“É preciso parar de sexualizar os corpos das mulheres”, diz prefeito defensor do burquíni

Foto: Integrantes da associação Aliança Cidadã, defensora do uso do burquíni nas piscinas públicas, comemoram a decisão do conselho municipal de Grenoble, em 16 de maio de 2022. AFP – JEFF PACHOUD

A cidade de Grenoble, no sudeste da França, está raramente nas páginas de jornais ou ganha destaque nos noticiários de todo o país, como vem acontecendo nas últimas semanas. O motivo é o incansável combate do prefeito da cidade, o ecologista Eric Piolle, para que as mulheres muçulmanas possam frequentar as piscinas municipais usando o burquíni, o polêmico traje de banho que incendeia a direita francesa.

A cada verão, o burquíni volta a atrair a atenção da opinião pública francesa. Geralmente, é nas praias da França que os novos capítulos desta saga têm início. Neste ano, a disputa começou mais cedo, durante a primavera no hemisfério norte, e tem como pano de fundo as piscinas municipais de Grenoble, uma cidade de cerca de 160 mil habitantes, ao pé dos Alpes.

O prefeito de Grenoble, Éric Piolle, em foto de arquivo.
O prefeito de Grenoble, Éric Piolle, em foto de arquivo. Foto: Jean-Pierre Clatot/AFP

Ironicamente, as piscinas da cidade ainda não reabriram para a frequentação nesta temporada, que inicia em 19 de junho. No entanto, a possibilidade de que as mulheres muçulmanas possam nadar cobrindo boa parte de seus corpos já irrita os conservadores.

Em sua sala na prefeitura de Grenoble, Eric Piolle mantém a serenidade ao tratar da questão. Administrando a cidade desde 2014, reeleito para um segundo mandato em 2020, ele explica que a polêmica em destaque nas mídias nas últimas semanas é só a ponta do icerberg. Seu combate teve início há mais de um ano, quando decidiu que iria levar a questão do uso do burquíni à votação no conselho municipal (equivalente no Brasil à câmara de vereadores) depois da eleição presidencial deste ano, para ”não atrapalhar o debate durante a campanha”.

Ainda assim, a polêmica rouba a cena da campanha para as eleições legislativas francesas, que serão realizadas em 12 e 19 de junho. “Não há jamais um momento correto para acabar com as discriminações”, afirma. “Evidentemente, esse não deveria ser um assunto relacionado às legislativas. Aliás, essa é uma ‘não polêmica’ porque estamos combatendo as discriminações e estamos tomando medidas favoráveis à saúde”, defende o prefeito, em referência à autorização também do uso de camisetas e shorts com proteção contra os raios UV.

O prefeito de Grenoble, Éric Piolle, conversou com a RFI na segunda-feira, 30 de maio de 2022.
O prefeito de Grenoble, Éric Piolle, conversou com a RFI na segunda-feira, 30 de maio de 2022. © Daniella Franco/RFI

Após ter sido aprovado pelo conselho municipal, em 16 de maio, esse novo regulamento que permitiria o uso de burquíni chegou até a alta esfera do governo nacional. A decisão foi extremamente criticada pelo ministro francês do Interior, Gérald Darmanin, que classificou o prefeito Piolle como “piromaníaco”. O ministro ordenou, então, a Laurent Prévost, secretário de Segurança Pública da região de Isère, onde fica Grenoble, de recorrer ao tribunal administrativo da cidade, sob a justificativa de um ataque ao princípio da laicidade.

Finalmente, no último 25 de maio, o célebre artigo 10 do regulamento das piscinas municipais da cidade, que autorizava o traje de banho muçulmano, foi cancelado. O juiz alegou que o burquíni “permite a alguns frequentadores de desrespeitar as regras com um objetivo religioso (…) gravemente atingindo o princípio de neutralidade do serviço público”. A lei francesa proíbe que dentro dos espaços gerenciados pelo Estado roupas ou acessórios que remetam à religiões e crenças sejam utilizados.

Em entrevista à RFI, Piolle garantiu ter recorrido ao Conselho de Estado da França, a mais alta jurisdição administrativa do país, que vai decidir nos próximos dias, de forma definitiva, se o burquíni poderá ou não ser utilizado nas piscinas municipais de Grenoble. Além desta cidade localizada aos pés dos Alpes, apenas uma outra localidade permite o uso do polêmico traje de banho: Rennes, no noroeste da França, desde 2018.

“É preciso parar de sexualizar os corpos das mulheres”, defende prefeito de Grenoble. Ele também lembra os três principais objetivos da mudança dos regulamentos internos: que mulheres e homens possam nadar nas mesmas condições, já que a nova regra aceita a frequentação das piscinas com o torso nu, permitindo assim o topless. Além disso, Piolle argumenta que é uma questão de saúde proteger a pele da exposição ao sol. Por fim, a proibição do burquíni, segundo ele, é discriminatória e visa diretamente as mulheres muçulmanas “o que não está conforme com a lei francesa”.

