Dor, frustração e luto: profissionais da psicologia relatam rotina na linha de frente

Além do cuidado com a saúde mental de familiares e pacientes, profissionais precisam lidar com a exaustão do trabalho

Entre os recursos usados para aproximar pacientes de familiares estão as videochamadas – Arquivo pessoal

O total oficial de vítimas do novo coronavírus desde o início do surto no Brasil chegou a 312.206 neste domingo (28), com mais de 5 mil óbitos registrados apenas neste final de semana, de acordo com o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass).

Por trás da crueza dos números, dor, angústia, medo, impotência e até mesmo culpa são sentimentos que marcam a vida das pessoas que perderam seus entes queridos.

O luto deixado pela doença, segundo especialistas, pode causar uma ruptura enorme na saúde mental. “Não há lugar na mente para tanta dor, não há palavra que consiga dar conta de significar, de dar algum sentido imediato”, ressalta a psicanalista Karla Nyland.

“O desejo de abraçar seu familiar é enorme, assim como o medo de nunca mais poder tocar neste amoR caso venha a falecer. Há uma ruptura enorme na saúde mental”, destaca Karla / Arquivo pessoal

Responsáveis pelo processo de escuta e acolhimento, profissionais da psicologia são peças-chave para trazer acalento para as perdas deixadas pela pandemia, seja na linha de frente ou em atendimentos remotos.

Mesmo treinados para realizar a escuta e usar seus sentimentos como um elemento de diagnóstico, os profisionais da psicologia também podem ser afetados pelas situações difíceis por eles enfrentadas.

“Ser afetado por elas também nos torna humanos. O relevante é termos espaço para lidar com estes sentimentos, dentro e fora do hospital, e transformá-los em ferramentas do nosso trabalho para que eles não nos paralisem”, explica a psicóloga do Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Elis de Pellegrin Rossi.

Atendendo pacientes que perderam familiares pela covid-19 desde agosto 2020, Karla Nyland, que trabalhou muitos anos com pessoas com HIV/Aids, aponta que a angústia e o medo estão presentes na vida de todos neste momento. A dor pela perda de algum familiar ou ente querido é perceptível até por meio da voz, afirma a profissional.

“Elas ‘sentiram na pele’ a potência da pandemia e vivenciam a desestrutura familiar decorrente da perda. É uma ruptura traumática na vida, principalmente quando ocorrem mais perdas familiares no mesmo momento ou em um curto espaço de tempo”, diz.

Segundo Nyland, todos os pacientes nesta condição de perda falam sobre a última vez que viram a pessoa amada, sobre o que conversaram, e choram pelo que deveriam ter dito. Nestas escutas, a psicanalista comenta que sempre o medo de não dar conta da dor estava presente.

“Não há lugar na mente para tanta dor, não há palavra que consiga dar conta de significar, de dar algum sentido imediato. Ser acolhido na dor, poder falar e chorar são formas de tentar elaborar este luto, que precisa de tempo e que acontece dentro dos limites possíveis para cada um”, afirma.

Além da dor, a culpa

Outro sentimento vivenciado em um momento de luto durante a pandemia é a culpa, comenta a psicanalista Karla Nyland.

“Soma-se um sentimento de culpa, uma ideia que poderia ter cuidado mais, que teria sido melhor não ter ido trabalhar utilizando o transporte público, que não deveria ter ido ao supermercado, como se pudesse ter feito diferente. É a culpa do sobrevivente, de quem passou por situação traumática e ‘se salvou’”, conta.

Em alguns casos, o sentimento é tão intenso que as pessoas podem desenvolver um quadro de sintomas como cefaleia, perturbação do sono e ansiedade. “A culpa e o trauma pesam, favorecendo o aparecimento de uma série de sintomas físicos, psíquicos e comportamentais”, explica.

Nyland acrescenta ainda que, às vezes, a culpa é real. “Pessoas que negaram a intensidade e potência do vírus, se colocaram em situação de contaminação aglomerando, fazendo festa, não se protegeram e levaram o vírus para dentro de casa, contaminaram familiares. QUando algum morre, a culpa fica enorme pois o dano é irreparável. Só é possível aceitar”.

Novos métodos de contato

Entre os recursos usados para aproximar pacientes de familiares estão as vídeos chamadas / Rafaela Bernardes/Agir

Trabalhando na linha de frente do combate à pandemia, a psicóloga Elis de Pellegrin Rossi conta que, além da readaptação da assistência já prestada para pacientes, famílias e equipe, os profissionais tiveram que realocar recursos, criar novos protocolos e construir novas frentes de trabalho.

“A rotina é pesada e de muita transformação a todo o momento com o prolongamento da situação”, salienta.

Com o agravamento da pandemia, mudanças tiveram que ser postas em prática dentro da CTI, conta Elis Rossi.

“Tínhamos três visitas por dia, sendo que alguns pacientes recebiam, dependendo da sua característica, o que a gente chama de visita estendida, onde a família podia ficar no leito de UTI com o paciente 24 horas. Passamos desse estado de visita para absolutamente zero”, explica.

