir e no sentir, para se chegar a outro destino ancorado na vertente do cuidado, ação inerente à essência do ser mulher, pois, da forma como está, não pode ficar, por isso, torna-se imprescindível e urgente uma grande transformação na Política, na Economia e no Meio Ambiente, com a mulher ocupando esses três espaços.
Um meio ambiente sustentável só ocorrerá quando as gestões econômicas e políticas forem equânimes, inclusivas, quando os atores envolvidos nesses dois pontos dialogarem e dividirem espaços de decisão com as mulheres. Para a grande transformação na Ecologia, primeiro é necessária uma transformação profunda na Política e na Economia, pois esses são os dois elementos que dificultam a justiça socioambiental.
Para sair da crise socioambiental instalada e instaurada, cada ser humano deve olhar para dentro de si, com o objetivo de encontrar a consciência do sensível no próprio interior, mergulhando em busca do feminino que reside em todos nós, haja vista que todos somos sementes da Grande Mãe Terra e Ela, em essência, é feminina.
Esse feminino ao qual me refiro não estaria somente na mulher, mas também no homem que, infelizmente, desenraizou-se da Terra, subjugando-a, destruindo-a. Desse desenraizamento nasceram incongruências e insustentabilidades em eixos diversos que estão presentes em várias estruturas societárias ao redor do Planeta. Nesse processo de subjugação está entranhada a cultura do machismo e isso precisa ser combatido nas bases, nas entranhas. Essa cultura do macho não está somente no macho, mas em muitas mulheres nas sociedades que foram construídas a partir do poderio dos testículos sócio-histórico-econômicos opressores.
Diante da percepção de que os desajustes ambientais começaram a partir do momento em que o ser humano se viu à parte na natureza, distante dela, chamo-lhe a atenção, caro/a leitor/a, para a necessidade do re-ligare que Boff e tantos outros falam. Nesse âmbito, externo que é preciso refletir para se compreender em que ponto no eixo temporal o homem de desligou da Mãe Terra, pois, se não, essa religação não se dará em vida, mas, de forma obrigatória, somente a partir da morte, com o barro retornando ao barro, ou seja, tarde demais. Para quem está cogitabundo pensando que esta reflexão ruma para as noções cristãs, alerto, de imediato, que essa pode ser uma percepção equivocada, pois o re-ligare ao qual me refiro não está alicerçado nas metáforas bíblicas ou em outros livros mitológicos de fundação da terra e do ser humano, mas em visões mais holísticas, de compreensão do complexo, para isso, recorrendo-se até às narrativas, aparentemente, religiosas, já que a situação de degradação socioambiental na qual a Terra se encontra é deveras grave e, portanto, exige reflexões complexas, em redes.
Continuando a discussão, cabe mencionar que, para pensadores como Boff e outros, há uma relação semiótica entre a Terra e o feminino. Por meio da metáfora de intersecção comparativa entre a Terra e o Feminino encontramos as diversas explicações para as injustiças proporcionadas pelo projeto patriarcal opressor à mulher e a Terra. Essas injustiças se revelam quando somos capazes de compreender a metáfora cotejadora da Terra-mulher, para visualizar que assim como a Terra foi destroçada, a mulher, ao longo dos anos, em várias sociedades e culturas, também sofreu os abusos e desmandos do macho opressor, quase sempre, na figuração do branco-heterossexista-dominante, cria do sistema patriarcal gerador do Antropoceno.
Angelin, no artigo “Gênero e meio ambiente: a atualidade do ecofeminismo”, ao discorrer sobre a relação entre a mulher e a natureza, apresenta-nos um ponto de vista bastante interessante. Segundo esta pesquisadora, uma das primeiras representações divinas criadas pelos seres humanos foi a figura da “Deusa” que representava a “mãe terra”. Conforme a mitologia grega, a Grande Mãe criou o universo, sozinha, sendo Gaia a criadora primária, a “Mãe Terra”. Também as religiões pagãs antigas, como a dos Vikings e dos Celtas, mantinham uma relação próxima com a natureza e cultuavam deusas, concedendo um destaque especial para as mulheres, pois estas tinham uma proximidade muito grande com a “Mãe Terra”, possuindo, ambas, o poder da fertilidade. Na mitologia celta, as mulheres eram invulneráveis, inteligentes, poderosas, guerreiras e líderes de nações. As mulheres também foram os primeiros seres humanos a descobrir os ciclos da natureza, pois era possível compará-los com o ciclo do próprio corpo. Com o cristianismo, a sociedade ocidental afastou-se destas origens pagãs de contato com a natureza e a mulher perdeu seu destaque, já que o Deus cultuado passou a ser masculino. A única figura feminina sagrada preservada foi a de Maria, mas não como uma divindade, e sim como uma intermediária de Deus, uma coadjuvante.
Acerca dos prejuízos em torno da criação do Deus único, é oportuno recorrer a Boff, quando ele, no livro “Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da Mãe Terra”, apresenta-nos a seguinte noção: é sabida a luta incansável que a tradição judeu-cristã monoteísta sempre moveu contra o politeísmo de qualquer matiz. Com isso, se perdeu o momento de verdade presente no politeísmo. E a verdade é esta: o ser humano é habitado por muitos centros de energia, tão poderosos que foram expressos por figuras divinas, dotadas de grandes forças. Essas forças transcendentes, masculinas e femininas, traduziam a efervescência interior de cada ser humano às voltas com o sentido radical de sua vida pessoal e coletiva. As divindades funcionavam não como seres subsistentes, mas como arquétipos poderosos da profundidade do ser humano. Ora, a radiação do monoteísmo fechou muitas janelas da alma humana. Só uma janela ficou aberta, aquela do Deus único, do rei único, do pai único, do chefe único. Dessacralizou o mundo e reduziu a multiplicidade de suas energias.