Uma das piscinas municipais de Grenoble, ainda fechada para a frequentação, em 1° de junho de 2022.
Uma das piscinas municipais de Grenoble, ainda fechada para a frequentação, em 1° de junho de 2022. © Daniella Franco/RFI

A pressão de uma associação: Aliança Cidadã

Por trás da luta pela autorização do burquíni nas piscinas, está a pressão de uma associação, a Aliança Cidadã. Criada em 2012, seu objetivo na época era lutar contra as más condições de moradia. Com o tempo, o combate evoluiu. Nos últimos anos, o grupo realizou diversas manifestações, como a invasão de militantes de burquíni em piscinas públicas em outras cidades francesas, atos que desagradaram políticos conservadores e parte da opinião pública.

Recentemente, o jornal francês Le Parisien publicou uma reportagem investigativa após acusações de uma ex-integrante da associação sobre o fichamento, realizado por militantes, de milhares de moradores de Grenoble sob critérios de religião, origem étnica e orientação política, o que é proibido pela lei francesa. A Aliança Cidadã não respondeu aos diversos pedidos de entrevista da RFI para comentar sobre o assunto.

Para Gwénaële Calvès, professora de Direito Público da Universidade de Cergy-Pontoise, especialista em questões sobre a laicidade, os métodos utilizados pela associação são vistos como “agressivos”. “O fato que em Grenoble eles obtiveram uma vitória foi mal visto pelo juiz do tribunal administrativo, como se a prefeitura da cidade tivesse cedido a essa imensa pressão. Isso foi visto pelo juiz e por alguns moradores como uma espécie de covardia por parte do poder público”, afirma.

Calvès explica que a decisão do tribunal administrativo, de revogar o voto do conselho municipal de Grenoble é justificada. “É a missão dele, é para isso que ele existe, para verificar que decisões ilegais não estão sendo tomadas pelos vereadores”, explica.

No entanto, a especialista se diz surpresa com a revogação. “Essa foi a primeira vez que um tribunal administrativo na França analisou o processo de uma decisão de um conselho municipal. Normalmente, os juizes analisam a decisão final, se ela é legal. Mas dessa vez, o juiz não analisou o conteúdo do regulamento em si, mas como esse regulamento foi adotado, o que é inédito na França”, detalha.

Para ela, há poucas possibilidades que outras cidades possam modificar o regulamento interno de suas piscinas para permitir o uso do burquíni. “Diante de toda essa polêmica que vimos em Grenoble, acho difícil que outras prefeituras francesas queiram seguir o mesmo exemplo e passar por essa mesma situação”, avalia.

População cansada de polêmica

Os moradores de Grenoble e arredores não escondem o cansaço com a polêmica. Nesta cidade conhecida por seu engajamento ecológico avançado e governada há anos por políticos de esquerda, a população expressa sua incompreensão com todo o barulho causado pelo traje de banho muçulmano.

É o caso da doutorante Célia, que fala da questão do burquíni com sarcasmo. “É um assunto que volta a cada verão na França, como se não tivéssemos mais nada do que falar. Vi um meme na internet muito engraçado que dizia: ‘se você não acredita no aquecimento global, perceba que neste ano o debate sobre o burquíni começou mais cedo do que o normal, o que é a prova que o calor chegou antes do esperado”, brinca.

No último sábado (28), enquanto a Marcha do Orgulho LGBTQI+ desfilava pelo centro da cidade, com várias participantes praticando o topless, a jovem Hadjer, de 18 anos, utilizando um hijab, conversa com a amiga Lina, também de 18, perto da mobilização.

“Eu estava muito feliz que o burquíni havia sido autorizado. Afinal, é uma roupa como qualquer outra, a diferença é que nós, muçulmanas, podemos nadar tranquilamente. Agora eu acho realmente uma vergonha que ele tenha sido autorizado para depois ter sido proibido. Estou extremamente decepcionada”, diz Hadjer.

Marcha do Orgulho LGBTQI+ em Grenoble em 28 de maio de 2022.
Marcha do Orgulho LGBTQI+ em Grenoble em 28 de maio de 2022. © Daniella Franco/RFI

Para o servidor público, Antoine, de 24 anos, a polêmica é exagerada. “É muito barulho para nada. Quando a prefeitura de Rennes autorizou o uso do burquíni nas piscinas de lá, há alguns anos, não vimos nada disso acontecer. Acho que temos outros problemas maiores e outras coisas mais interessantes para falar sobre a nossa cidade”, opina.

Já o pesquisador Pierre, de 63 anos, afirma não ter acompanhado todos os detalhes sobre o debate em torno do burquíni, mas não entende porque a questão se limita aos trajes femininos. “Vemos homens com roupas que ostentam sua religião, com trajes islâmicos, então acredito que seria necessário abordar o que eles usam também. Não que eu me incomode, mas é preciso tratar disso de forma igualitária”, diz.

O estudante Esteban, de 18 anos, expressa sua indecisão sobre a questão. “A República francesa é laica. Ao mesmo tempo, não acho correto impor obstáculos à crença dos outros. Pra ser sincero, fico dividido quando penso sobre isso. Mas, em geral, acho que símbolos religiosos deveriam ser proibidos no espaço público. Não me refiro apenas ao burquíni, mas ao quipá, às pessoas que usam cruzes como acessório, enfim, a todas as religiões”, diz.

O Conselho de Estado deve anunciar sua decisão final sobre o uso do burquíni nas piscinas municipais de Grenoble nos próximos dias. Após o pronunciamento desta que é a mais alta jurisdição administrativa da França, a questão será dada como encerrada e não poderá mais ser contestada.

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