“Isso teve um impacto muito grande, não só para os pacientes e familiares, mas também para nós enquanto equipe, porque entendemos que o familiar faz parte do tratamento do paciente”.

Para aproximar os pacientes e os familiares nesse contexto, as equipes passaram a fazer teleatendimentos e videochamadas.

“Conseguimos acessar um maior número de familiares que não vêm ao hospital. Fomos desenvolvendo videochamadas. Quando o paciente tem condições, ele pode ver os familiares através de videochamadas”, expõe.

As videochamadas também são feitas em momentos mais críticos, como quando o paciente tem que ser intubado. “Fazemos uma visita virtual antes dele ser intubado para que possa se despedir antes de ser sedado”, complementa.

Além desses recursos, fotos de familiares foram colocados nos leitos dos pacientes. Assim como a equipe, junto com o crachá funcional, elaborou o super crachá, em tamanho maior, para que os pacientes e familiares pudessem reconhecer os profissionais, já que estes usam máscaras.

“Nunca desistimos das visitas presenciais. Trabalhamos junto com o controle de infecção do hospital para que pudéssemos possibilitar, em alguns casos, as visitas presenciais”, destaca Elis Rossi.

Os pacientes com permissão para receber visitas presenciais precisam se encaixar em alguns critérios, como longa internação, pacientes com risco altíssimo de óbito e pacientes que estão em pré-intubação.

Exaustão refletida

“Chegamos a um ponto extremamente crítico do trabalho e desgaste das equipes”, desabafa a psicóloga. Elis Rossi conta que na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital das Clínicas de Porto Alegre há 100 leitos e uma equipe de 12 psicólogos.

“Temos uma demanda absurda de trabalho. Muitas vezes não conseguimos fazer essa aproximação [familiares e pacientes]. São muito reais os relatos de desgaste das equipes, sentimentos de frustração e derrota por não conseguir prestar para o paciente o que realmente gostaríamos”, destaca.

De acordo com a Elis Rossi, além do trabalho feito com os familiares e pacientes, os profissionais também trabalham com equipes da área de psicologia do trabalho.

“Eu, como psicóloga do CTI, trabalho em parceria com as psicólogas do trabalho e fazemos um diagnóstico do sofrimento dos profissionais. Porque tem sido muito cansativo e frustrante. Chegamos ao ponto de criarmos um grupo de decisões difíceis onde se trabalha quem vai receber tratamento de UTI ou não, quem vai para o respirador ou não”, comenta.

A decisão sobre a vida dos pacientes é uma das resposabilidades do grupo mencionado por Elis Rossi.

“Estamos desenvolvendo um grupo multiprofissional, com médicos intensivistas, médicos paliativistas, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais que trabalham junto às equipes para fazer a discussão desses casos. Porque é uma decisão muito injusta, e não deve ser colocada em uma pessoa só. Isso não deixa essa decisão fácil, só ameniza a responsabilidade de quem está fazendo isso”, pondera.

“Quando estamos lá na unidade, na linha de frente, é exatamente o que sentimos. É muito concreto, é muito real quando olhamos para as unidades e vemos os monitores se apagando”, complementa.

Despedida sem contato

Um dos momentos mais complexos é quando acontece a despedida virtual antes da intubação. Neste momento, o desespero, o medo, a dor e ao mesmo tempo a esperança estão presentes de forma intensa, descreve a psicanalista Karla Nyland.

“Um paciente me ligou tarde da noite. A mãe foi intubada e ele teve a certeza de estar se despedindo dela, naquele momento. Ele precisava de escuta e acolhimento, só queria chorar”, relata Nyland.

“Ele estava com covid-19, pegou da mãe ao cuidar dela, e sabia que se ela não resistisse até ele se curar, não poderia se despedir dela. Sem mais parentes por perto, não tinha muito com quem contar. A mãe faleceu oito dias depois, e ele já estava liberado. Foi uma angústia muito grande”.

O luto, que leva muito tempo para ser elaborado, é agravado pois a despedida se dá sem ver o seu ente querido, sem tempo de velar e de se despedir, explica Nyland.

“O desejo de abraçar seu familiar é enorme, assim como o medo de nunca mais poder tocar neste amor, sentir o calor, a pele e o cheiro caso venha a falecer. Há uma ruptura enorme na saúde mental”, destaca.

De acordo com a psicanalista, as pessoas enlutadas precisam de esperança, sem fugir à realidade, e de colo e abraço.

Mensagem para quem segue ignorando a gravidade do momento

“Estamos num momento de total descontrole da pandemia e, mais do que nunca, cada um deve tomar para si mesmo a responsabilidade sobre a sua saúde e a do outro, usar máscara, manter a distância física adequada, higiene das mãos é fundamental e pressionar pela vacinação em massa”, reforça Karla Nyland.

“Não deixe um familiar seu adoecer para entrar em contato com a realidade atual. Estamos vendo famílias sendo dizimadas. Conversamos com famílias que perderam tios, avós primos, filhos. Entenda que hoje pode ser aquele caso na TV, mas amanhã pode ser contigo. Use de sua compaixão e senso de cidadania.Estamos todos no mesmo barco”, finaliza.

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