Feitas essas elucidações a partir das noções apresentadas por Angelin e por Boff, prossigo. Pois bem, no início da discussão, mencionei que a solução não se daria somente por meio do prisma da consciência, pois esta deveria atingir a dimensão da sensibilidade. Nesse ínterim, explico o porquê da premissa: se até mesmo o Socialismo errou na relação com a Terra, mesmo sendo um modelo que prega a inclusão, justiça social e desenvolvimento para todos, e não soube pensar os designs de produção de forma diferente do Capitalismo, isso implica em dizer que não atingimos o grau de sensibilidade para o sentir profundo, o que é um grande problema, dado que somente será possível compreender a Terra como nossa Casa Comum, como Pátria Grande, de todos e para todos, quando o ser humano acordar para o fato de que faz parte da grande teia da vida e ela é a genitora e progenitora da vida, no máximo, em parceria, mas, mesmo sozinha, na impossibilidade de certos encontros, de per si, continuaria gerando e cuidando da vida criada.
O Socialismo, o de antes e o da fase atual, mesmo que tenha falhado na relação com a Terra, trouxe grandes contribuições e, uma delas, sem dúvidas, é o fortalecimento de vários movimentos e segmentos sociais e sindicais em torno de justiça, em espaços amplos. No Brasil e no mundo, movimentos como o Feminista, por exemplo, deram força e voz a outros movimentos como os coletivos LGBTs, negros e outras minorias.
Recorrendo-se mais uma vez a Angelin, ainda no artigo “Gênero e meio ambiente: a atualidade do ecofeminismo”, para explicar o surgimento do Ecofeminismo, tem-se que este se originou a partir de diversos movimentos sociais – de mulheres, pacifista e ambiental – no final da década de 1970, os quais, em princípio, atuaram unidos contra a construção de usinas nucleares. O movimento ecofeminista traz à tona a relação estreita existente entre a exploração e a submissão da natureza, das mulheres e dos povos estrangeiros pelo poder patriarcal (MIES/SHIVA, 1995: 23). Assim, a dominação das mulheres está baseada nos mesmos fundamentos e impulsos que levaram à exploração da natureza e de povos. Tanto o meio ambiente como as mulheres são vistos pelo capitalismo patriarcal como “coisa útil”, que devem ser submetidas às supostas necessidades humanas, como objeto de consumo, ou como meio de produção ou exploração. Além disso, o capitalismo patriarcal apresenta uma intolerância diante de outras espécies, seres humanos ou culturas que julga subalternas ao seu poder, buscando, assim, dominá-las. Neste contexto, encontram-se incluídos tanto o meio ambiente quanto as mulheres.
No decorrer do texto, pontuei que o Capitalismo e o Socialismo falharam na relação com a Terra, mas, também, mencionei que, diferente do modelo capital, o sistema socialista trouxe à baila a necessidade da inclusão. Com isso, afirmo, sem medo, que o movimento ecofeminista poderá revolucionar o próprio socialismo, mostrando-o que a saída é por uma esquerda ecológica, provocando, dessa forma, o nascimento do Socialismo Ecológico.
Aproveitando o ensejo, opino que será pelo viés do movimento feminista, mais especificamente, do movimento ecofeminista, que a revolução acontecerá e, se não houver tempo para a mudança, ainda assim, alguma transformação planetária de grandes proporções ocorrerá. Como Terra e o Feminino possuem intersecções, para fins de mais uma metáfora, recorro à Vingança de Gaia, como no livro de James Lovelock, para dizer que, de alguma forma, a revolução será feminina, ainda que seja na forma de vingança da terra em relação a todas as feridas que o sistema patriarcal lhe causou. A vingança da terra será também uma vingança em nome de todas as minorias que sofreram ao longo de todas as construções de poder e de dominação os abusos do senhor opressor.
Para concluir o raciocínio, solicito aos/às caríssimos/as leitores/leitoras, que, caso estejam em dúvida se a revolução realmente se dará pela mulher, reflitam, com honestidade intelectual, desvencilhando-se dos fundamentos conceituais cristalizados, no que afirma Boff no livro “Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da Mãe Terra.”, no subcapítulo “A contribuição do ecofeminismo”: a mulher capta e vivencia a complexidade e a interconexão do real por instinto e por uma estruturação toda singular. Por natureza, ela está ligada diretamente ao que há de mais complexo do universo, que é a vida. Finalmente é ela a geradora mais imediata da vida. Por nove meses carrega em seu seio o mistério da vida humana. E o acalenta ao largo de toda a existência, mesmo que o fruto de seu ventre se tenha afastado ou seguido os caminhos mais adversos ou morrido. Do se coração nunca sairá o filho ou a filha. Mais do que pelo trabalho, é pelo cuidado que a mulher se relaciona com a vida. O cuidado pressupõe uma ética do respeito, atitude básica exigida diante do sagrado. Demanda, outrossim, uma atenção a cada detalhe e a valorização de cada sinal que fala da vida, de seu nascimento, de sua alegria, de suas crises, de seu amadurecimento, de sua plena expansão e de sua morte.
Observação em respeito ao leitor / à leitora:
- Os textos dos quais parti para reflexão foram os seguintes:
- Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da Mãe Terra, de Leonardo Boff.
- Artigo: Gênero e meio ambiente: a atualidade do ecofeminismo, de Rosângela Angelin. Publicado na Revista Espaço Acadêmico.
- Saibam que esse texto é opinativo e parte de uma das possibilidades de análise, portanto, não está fechado, já que os sentidos se ampliam na medida em que o leitor se apropria do texto.
—
Imagem: http://revolucaofeminista.blogspot.com.br/2010/06/eco-feminismo.html