Por Evania Reich, para Desacato.info.
A tolerância religiosa sempre foi um tema da filosofia desde a Idade média. No entanto, nos últimos anos a filosofia vem se interessando novamente, não somente pela questão da tolerância, bem como, pelo papel da religião na esfera pública das sociedades democráticas. A discussão imperiosa que surge no debate entre a maioria dos filósofos gira em torno de questões como: até onde a religião pode adentrar na esfera pública e política? Qual é o papel da religião? De que maneira ela pode opinar nas questões políticas? E com que linguagem? Deve a religião permanecer apenas no âmbito privado da vida dos indivíduos? Ou deveria ela se imiscuir nas questões de interesse público? Essas questões surgiram prioritariamente na Europa diante da inegável pluralização de religiões que não faziam parte da herança histórica europeia. E essa pluralização de costumes e crenças, e a acomodação de novas culturas e religiões as quais não faziam parte da Europa trouxeram consequências para as relações de convivências que nem sempre se revelaram sem conflitos. No mesmo território, pessoas, culturas e religiões diferentes tentam viver juntas, ainda que muitas vezes as relações de convivência exijam uma tolerância que nem sempre os indivíduos possuem. Os problemas que surgem da falta de tolerância para com o outro diferente (de minha crença) causa problemas tanto no nível intersubjetivo quanto institucional. Para se ter acesso ao primeiro nível é preciso que a filosofia investigue de que maneira o Estado vem interpretando e lidando com a gramática dos conflitos neste âmbito. Os casos de conflitos que formam essa gramática aparecem para o intérprete teórico através das exigências que chegam ao Estado. Enquanto o conflito permanece na porta de dois vizinhos, ou no pátio da escola, a dimensão do problema é irrelevante para a teoria. Todavia, quando o Estado se manifesta (por meio do poder legislativo ou do poder judiciário), ou a sociedade civil por meio da mídia, tornando públicas as querelas puramente privadas, então o problema se torna algo relevante e merecedor de sua investigação. São, portanto, essas duas vias que nos mostram a frequente incompatibilidade entre os costumes e práticas religiosas mantidos por indivíduos ou comunidades minoritárias e as leis ou costumes dos países ocidentais de base igualitária e liberal. Tal incompatibilidade, que cinde seus cidadãos, vem assombrando a Europa, dinamizando um nacionalismo que pronuncia a diferença, enaltecendo os costumes e a identidade local em detrimento de uma tolerância e uma convivência com o novo e com o diferente. Em lugar de uma convivência solidária em busca de objetivos comuns, surge nesses diferentes grupos uma convivência conflituosa nas exigências díspares, em nome da defesa de culturas e crenças particulares.
Embora o Brasil tenha ficado de fora desse debate durante muitos anos, hoje já não é mais possível deixar de iniciar nosso próprio debate sobre a questão religiosa. Nós sofremos tanto com o problema da tolerância religiosa, quanto com o problema que envolve a presença da religião na política.
Nesse breve artigo quero me ater mais a questão da religião na esfera público e política. Nos últimos anos vimos um crescente aumento de representantes religiosos na política, tanto no parlamento, quanto nos governos e prefeituras. A bancada evangélica já possui mais de 90 parlamentares no Congresso. E juntam-se a eles vários outros parlamentares que apesar de serem católicos seguem as suas pautas que na maioria das vezes são bastante conservadoras. É importante ressaltar que as pautas conservadoras são sempre articuladas e defendidas por este grupo de religiosos que se unem, sejam eles católicos, espíritas ou evangélicos.
O problema da representatividade das igrejas e religiões na política diz respeito a sua vontade em impor uma única verdade, que se diga de passagem, é a deles. Segundo o filósofo americano John Raws, no seu livro Liberalismo Político (1993), a grande questão que gira em torno das crenças de cada um é a de saber como conciliar um pluralismo de crenças e convicções em uma sociedade democrática em que deve imperar uma justiça igualitária para todos. Para o filósofo não seria razoável empregar o poder político para impor nossa própria visão “abrangente” (de mundo), ainda que ela possa ser defendida como verdadeira.
Parece que uma solução para a questão seria exigir que as doutrinas, que Rawls chama de “abrangentes”, quer sejam religiosas ou morais, teriam que se neutralizar para terem validade no discurso político. A verdade no discurso político é uma verdade que tem que ser racional (aqui se entende racional em oposição ao transcendental) e levar em conta as bases do direito e igualdade que já estão configurados na Constituição. Os assuntos que devem ser tratados e votados não podem ser feitos com base na verdade religiosa. Isto é, não é possível que os dogmas religiosos adentrem nas pautas que devem ter como objetivo a proteção e o bem maior de todos os cidadãos. Como por exemplo, a questão da legalização do aborto não deve ter como argumento para sua não aprovação a proteção da vida com base na palavra de Deus.
Mais uma vez aqui o liberalismo político de Rawls pode nos dar uma luz. Ele pressupõe que a existência de uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis nas democracias liberais é o resultado da razão humana dentro das instituições de um regime democrático. No entanto, admitir a presença destas doutrinas abrangentes religiosas, por exemplo, não significa dizer que uma autoridade política democrática liberal tem que ser justificada a partir delas. Para Rawls, uma vez que as doutrinas religiosas expressam visões de mundo e de nossa vida uns com ou outros, e que nossos pontos de vista individuais e coletivos são diversos e diferentes, tais doutrinas não podem servir de base para um acordo político duradouro e razoável. Isso não significa que o liberalismo político desconsidere certos julgamentos religiosos e obrigue os indivíduos que os defendem a abandoná-los completamente. No entanto, enquanto cidadãos razoáveis devemos reconhecer a impossibilidade de se chegar a um acordo político razoável e viável utilizando-nos das verdades contidas na fé e nas doutrinas religiosas.
Portanto, defender a salvaguarda e a importância das religiões para os indivíduos é algo que é aceito tanto por Rawls quanto pela maioria dos filósofos que adentraram nesse debate. No entanto, fica claro que enquanto cidadãos não podemos usar o poder estatal para obter uma adesão dos outros as nossas concepções e valores religiosos específicos. A questão é a de saber como conciliar a garantia dos valores religiosos para os indivíduos em suas vidas sem que estes adentrem na esfera da razão pública, na qual apenas os valores políticos são permitidos. Uma resposta possível, que é dada pela filosofia, na teoria de Rawls, consiste em dizer que no liberalismo político os valores políticos são os mais importantes porque são eles que governam a estrutura básica da vida social, assim como especificam os termos essenciais da cooperação política e social. Esses valores são: a igual liberdade política e civil; a igualdade equitativa de oportunidades; os valores da reciprocidade econômica; as bases sociais do respeito mútuo entre cidadãos; e os valores da razão pública, e esses valores não carregam os dogmas religiosos.
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Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.
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