Por Jair de Souza.
Quem nunca se deparou com alguém que, ao ouvir críticas ao governo de Jair Bolsonaro, recorresse à seguinte argumentação: “Tudo bem, mas ele acabou com a corrupção”?
É certo que, a esta altura, não deve haver dúvidas para mais ninguém (nem mesmo para os bolsonaristas) de que o governo Bolsonaro é um dos mais corruptos da história de nossa República.
Os observadores mais atentos já associavam Jair Bolsonaro e seus filhos à corrupção muito antes de ele chegar à presidência: suas rachadinhas extraídas dos funcionários; seus vínculos com as milícias fluminenses; suas inúmeras propriedades imóveis adquiridas sem rendimentos legais que as pudessem justificar; entre outras coisas.
Porém, agora no exercício do governo, aquilo que poderia ser categorizado como corrupção rasteira ou corrupção de baixo clero assumiu proporções gigantescas e assustadoras. Se não bastasse o envolvimento do ministro Ricardo Salles no multimilionário contrabando de madeira ilegal da Amazônia para os Estados Unidos, veio à tona o escabroso caso do superfaturamento da Covaxin, a vacina indiana contra a covid-19.
No entanto, gostaria de aproveitar a oportunidade em que o tema da corrupção no governo Bolsonaro está na ordem do dia para cobrar uma reflexão das pessoas bem intencionadas sobre a tendência de atribuir ao problema da corrupção o papel central e determinante em nossa luta político-social.
Em primeiro lugar, precisamos entender que quando se fala de rendimentos, ganhos e perdas em uma determinada sociedade, estes termos não representam a mesma coisa para todos os grupos integrantes da tal sociedade.
É fundamental que tenhamos clareza de que as sociedades capitalistas estão estruturadas com base em classes sociais e todas as riquezas nelas existentes vão ser disputadas e distribuídas entre essas classes em conformidade com o poder de fogo de cada uma delas. E é justamente nessa disputa pela maneira de distribuir as riquezas que as lutas principais se desenrolam.
Podemos ter um governante totalmente refratário à corrupção, mas dedicado a favorecer o lado patronal na divisão do rendimento entre as classes. Sendo assim, embora o nível de corrupção tenha sido zerado, ou diminuído significativamente, a situação dos trabalhadores pode ser piorada em razão da diminuição de seu percentual na participação do rendimento total.
Por outro lado, poderia ocorrer o inverso: termos um governante ainda mais corrupto, mas que, ao elevar a participação percentual dos trabalhadores na apropriação dos rendimentos, venha a possibilitar que, no final, o montante referente aos assalariados seja maior.
O favorecimento ou desfavorecimento de uma ou outra classe pode se dar pelas várias medidas de caráter econômico-social tomadas pelo governante. Não apenas os valores nominais dos salários devem ser considerados, mas também os rendimentos indiretos que podem ser gerados através dos serviços recebidos pelos órgãos de assistência do Estado (educação pública, assistência médica pública, auxílio moradia, etc.).
Logicamente, o ideal é que nunca haja corrupção em nenhuma sociedade. No entanto, convenhamos, a corrupção quase nunca é o fator fundamental que torna uma sociedade mais ou menos justa em relação ao usufruto geral de suas riquezas.
Para melhor entender este ponto tão importante, vamos esboçar algumas situações hipotéticas, imaginárias e simplificadas, para que não persistam incompreensões a respeito.
Vamos supor que temos uma sociedade composta por 100.000 habitantes, dos quais 90.000 são trabalhadores assalariados e 10.000 são patrões empregadores. Vamos imaginar também que o rendimento anual total gerado pelas atividades econômicas desta sociedade hipotética equivale a R$ 2.000.000.000,00.
Hipótese A: Existe um governo que, por meio de corrupção, se apropria de 5% de toda a renda gerada. Em razão da correlação de forças existente, o restante da renda será dividido entre patrões e assalariados na base de 50% para cada classe.
Nesta situação, a divisão vai resultar nos seguintes valores:
– Ganhos dos governantes corruptos: R$ 100.000.000,00 (5% de 2.000.000.000,00);
– Ganhos dos patrões: R$ 950.000.000,00 (50% de 1.900.000.000,00)
– Ganhos dos assalariados: R$ 950.000.000,00 (50% de 1.900.000.000,00)
– Ganho médio dos assalariados: R$ 10.555,55 cada (950.000.000,00 / 90.000)
– Ganho médio dos patrões: R$ 95.000,00 cada (950.000.000,00 / 10.000)
Hipótese B: Entra um governante incorruptível que não se apropria de nada da renda total gerada. Mas, suas políticas trabalhistas e sociais favorecem aos patrões e alteram a proporção da distribuição, garantindo 60% do restante aos patrões e 40% aos assalariados.
Como resultado da nova conjuntura, vamos ter o seguinte quadro:
– Ganhos dos governantes corruptos: R$ 0 (acabou a corrupção)
– Ganhos dos patrões: R$ 1.200.000.000,00 (60% de 2.000.000.000,00)
– Ganhos dos assalariados: R$ 800.000.000,00 (40% de 2.000.000.000,00)
– Ganho médio dos assalariados: R$ 8.888,88 cada (800.000,00 / 90.000)
– Ganho médio dos patrões: R$ 120.000,00 cada (1.200.000.000,00 / 10.000)
Como podemos constatar dos exemplos expostos, não é a corrupção por si só o que determina a melhora ou piora na vida dos trabalhadores. O fundamental é como as políticas vão ser implementadas para favorecer ou desfavorecer as classes no reparto do rendimento total.
Um governo mais afim aos interesses dos trabalhadores vai pôr em prática medidas que garantam a eles um nível de vida mais elevado: melhores salários, melhor saneamento básico, melhor sistema de atendimento médico, melhores condições de moradia, etc.
Os banqueiros, os rentistas e todos os grandes capitalistas também levam isto em consideração na hora de escolher o governante de sua preferência. Se for possível encontrar um político que favoreça os interesses do patronato sem requerer nenhum por fora como corrupção, muito melhor. Mas, se for preciso apelar ao pagamento ao arrepio da lei para garantir que a parcela da renda a ser apropriada pela burguesia não seja rebaixada, eles vão aceitar de bom grado qualquer governante por mais corrupto que seja.
Para os que estão do lado do povo trabalhador, a luta contra a corrupção é uma bandeira mais do que importante. Porém, não pode nunca estar dissociada da luta concomitante por uma maior justiça nas políticas sociais.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.